Inicialmente, antes de iniciar a discussão da pergunta em questão e até mesmo apresentar uma resposta que seja convincente, cabe salientar o que vem a ser soberano. Como bem apresenta Carl Schmitt, soberano é aquele o qual possui a decisão sobre o estado de exceção. Assim, nesta definição, o teórico não se restringe apenas à perspectiva estatal-legal da soberania, mas traz à titularidade, sob o aspecto político-constitucional, a tomada de decisão que interromperia a lei, de forma temporária e parcialmente, em situações emergenciais do Estado.

O soberano, independentemente de uma democracia, possui poderes não usuais. Ao mesmo tempo em que domina a normalidade e a anormalidade da sociedade em que ele impera, o soberano é senhor dos atos estatais.

Nada. Absolutamente nada impede da soberania ser exercida de forma coletiva. Nesse giro, uma questão central é apresentada. O povo é, de fato, soberano?

Sem retornar no tempo, apenas analisando a atualidade, o mundo possui países em que o povo parece estar a margem do exercício da soberania, definida aqui como um poder acima dos demais. Muitas vezes uma pessoa, ou no máximo um colegiado, parecem tomar as decisões estatais, que, na definição de Schimitt, interromperia o ordenamento jurídico, criando os estados de exceção.

Mas, por outro lado, nos estados que se definem como democracias, governos do povo para o povo, será que o povo exerce de alguma forma essa soberania. E quem é esse povo? Um povo escolhido? Como vimos muitas vezes na história. Ou o povo no sentido mais amplo da palavra.

A transição entre a soberania estatal e a do povo começa com as revoluções. O historiador britânico Eric J. Hobsbawm situa o período de 1789 a 1848 como a Era das Revoluções. Não é à toa que o autor posiciona o início dessa era no ano de 1789. Ano o qual foi marcado pela Revolução Francesa, mudanças que marcaram o início do fim do Estado absolutista francês. A queda do absolutismo na França é o estopim para um sem-número de movimentos revolucionários no globo, principalmente na sua porção ocidental. O povo começa a buscar o protagonismo da soberania estatal. Outros movimentos populares já haviam surgidos no mundo, mas a Revolução Francesa de 1789 é, sem dúvida, o mais emblemático momento de insurreição popular.

A soberania do povo muitas vezes é interpretada como a democracia, em que tem-se a impressão de que o poder estatal é exercido pelo povo. Entretanto, em várias situações, o povo não é a completude da população atingida pelo poder. No próprio Brasil, já houve voto censitário, demonstrando, desse modo, que nem todos poderiam exercer por meio do voto a sua soberania como povo. Em situações análogas, pode-se afirmar que o povo, em sua integralidade, não exerce esse poder.

Em um contexto amplo e global, quase em sua totalidade, as constituições existentes atualmente carregam em seu interior normativo referências de que o povo é soberano.  Contudo, é controverso essa soberania do povo em si. Insta diferenciar, a priori, a soberania do povo como preceito constitucional abstrato, e, de outro lado, a soberania do povo em si, exercida diretamente e com aplicação prática no meio político.

Como preceito constitucional, em que mostra-se na história anterior à doutrina do poder soberano e presente desde a Idade Média. A partir disso, Rousseau (1762)  conclui que o poder guardado ao povo deve ser delegado ao soberano, de modo não definitivo. Assim, como se vê no Brasil, a soberania de um Estado democrático é entendida como a soberania do povo.

Contudo, como apresenta Voigt,  a forma prática de tal soberania não passa de uma “confissão vazia” em que legitima determinada ação política a partir da proclamação desse princípio constitucional. Desse modo, o que se nota é uma limitação do próprio povo no exercício de sua soberania, de maneira que se faz necessária uma organização para materializar no âmbito prático-político.

A respeito disso e no contexto pátrio, Alexandre Costa discorre sobre a Constituição Brasileira como instituição e ao mesmo tempo limitação da soberania do povo:

"O único ato soberano do povo seria abdicar de sua soberania, atribuindo poder constituinte a um grupo de representantes responsáveis por instituir um governo de poderes limitados. Nessa perspectiva, típica do constitucionalismo, até mesmo uma manifestação unânime dos cidadãos brasileiros seria percebida como ilegítima para estabelecer quaisquer direitos e obrigações.”

Desse modo, quem é titular da soberania no mundo atual? É uma questão complexa de ser respondida. As várias respostas possíveis são separadas por uma linha tênue. Um pensador brasileiro do século passado (XX) já nos trouxe um “trailer” de uma possível resposta. Raymundo Faoro, na clássica obra “Os donos do Poder”, já pincelava a resposta atribuindo ao estamento a missão de manter o poder nas mãos de uma elite ávida pelo poder.

Esse estamento burocrático organicamente pensado e constituído de forma intrínseca aos “donos do poder''. Donos do poder, no caso brasileiro, são oriundos desde a chegada dos portugueses e seu aparato estatal em nome do Rei. Os seus integrantes perpassam pela aristocracia agrária até os altos servidores públicos ocupantes dos cargos inseridos no topo da pirâmide, sem deixar de tangenciar os grandes capitalistas e detentores da informação (donos de grandes grupos de mídia).

Não se pode olvidar da força do povo. Sem dúvidas, o povo tem poder. As manifestações de 2013 são exemplos, aqui no Brasil, de movimentos populares que foram soberanos em suas demandas e se fizeram ouvidos pela soberania estatal estabelecida, sem necessariamente romper com a ordem vigente.

Na obra anteriormente citada, o Faoro parte de análise brasileira, iniciando no Brasil colônia. O seu pensamento é um recorte para a realidade em terras brasileiras. Entretanto, pode-se extrapolar o seu pensamento para o mundo. As decisões tomadas nem sempre são coincidentes com a ânsia popular. A soberania do povo, insculpida no mármore constitucional, é mitigada (ou anulada) pelos detentores reais da soberania. Há alguns anos, apenas como exemplo, as eleições iraquianas eram vencidas pelo presidente Saddam Hussein com 100% dos votos. Ah, não havia adversários. No caso iraquiano, que pode ser espelhado para várias outras nações atualmente, o sufrágio serviu apenas como um salvo-conduto para o “status quo” existente. Aquele trecho belo texto constitucional que dá ao povo o poder escolher o seu destino por meio de seus líderes, não passa de letra morta, sem associação com a soberania popular, porque os verdadeiros soberanos, seja no Oriente Médio, África ou Brasil, são donos do poder de Raymundo Faoro em nível mundial .

Referências:

COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 5 ed. São Paulo: Globo, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. O Contrato Social. 1762.

VOIGT, Rüdiger. Quem é o soberano?: Sobre um conceito-chave na discussão sobre o estado. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2013, vol.21, n.46, pp.105-113. ISSN 0104-4478.  <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782013000200007>.