Não parece ser mais objeto de frequente discussão na academia a razão pela qual um sujeito percebe a si mesmo como naturalmente autônomo em relação ao Estado. A discussão quanto a validade objetiva de direitos de ordem natural – se a compreensão racional desses direitos é possível, se está condicionada à tradição e a processos culturais de determinados grupos homogêneos ou se é constituída artificialmente – não representa motivo de preocupação de estudo na medida em que essa fonte de direitos passou por um processo de incorporação à lei.
Diz-se isso porque a hegemonia do discurso iluminista tornou desnecessária a busca por justificativas filosóficas a respeito da validade das normas quando pregou os signos da racionalidade e da sistematização do direito através da codificação.
Neste sentido, a consagração dos ideais liberais e democráticos conferiu centralidade à figura do legislador a quem incumbe a manifestação de um poder que emana da vontade popular, cuja legitimidade, em termos modernos e sob a perspectiva de um Estado de Direito, tornou-se indiscutível a partir do vínculo jurídico fundado no uso autônomo da razão – do constratualismo [1].
Com efeito, não se faz mais referências expressivas ao direito natural e de que modo poderia ser universalmente válido na medida em que este se confunde com o direito positivado o que, notadamente, não significa que a corrente jusnaturalista tenha sido abolida do discurso dogmático, mas, muito pelo contrário, que tenha tomado um caráter axiomático [2].
Dessa forma, a superação do Antigo Regime, das diversas manifestações de poder descentralizado e, consequentemente, do direito fundado na tradição e nos costumes por um monopólio estatal do poder se estruturou a partir da consolidação de um positivismo naturalista. [3]
Assim, para a manutenção dos ideais das revoluções burguesas, deixou de ser interessante quaisquer questionamentos às justificações filosóficas do ordenamento jurídico consolidado enquanto o objetivo passa a ser a conservação dessa ordem, naturalmente, o alcance da segurança jurídica.
Nota-se, neste sentido, que o ensino jurídico está condicionado à importância e hierarquia das fontes do direito que estão intrinsecamente ligadas ao poder instituído com o fim último de conferir segurança e legitimidade às instituições.
A redução das diversas fontes do direito à lei em contraposição ao pluralismo, contudo, afetou a formação dos juristas, que passaram a uma atuação eminentemente tecnicista do ponto de vista prático, que dispensava um conhecimento teórico e uma aplicação do direito mais reflexiva que não fossem adstritas ao direito positivado.
Ocorre que, em nome da segurança jurídica, pautada na garantia da autoridade do legislador, introduziu-se uma aplicação gramatical dos dispositivos que nem sempre correspondiam às demandas sociais, o que, evidentemente, provocou questionamentos à legitimidade e autoridade do legislativo.
A atuação descritiva do aplicador do direito, típica do discurso legalista, entrou em decadência enquanto passou a ser considerada como fonte relevante do direito a jurisprudência, o quanto decidido e interpretado pelo poder judiciário.
Mas uma performance mais ativa dos juízes não nos conduziria fatalmente à mesma tensão entre legitimidade e autoridade?
Hoje parece-nos impossível que a subsunção da norma ao fato não perpasse pelo crivo da interpretação. Sobre o tema, segundo Dworkin não se trata da busca pelas intenções reais dos legisladores mas daquelas que o intérprete diz serem as intenções dos legisladores ou dos constituintes. [4]
Não fosse verdade, a recente declaração do atual Presidente da República de que, em uma de suas indicações a ministros do STF, um deles será terrivelmente evangélico, não teria a menor repercussão prática ou não faria o menor sentido [5]
Não há dúvidas de que a jurisprudência está consolidada como verdadeira fonte do direito. Ocorre que tal constatação esbarra na premissa democrática de que somente detém legitimidade para criação do direito o legislador, que figura na qualidade de representante do povo. Afinal, não se elegem juízes... [6]
Do ponto de vista democrático, a criação do direito pelo juiz é um problema e, na mesma medida, o é a aplicação literal insuficiente da lei em termos de legitimidade e ordem social.
Talvez o maior e mais recente exemplo desta tensão no ordenamento jurídico brasileiro seja a discussão da possibilidade de prisão após condenação em 2ª instância. Sobre o tema, o STF já discutiu sua orientação jurisprudencial em três oportunidades distintas [7] e, a despeito da possibilidade de execução antecipada da pena, há também repercussão no Poder Legislativo, com o denominado Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/2019), enquanto a Constituição Federal, em seu art. 5º, LVII estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Nesta perspectiva, a limitação das reflexões filosóficas das escolas da exegese e do realismo jurídico em muito se assemelham, pois condicionam a formação dos juristas ao conhecimento e aplicação de fontes esgotáveis e que não superam a tensão entre a legitimidade dos poderes instituídos e a segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
[1] COSTA, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural. Brasília, 13 de out de 2020. Disponível em < https://novo.arcos.org.br/david-hume-e-a-negacao-de-uma-ordem-juridica-natural/> Acesso em: 28 de out de 2020.
[2] “[...] os discursos dogmáticos do dia-a-dia somente fazem referência ao direito positivo. Isso não quer dizer que as crenças jusnaturalistas foram abandonadas: é justamente o fato de que todos reconhecem os mitos contratualistas que eles podem permanecer no pano de fundo do senso comum.”
COSTA, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito no século XIX Brasília, 13 de out de 2020. Disponível em < https://novo.arcos.org.br/o-ocaso-da-filosofia-do-direito/> Acesso em: 28 de out de 2020.
[3] “A modernidade não produziu discurso positivista de legitimação, pois a dogmática positivista é marcada justamente por ela ter resolvido religiosamente a questão da validade, alçando-a à condição de dogma. Os discursos de fundamentação mantiveram seu caráter naturalista, ainda que disfarçado, o que deu margem a uma espécie de positivismo naturalista.”
Idem.
[4] STRECK, Lenio Luiz. E respondi a Moro: ‘Bah, com juízes como você, prefiro o originalismo’. Consultor Jurídico, 1 de out de 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-out-01/senso-incomum-respondi-moro-bah-juizes-voce-prefiro-originalismo>. Acesso em: 28 de out de 2020.
[5] Jair Messias Bolsonaro, em discurso durante culto evangélico na Câmara dos Deputados.
Bolsonaro diz que vai indicar ministro ‘terrivelmente evangélico’ para o STF. G1. Brasília, 10 de jul de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml>. Acesso em: 28 de out de 2020.
[6] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Entendendo a Filosofia do Direito - As correntes da filosofia do direito (3/4): O realismo e o pragmatismo jurídico. Gen Jurídico, 04 de abr de 2018. Disponível em <http://genjuridico.com.br/2018/04/04/entendendo-filosofia-do-direito-as-correntes-da-filosofia-do-direito-3-4-o-realismo-e-o-pragmatismo-juridico/> Acesso em 28 de out de 2020.
[7] STF volta a proibir prisão em 2ª instância; placar dois 6 a 5. Migalhas, 7 de nov de 2019. Disponível em <https://migalhas.uol.com.br/quentes/314723/stf-volta-a-proibir-prisao-em-2--instancia--placar-foi-6-a-5> Acesso em 28 de out de 2020.