Ao ler o Grande inquisidor, de Dostoiévski, percebi o quanto grandes instituições poderiam se desvituar dos seus papéis a fim de manter o seu poder.
No poema, um cardeal se depara com Jesus Cristo realizando milagres, uma vez em que havia voltado à Terra para dar mais uma chance para a humanidade. Cristo insistia que os homens fossem livres e felizes. O inquisidor, por sua vez, acreditava que a liberdade levaria o homem à miséria, pois, apesar de almejá-la, o homem não saberia o que fazer com ela e, por isso, não caberia a um dirigente fornecer o pão e a liberdade, pois “pão e liberdade são irreconsiliáveis”. Sob essa argumentação, o religioso prende, interroga e condena o Messias à morte.
“Em lugar de te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais! Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso.” [1]
O pensamento do cardeal nos faz refletir o quanto vários governantes, e até mesmo pessoas em posições de menor evidência, seguem esse mesmo raciocínio e, ao oferecerem o “pão”, se veem no direito de ceifar a liberdade daqueles que mais precisam.
Ao mudar para o interior do estado do Amazonas, várias situações observadas comprovaram essa ideia do inquisidor de que aqueles que oferecem a quem precisa, tanto podem fornecer qualquer coisa, quanto podem podar a liberdade que for preciso em troca.
Nessas pequenas cidades a infraestrutura é péssima, os prestadores de serviços cobram preços inimagináveis por atendimentos básicos e agem como prestadores de favor. Mas aqui também os impostos são pagos. Bem como as taxas de serviço, as taxas de limpeza, iluminação pública etc. No entanto, não se vê a aplicação do dinheiro público, e muito menos pessoas se indignando e cobrando prestação de contas. Afinal, o governante “inquisidor” cumpre bem o seu papel: o básico - o pão - é dado em troca da voz liberta de fazer questionamentos.
O efeito do inquisidor não se limita ao campo político. Certa vez acompanhei uma amiga à um atendimento médico em uma Unidade de Pronto Atendimento da cidade. Haviam poucos médicos especialistas disponíveis para uma fila de pessoas que aguardavam atendimento, fora outras que chegavam em abulâncias a todo instante. A amiga, também recém-chegada na cidade, estava a procura de atendimento após ter sofrido um aborto espontâneo. Foi mal atendida, sofreu violência obstétrica por parte de uma ginecologista e mal teve o direito de ser ouvida, já que diversos outros funcionários puseram “panos quentes” no ocorrido.
Ao comentarmos o fato, diversas pessoas que ouviam conseguiam dizer exatamente quem teria sido a profissional a agir daquela forma, e ainda chegavam outros para descrever outros absurdos realizados. Ao questionarmos se ninguém nunca havia procurado tomar uma atitude quanto àquilo, nos deparamos com respostas no sentido de que nada adiantaria. Ou de que não seria bom fazê-lo, já que graças à Deus, ainda se pode contar com ela ali!
Pensamos sempre em atos alarmantes, mas, na maioria daz vezes, a inibição das liberdades se dá com pequenos gestos. Diferentemente da política Panem et circenses, o pensamento do inquisidor não é o de dar o pão e manipular a atenção da plebe para que não tenham tempo para pensar sobre política. Os cardeais atuais dão o pão de tal forma que saciam a fome ao tempo em que esmorecem, perpetuando o sonho inquisidor de que pão e liberdade não se conciliam. “Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos.” [2]
Referências Bibliográficas:
[1] DOSTOIEVSKI, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov.
[2] Idem.
COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020. Disponível em: <https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/ >. Acesso em 14 mar de 2021.
FRIAS FILHO, Otavio. O Grande Inquisidor. Folha de São Paulo, São Paulo, 3 de agosto de 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0308200007.htm. Acesso em: 13 mar de 2021.