A construção dos ideais soberanos nasce da necessidade de centralização do governo. O início da Idade Moderna ocorre com formação dos grandes impérios, que deram origem a tais discursos políticos centralizadores, como o de Hobbes e Bodin. A partir de então, a noção de soberania foi utilizada para legitimar as mais diversas formas de governo.

A diferença entre os governos consiste na diferença do soberano, ou pessoa representante de todos os membros da multidão. Dado que a soberania ou reside em um homem ou em uma assembléia de mais de um, e que em tal assembléia ou todos têm o direito de participar, ou nem todos, mas apenas certos homens distinguidos dos restantes, torna-se evidente que só pode haver três espécies de governo. Porque o representante é necessariamente um homem ou mais de um, e caso seja mais de um a assembléia será de todos ou apenas de uma parte. Quando o representante é um só homem, o governo chama-se uma monarquia. Quando é uma assembléia de todos os que se uniram, é uma democracia, ou governo popular. Quando é uma assembléia apenas de uma parte, chama-se-lhe uma aristocracia. Não pode haver outras espécies de governo, porque o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos. (HOBBES, 1651).

Hobbes tentou defender a centralização do poder nas mãos do monarca, de forma a torná-lo soberano e evitar as discórdias provenientes de uma sociedade complexa (HOBBES, 1651). Para isso, houve a necessidade de romper com a autoridade divina estabelecida desde o augustianismo. De acordo com o historiador Henri Pirenne, a inexistência de um poder soberano na Idade Média deveu-se à sua estrutura profundamente agrária, onde “cada qual possuía uma parte do solo, tornando-se independente”. Em razão dessa ausência de autoridade concreta para servir de fonte ao direito, este período se caracterizou pela valorização das Escrituras (PIRENNE, 1966).

O intuito de Hobbes foi pacificar os conflitos gerados por essa descentralização presente na Idade Média. Assim, este afirma que “pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com outras nações e Estados”. A teoria hobbesiana também atribui ao soberano o “poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos”. Portanto, a soberania do monarca para Hobbes é exercida por meio de um poder uno e ilimitado (HOBBES, 1651).

Por sua vez, governos populares também foram defendidos com base na ideia de soberania, como é o caso da teoria rousseauniana, que atribui a soberania ao povo. Assim como Hobbes, Rousseau é um contratualista que defende que a soberania nasce de um acordo entre homens com o fim de sua conservação. No entanto, ao contrário de Hobbes, este se debruça sobre a vontade geral, afirmando que “cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo”. (ROUSSEAU, 1762).

O ideal da soberania popular é o cerne da democracia moderna. Por este motivo, nossa constituição democrática determina no parágrafo único de seu artigo 1o que “todo poder emana do povo”.  Porém, tal determinação não apresenta o caráter de autogoverno, presente na teoria rousseauniana, mas sim um caráter de fundamento defendido pelos constitucionalistas, como Sieyès.

Os constitucionalistas se apoiam na teoria de Rousseau, em conjunto com as elaboradas por Locke e Montesquieu, para criar a noção de soberania limitada. Enquanto Montesquieu busca restringir a soberania a poderes moderados, Locke defende a restrição dos poderes estatais por meio de leis permanentes e positivadas. Como resultado, o constitucionalismo apostou em uma soberania popular limitada por uma lei suprema (COSTA, 2011).

Uma das diferenças entre as teorias de Montesquieu e Locke é que o primeiro argumenta em favor da igualdade entre os poderes estatais e o segundo defende a supremacia do legislativo. Outro defensor da limitação da soberania por poderes estatais moderados foi o federalista James Madison. Ao contrário de Montesquieu, este defendia que tais poderes adquiriam seu caráter moderado por meio do conflito e não da harmonia. Esta convicção deu origem à teoria dos freios e contrapesos presente no Federalista n° 51.

A teoria dos freios e contrapesos aponta que existe um conflito de interesses inerente à ideia de separação dos poderes. Enquanto Montesquieu argumentou que os poderes deveriam funcionar harmonicamente, Madison defende que tais poderes buscam apenas a máxima satisfação de seus interesses, ou seja, cada poder busca a soberania. Deste modo, o fato de nenhum dos poderes serem soberanos provêm das limitações que eles exercem mutuamente.

Mas a grande proteção contra uma concentração gradual dos diversos poderes no mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à usurpação pelos outros. A providência para a defesa deve, neste caso como em todos os outros, ser comensurável com o perigo do ataque. Deve fazer-se com que a ambição contrabalance a ambição. O interesse do homem deve estar ligado aos direitos constitucionais do cargo (MADISON, 1788).

O constitucionalismo deposita uma autoridade no texto constitucional que dificulta o exercício de uma soberania. Portanto, a ideia de soberania popular fica esvaziada pela supremacia da Constituição. Neste sentido, o constitucionalismo se aproxima do tomismo, ao defender que o texto (constitucional) é inquestionável, mas passível de interpretações.

O Brasil, enquanto democracia constitucional, sofre desse esvaziamento da supremacia popular, assim como do conflito entre poderes. O Poder que poderia refletir tal supremacia com mais força é o Legislativo, onde estão os representantes eleitos pelo povo. O Poder Judiciário, por sua vez, seria aquele mais distante dos interesses do povo, conhecido por seu caráter contramajoritário. No entanto, atualmente, a população brasileira parece atribuir mais legitimidade às decisões judiciais que aos atos legislativos.

De acordo com Luís Roberto Barroso, essa descrença popular no Poder Legislativo resultou em uma maior exigência de resposta por parte do Judiciário. Ademais, a partir da redemocratização, o Brasil passou a ter um dos controles de constitucionalidade mais abrangentes do mundo, misturando o modelo concentrado, adotado na Europa, com o modelo difuso, adotado pelos Estados Unidos. Ambos esses fatores, somados a uma Constituição extremamente analítica, contribuíram para a transformação de vários fatos políticos em fatos jurídicos, o que ampliou a atuação do Judiciário.

Entretanto, o Ministro chama atenção para o fato de que os membros que atuam nesse Poder não são eleitos. De acordo com ele, este não é um motivo para pensar que o Judiciário é um poder antidemocrático, pois ele atua de acordo com o disposto na Constituição, que teoricamente, se origina na vontade popular. Deste modo, Barroso defende que “a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis”: estabelecer as regras do jogo democrático e proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra o interesse da maioria. Neste plano, ele aponta que o Judiciário colabora com o Estado Democrático, ao atuar como guardião da democracia.

Note-se que os três Poderes interpretam a Constituição, e sua atuação deve respeitar os valores e promover os fins nela previstos. No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário (BARROSO, 2009).

Juliano Zaiden Benvindo questiona o ideal de primazia do Judiciário, ao demonstrar que as decisões das cortes superiores não são tão ilustradas e nem tão protetoras dos direitos fundamentais, como os atos do legislativo também não são puro desvario. Ao contrário de Barroso e outros Ministros, o Professor defende que, em uma democracia constitucional, nenhum poder deveria ter a prerrogativa de ditar “a última palavra”. Com isso, ele alerta para o perigo da mistificação do judiciário como o único órgão capaz de decidir por meio de uma racionalidade técnica, que pode levar a consequências antidemocráticas (BENVINDO, 2014).

O argumento de que o Judiciário é guardião da Constituição também foi defendido pelo federalista Alexander Hamilton no Federalista n° 78. No entanto, em seu texto, Hamilton apresentou a visão de um Judiciário técnico, que diverge da apresentada por Barroso e Benvindo. Assim, ele defende que o judiciário seria o mais fraco dos três poderes.

Whoever attentively considers the different departments of power must perceive, that, in a government in which they are separated from each other, the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution; because it will be least in a capacity to annoy or injure them. The Executive not only dispenses the honors, but holds the sword of the community. The legislature not only commands the purse, but prescribes the rules by which the duties and rights of every citizen are to be regulated. The judiciary, on the contrary, has no influence over either the sword or the purse; no direction either of the strength or of the wealth of the society; and can take no active resolution whatever. It may truly be said to have neither FORCE nor WILL, but merely judgment; and must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for the efficacy of its judgments (HAMILTON, 1788).

Mais à frente, o constitucionalista afirma que, por ser o poder mais fraco, o Judiciário jamais poderá atacar o Executivo ou o Legislativo e jamais colocará em perigo a liberdade da população, enquanto ele permanecer distinto desses outros dois Poderes. No entanto, a visão de que o Judiciário emite somente decisões técnicas já foi ultrapassada, e esse Poder possui uma dimensão mais politizada do que Hamilton previa.

Essa proximidade do Judiciário com o jogo político do Executivo e do Legislativo é mais perigosa quando negada. Os outros dois Poderes, por terem no comando representantes eleitos, são realmente mais dependentes da opinião pública. Por esse motivo, também demandam mais transparência. A soberania popular só obriga o Judiciário por meio de seu poder fundador manifestado na Constituição. A valorização desse Poder se dá em parte pelo fato de que o povo não sabe o que se passa dentro dele e em parte devido à imagem distorcida que esse povo tem de si mesmo.

O Executivo e o Legislativo são o retrato do povo brasileiro, que assim como o personagem Dorian Gray de Oscar Wilde, não reconhece o reflexo da própria putrefação. O Judiciário, com seu decoro e solenidade, aparenta uma autoridade imaculada da ganância humana. Portanto, o povo se sente mais confortável em atribuir a soberania a um Poder em que ele não se vê representado, do que assumir o papel de soberano e se responsabilizar pelo resultado de uma real democracia.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Suffragium - Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, jan./dez. 2009.

BENVINDO, Juliano Zaiden. A “Última Palavra”, o Poder e a História: o Supremo Tribunal Federal e o Discurso de Supremacia no Constitucionalismo Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, vol. 201, p. 71-95, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.

COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

HAMILTON, Alexander. Federalist No 78. Nova Iorque, 1788.

HOBBES, Thomas. Leviatã. 1651

LOCKE, John. Segunto Tratado Sobre o Governo Civil – e Outros Escritos. Petrópolis: Vozes, 1994.

MADISON, James. O Federalista No 51. Nova Iorque, 1788.

PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou,

1966.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. O Contrato Social. 1762.