Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Roberto Lyra Filho1, em seu texto Por que estudar direito, hoje?, já mencionava que “uma das mentiras mais comuns é sustentar que vocês devem, primeiro, conhecer bem as leis e os costumes da classe, grupos e povos dominantes; e, depois, se quiserem, tratá-los, em mais largas perspectivas sociológicas, políticas e críticas”. Lyra Filho rejeitava a tese de um direito estático, feito, acabado, hermético e estatal, suscetível de paralisação, preferindo enxergá-lo em totalidade e movimento, como padrão atualizado de justiça social militante. Contudo, não parece ser tarefa simples a formação de profissionais reflexivos e questionadores. A massificação do ensino jurídico, em verdade, parece mais contribuir para a reprodução acrítica de modelos vigentes no direito.

O Brasil, nos dias de hoje, conta com mais de 1.700 cursos aprovados para formar bacharéis em direito2, superando a China, EUA e Europa juntos3. O crescimento se mostra acentuado. Em 1995, nosso país contava com apenas 235 cursos de direito4, o que significa um expressivo aumento dessa oferta, para mais de 620%. No entanto, não se pode afirmar que o aspecto qualitativo dos cursos de direito obteve o mesmo desempenho. Combinando o desempenho no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE/INEP) e o índice de aprovação no Exame de Ordem, a OAB propôs o selo OAB Recomenda que, em 2018, considerou que apenas 161 cursos atendiam as expectativas desejadas, o que pode indicar um efeito deletério da massificação do ensino jurídico brasileiro5.

Diante de tal cenário, indaga-se acerca da compatibilidade entre o ensino jurídico crítico, atento às novas demandas sociais e ao avanço tecnológico, conhecedor da importância de uma formação transformadora, com um mercado de vagas crescente pertencente a uma verdadeira indústria do diploma. Em um primeiro olhar, as reflexões parecem desanimadoras. Mostrando-se alheio a essa realidade, no último dia 5 de novembro, o Ministério da Educação, por meio da Portaria n.º 380/20206, autorizou mais 2 cursos de direito enquanto a OAB clama, sem aparente sucesso, pela suspensão da tramitação de novos pedidos de autorização de cursos jurídicos7.

Um outro aspecto que merece ser levantado é o ensino à distância (EaD) dos cursos de direito. Não é de hoje que a OAB é contra a oferta de cursos de direito por essa modalidade de ensino.

Em 31/10/2019, antes portanto do início da pandemia da Covid-19, a OAB Nacional ingressou com um pedido de liminar na 7ª Vara Federal do Distrito Federal requerendo o reconhecimento da inviabilidade da oferta de cursos de direito à distância8.

No pedido de medida cautelar, a OAB apresentou dois argumentos principais: a inexistência de regulamentação específica que autorize a oferta de cursos de direito a distância e a incompatibilidade entre as diretrizes curriculares da graduação jurídica, que tem a prática como eixo nuclear.

Na peça, a OAB também argumenta que há um crescimento acentuado da oferta de cursos de graduação a distância, favorecido pela flexibilização das regras em 2017, especialmente pelo Decreto n.º 9.057/2017 e pela Portaria Normativa n.º 11/2017 do MEC. Além disso, a Ordem ressalta que a oferta crescente de graduações à distância está concentrada na rede privada de ensino, que tem contribuído para o encolhimento do ensino presencial e para uma queda na qualidade da educação superior.

Para a Ordem, o incentivo à programas de ensino à distância tem o escopo de expandir e democratizar o acesso à educação superior. Entretanto, os benefícios da educação à distância só podem ser auferidos quando respeitadas as exigências pedagógicas para a prática da modalidade, dentre as quais a garantia de padrão de qualidade, critério que não pode ser medido na modalidade a distância no caso do curso de direito.

Entretanto, em 28/2/2020, logo antes do início da crise do coronavírus no Brasil, o pedido de liminar foi negado pela Justiça Federal9. Segundo a decisão, a fiscalização de cursos de Direito EAD e de outras graduações não cabe à OAB ou a entidades representativas, mas exclusivamente ao Ministério da Educação (MEC).

Com o agravamento da crise da pandemia de Covid-19 e, consequentemente, com a imposição de quarentena para conter o avanço dos contágios, o ensino à distância se mostrou como a única opção viável para continuar com o ensino nesse contexto, inclusive para os cursos de direito.

Assim, com a derrota da OAB, ainda em fase preliminar, na justiça e com a necessidade imposta pela pandemia, o ensino remoto nos cursos de direito ganhou novo ânimo.

Na Universidade de Brasília (UnB), o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) aprovou o retorno das aulas referentes ao primeiro semestre de 2020 de forma remota. Após um semestre sem aulas, a UnB retomou o calendário de atividades a partir da 2ª quinzena de agosto, o que representou um desafio sem precedentes, tanto para os discentes quanto para os docentes.

Em julho de 2020, a universidade lançou um edital de apoio à inclusão digital, a fim de auxiliar os alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica a continuarem os estudos. Assim, centenas de alunos que seriam prejudicados devido às atividades acadêmicas passarem a ser exclusivamente remotas puderam ser contemplados e acolhidos em suas necessidades, gerando um contexto um pouco mais homogêneo dentro da universidade.

Inúmeros foram os desafios resultantes desse "semestre virtual". Dentre eles, cita-se a procura por um lugar adequado em casa para ministrar e para assistir às aulas - não foram raros os momentos em que havia disputa entre barulhos de música, crianças chorando, cachorro latindo, metrô passando, alguém em casa chamando, entre muitos outros. Adaptar-se às diversas plataformas diferentes usadas pelos professores também foi desafiador, inclusive para os próprios professores, os quais tiveram de aprender a dominar ferramentas nunca antes vistas por eles e necessitaram, igualmente, desdobrarem-se para prender a atenção dos alunos - muitas vezes ocultos por telas pretas e sem áudio.

Além disso, há de se recordar que a faculdade não somente é um ambiente de aprendizado acadêmico em si, como também um local em que se constroem relações afetivas, que muito contribuem para o desenvolvimento pessoal e profissional.

No campo pessoal, é fato que o contato entre os alunos reduziu-se de forma substancial, sendo necessária, também, as adaptações aos encontros virtuais como forma de manter um equilíbrio emocional, bem como de trocar experiências impostas pelo “novo normal”. Além disso, no campo profissional, em se tratando de estudos acadêmicos, a possibilidade de interação para realização de trabalhos em grupo, atividades extracurriculares e o networking, por exemplo, também foram afetados e tiveram mudanças claras e que, talvez, até fiquem para o futuro, como por exemplo, as reuniões virtuais.

No ambiente da Faculdade de Direito da UnB, no âmbito do “semestre virtual”, não houve um modo uniforme de ministração das aulas remotas. Muito embora a UnB tenha disponibilizado para uso a plataforma teams, coube a cada professor a escolha, de forma independente, do seu próprio método e os seus próprios meios para passar aos alunos os conteúdos devidos, o que acaba por prejudicar o discente pelo fato de não haver uma homogeneidade, mas sim uma confusão generalizada que permitiu, em alguns casos, que professores furtassem-se de dar quaisquer explicações aos alunos e às alunas por mais de um mês, tendo sido necessário a coordenação intervir após inúmeras reclamações.

Nesse contexto, houve quem quisesse seguir um método o mais próximo possível do que seriam as aulas presenciais, seguindo os mesmos horários previstos na grade; houve quem tentasse mesclar aulas expositivas gravadas e disponibilizadas para o aluno assistir quando quisesse; houve, ainda, quem inovasse totalmente nas formas tanto de transmissão do conteúdo como de avaliação. Independente do método escolhido, não restam dúvidas de que foi um período de aprendizado e de necessária flexibilidade para toda a comunidade acadêmica.

É evidente que o ano de 2020 foi de adaptação. Os erros e os acertos cometidos tanto pelos discentes, quanto pelos docentes, se mostram como uma experiência para aprimorar o ambiente acadêmico para o ano de 2021 que, conforme já relatado, será igualmente virtual, com exceção das disciplinas que devem ser ministradas essencialmente no modelo presencial. Assim, aproveitar as bagagens impostas pelas dificuldades vividas em muito irão agregar para a evolução do ambiente acadêmico.

A fim de tratar do curso de direito, não se pode olvidar a importância do tripé universitário, o qual compreende ensino, pesquisa e extensão e que, no nosso sentir, em muito foi prejudicado com a adoção de um sistema remoto de aprendizado.

É necessária uma saída que não descuide da formação de profissionais reflexivos e questionadores nos cursos de direito. Daniela Mossini10, em Ensino jurídico: história, currículo e interdisciplinaridade, alerta para a atual construção de um ensino jurídico que possui nível meramente técnico, com a formação de profissionais acríticos. Ela entende ainda se tratar de campo do conhecimento vinculado ao poder, na medida em que sua transmissão tecnicista e autoritária consiste, na realidade, na propagação de uma ideologia dominante de campos como o político, o social e o econômico e o cultural.

A formação que os juristas recebem mostra-se ineficaz na medida em que suas capacitações técnicas e profissionais revelam-se insuficientes para o cumprimento não só das atividades jurídicas tradicionais, mas também das funções que a sociedade moderna propicia e requisita. A indiferença social dos bacharéis chega a justificar a descrença da população com os órgãos aplicadores do direito, tendo em vista que os profissionais da área encontram-se muitas vezes em busca tão somente de privilégios funcionais e vantagens remuneratórias11.

Educação, para Paulo Freire12, é "uma forma de intervenção no mundo", e apenas por meio de um desenvolvimento equânime dos três eixos é que se pode garantir a formação de profissionais críticos e alinhados à realidade social para além do ambiente universitário.

Nesse contexto, a imposição do cumprimento de 300 horas de atividade complementares ao curso de direito da Universidade de Brasília, como forma de obrigar o graduando a ter experiências para além da sala de aula, não se mostrava eficiente para dar tratamento equânime ao tripé antes mesmo da pandemia. Com o ensino remoto, o déficit se agravou.

Por outro lado, o ensino promovido na Universidade de Brasília - e nas demais faculdades federais em geral - já se mostra, em muitos aspectos, bem mais capaz de formar profissionais competentes para atuação em conformidade com a realidade social que os demais. Ainda que não se dê a devida importância aos outros pilares, posto que é possível se formar sem realizar quaisquer atividades de pesquisa ou extensão, os professores das disciplinas obrigatórias promovem uma série de atividades que envolvem a produção científica, pesquisas da jurisprudência mais atual, debates filosóficos, dentre diversas outras formas avaliativas, de modo que são capazes de se desvencilhar da mera propagação do conhecimento normativo.

Dentro de um contexto pandêmico e de difícil acesso por igual de toda a sociedade acadêmica aos materiais de estudo, é fácil perceber a essencialidade que a gravação de aulas promove. No horário que for mais adequado ao estudante, seja por causa de barulho, seja por causa de tarefas domésticas, seja por qualquer outro motivo, ao aluno é permitido acompanhar o conteúdo ministrado pelo professor. Outrossim, é necessário um meio de comunicação direto com o professor para que o aluno envie suas dúvidas à medida que vá avançando seus estudos.

Ademais, por se tratar de um ensino remoto, é comum a crítica em relação ao monotonismo das aulas. Nessa esteira, é fundamental que haja uma maior proximidade entre aquele com a realidade e com a aplicabilidade, ainda que de forma indireta. Com isso, estudos de caso e artigos, por exemplo, em grupos permitem, simultaneamente: (i) interação mais íntima entre grupos dentro de uma mesma turma, de forma a desenvolver - ainda que reduzida - o aspecto social tão importante no curso de Direito; (ii) aplicação prática do conteúdo; e (iii) aproximação com a realidade da operador de direito no dia a dia.

Nesse diapasão, a confecção de resumos breves da matéria como forma de avaliação pode incentivar o estudante a não acumular a matéria sem que haja um dispêndio de recursos muito grande com apenas uma matéria, permitindo o aluno engajar-se com todas as disciplinas da sua grade curricular sem exigir muito do professor também.

Portanto, observa-se que grandes são os problemas trazidos pelo ensino remoto. Em verdade, este apenas agravou a crise da educação no Brasil que, como elucidado pelo professor Darcy Ribeiro, não é uma crise, mas sim um projeto, o qual imobiliza o avanço da sociedade até mesmo para aqueles que têm o privilégio - sem desmerecer aqueles que lutaram e lutam para entrar na Universidade - de frequentar um curso superior. Destarte, a UnB luta contra o sucateamento com unhas e dentes e, para isso, teve que superar mais um desafio: a EaD. Não obstante, ainda há diversas questões a serem combatidas e solucionadas, as quais adentram problemáticas, dentro do curso de Direito especificamente, como a falta de prática, a falta de extensão, a mecanização do aluno e do operador do direito com a sua possível falta de capacidade crítica, a falta da socialização, etc. Mesmo assim, bem ou mal, há de se reconhecer: a UnB conseguiu levar adiante o seu 1º semestre inteiramente à distância - e esse já foi um enorme desafio conquistado.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar Direito hoje? In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. (Org.). Introdução Crítica ao Direito. 4. ed. Brasília: UNB, 1993.

[2]    Consulta ao Sistema e-MEC. Disponível em: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em: nov. 2020.

[3]    G1. Brasil tem mais faculdades de direito que China, EUA e Europa juntos. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/brasil-tem-mais-faculdades-de-direito-que-china-eua-e-europa-juntos-saiba-como-se-destacar-no-mercado.ghtml. Acesso em: nov. 2020.

[4]    FREITAS, Hyndara. Brasil tem mais de 1.500 cursos de Direito, mas só 232 têm desempenho satisfatório. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/carreira/brasil-tem-mais-de-1-500-cursos-de-direito-mas-so-232-tem-desempnho-satisfatorio-14042020. Acesso em: nov. 2020.

[5]    Ver em: https://www.oab.org.br/servicos/oabrecomenda. Acesso em: nov. 2020.

[6]    DOU n.º 212, Seção 1, p. 48. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-380-de-5-de-novembro-de-2020-286686349. Acesso em: nov. 2020.

[7]    Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/arquivos/2019/1/art20190129-06.pdf. Acesso em: nov. 2020.

[8]    Disponível em: OAB vai à justiça contra graduações a distância em Direito. Acesso em: nov. 2020.

[9]    Disponível em: OAB perde na Justiça: cursos de Direito EAD seguem em análise (grupoa.com.br). Acesso em: nov. 2020.

[10]    MOSSINI, D. E. S. Ensino jurídico: história, currículo e interdisciplinaridade. Tese (Doutorado em Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2010.

[11]    Idem.

[12]    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, ed. 16. São Paulo: Ed Paz e Terra, 1996, p. 77.