A discussão acerca da existência de uma ordem jurídica natural, hoje, não parece ocupar um lugar central no imaginário dos operadores do direito. Essa suposta desimportância, no entanto, tem a sua razão de ser: na construção histórica do direito, que perpassa um debate de séculos acerca da natureza do direito, tal discussão tornou-se infrutífera.

A partir da Revolução Francesa, em um processo que consolidou a lei quase como um dogma a ser seguido pelos juristas, o jusnaturalismo perdeu seu espaço, por ser considerado um discurso, no mínimo, desnecessário. Mesmo que se reconheça a existência de correntes de raíz jusnaturalista na modernidade, como é o caso de contratualistas, a discussão acerca da existência de um direito natural resta em segundo plano, e é priorizado o debate acerca da validade desse direito, que costuma ser reduzido à validade da lei. (Costa, 2020)

“Deus está morto”. Esta reflexão de Nietzche em Gaia Ciência me parece refletir bem a questão. Hoje, é irrelevante a existência de um deus, assim como é irrelevante a existência ou não de um direito natural, uma vez que as ações humanas, as dinâmicas do mundo, já não se pautam por essas questões. Nesse novo cenário, a dualidade bem-mal, céu-terra, é rompida e a valoração que fazemos perante as situações diversas se encerra na vida real, que concentra todas essas dualidades.

Ainda assim, é certo que o Direito moderno tende a buscar a naturalização dos institutos e das relações sociais que, em determinado contexto, são consideradas necessárias para a manutenção da organização de uma sociedade. Ocorre, no entanto, que, por se pretender universal, esse direito se coloca acima dos elementos de moralidade, e, para escamotear questionamentos acerca da validade do direito, é criada a “ficção” de que esse direito advém de critérios  racionais, para além da mera positivação da moral.  (Costa, 2020)

Essa, inclusive, é uma herança positivista evidente na obra de Hans Kelsen, o jurista que introduz o direito para a maioria de nós, estudantes. Pelo autor, o direito não é refém de um ou de outro critério moral, mas se justifica por critérios racionais, por poder de decisão. Ironicamente, quando da publicação de sua Teoria Pura, Kelsen foi criticado por setores da esquerda e da direita, que acreditavam que sua teoria, em tese vazia de conteúdo político, concentrava uma série de elementos morais.

Essa pretensão que tem o direito moderno de se mostrar racional e imparcial faz com que a discussão acerca da natureza das normas seja costumeiramente ignorada, para dar lugar a uma fundamentação mais prática, que esvazia o direito.

Aqui, o empirismo de Hume se coloca no sentido de que a razão humana apenas abarca aquele conhecimento adquirido pela experiência, e aquilo que valoramos como bem ou mal, individualmente, é mera consequência de sentimentos, mesmo que compartilhados, que são convertidos em conteúdo moral e, daí, positivados. (Costa, 2020)

Para Carnelutti, existe uma verdade, e uma apenas, mas que não pode ser alcançada pelo homem. Nesse sentido, a verdade possível está em excluir todas as outras possibilidades: é porque não é outra coisa. No universo do direito, isso significa que o processo não deve buscar a verdade, mas a certeza, do latim cernere, que seria traduzido como escolha.

Assim, se do direito não se pode chegar a uma verdade absoluta, em sociedades plurais como a nossa, fugir dessa espécie de pergunta é o que há de mais cômodo: se as leis são válidas, internamente, sistematicamente, e devem ser obedecidas, não há futuro, em termos práticos, em questionar seu fundamento filosófico. Desse modo, se as leis serão alteradas, é uma questão escolha política, mais que baseada em valores intrínsecos à natureza humana.

Costa, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural. Arcos, 2020.
Costa, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito. Arcos, 2020.
Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os procuradores de estado. 1997
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998.
Nietzche, Friedrich. Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2008