Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.

A existência ou não de uma ordem natural sempre foi um dos temas mais caros aos filósofos em geral. Desde os primórdios da filosofia na Grécia, se discute sobre o mundo ser guiado por uma ordem e se essa ordem seria compreensível pela mente humana.  Na filosofia clássica havia certo consenso de que seria necessária a existência de uma ordem natural para trazer paz, ordem e segurança. Essa ordem natural adquire diversas feições de acordo com o povo e contexto histórico analisado. Ora há uma invocação divina, ora recorre-se a elementos sacros como, por exemplo, a natureza humana para explicar a origem da suposta ordem natural (Hervada, 2008).

Isso pode ser percebido ao se analisar a “viagem” da palavra “constituição”, cujo sentido foi transformado ao longo da história. De politeia, na Grécia Antiga, para constitutio para os romanos, e verfassung para os medievais. O que existe em comum nas constituições pré-modernas? Envolvem sempre uma descrição de algo que é, que já existe, como funciona a estrutura de poder: a ordem natural.

Ocorre que, com o advento da revolução científica, houve uma maior compreensão dos fenômenos físicos sem, entretanto, o correspondente desenvolvimento de teorias que explicassem o porquê do cosmos funcionar da maneira descrita pela ciência. Essa pergunta sobre conceitos mais abstratos ficou renegada ao campo do conhecimento da metafísica, que é vista com certa estigmatização até mesmo pelos filósofos (Costa, 2020). Isso porque muitos consideram essa reflexão inócua e carente de aplicação prática.

Houve, portanto, uma valorização muito maior do método científico em detrimento das explicações mais conceituais e abstratas propostas pelos filósofos metafísicos. Esse fenômeno foi a origem do positivismo: corrente filosófica que preleciona que as ciências sociais devem se basear no método científico.

Em um contexto no qual as descobertas científicas alteravam abruptamente as noções de mundo que as sociedades tinham na época, ganhou força a percepção de que a ciência era capaz de solucionar e explicar todos os problemas e questões da nossa existência. É justamente nesse cenário que surge o movimento positivista, cujo precursor foi o filósofo Augusto Comte, apoiado na ideia de que os conhecimentos reais se apoiavam em observações empíricas (Comte, 1983).

Nesse sentido, como a ciência não se debruça sobre a existência ou não de uma ordem natural, essa pergunta ficou esquecida e tratada como algo irrelevante para o desenvolvimento das ciências sociais. A ciência clássica opera no método de causa e consequência. Esse método revela-se incompatível com a questão da existência da ordem natural, uma vez que ela seria justamente a causa primeira de todos os fenômenos.

Essa digressão acerca da ordem natural na perspectiva extrajurídica não é inócua. Isso porque, na seara do direito, a compreensão sobre a existência da ordem natural acompanhou o percurso descrito acima.

No âmbito do direito havia, em organizações sociais mais antigas e arcaicas, uma crença disseminada de que as pessoas deveriam agir conforme a ordem natural. Na linha do dito anteriormente, a depender do povo estudado e da cultura, a causa dessa ordem natural tinha diversas explicações: Michel Rosenfeld (2003) explica que a identidade surge para preencher o espaço entre o “eu” e o “outro”, que varia conforme os fatores sociais, culturais, históricos, políticos, espaciais, temporais etc.. Geralmente,  essa identidade girava em torno da vontade de uma divindade. Nesse contexto, o direito não era construído pelos homens, mas sim descoberto, na medida em que todo o direito já estava estabelecido pela chamada ordem natural.

Com o aumento da complexidade social e o surgimento do Estado moderno, tornou-se difícil a crença compartilhada em uma única ordem natural. Isso porque os povos tendem a internalizar o que chamam de ordem natural valores próprios de sua cultura e identidade como povo (Costa, 2020). Dessa forma, povos diferentes enxergaram por ópticas diversas a tal ordem natural:  “[s]ó podemos observar algo com os olhos que temos, marcados socialmente e historicamente datados, e não com supostos olhos divinos e atemporais. Nossos olhos são sempre os olhos de uma sociedade determinada, de determinada época” (Carvalho Netto, 2003, p. 151).

Não ter se atentado a essa lente, a esse paradigma, parece ter sido a armadilha em que Kant caiu. Ao defender o imperativo categórico como uma lei moral universal (Kant, 2001), projetou sua própria visão de mundo e seus valores, que certamente foram condicionados histórica e culturalmente: dificilmente haverá um kantiano chinês, visto que os valores do povo chinês são deveras diferentes dos ocidentais. Portanto, o imperativo categórico para um chinês certamente será diferente do de um alemão, e este diferente do de um brasileiro, que é diferente do indiano, e assim em diante.

A impressão que se passa é a de que a tentativa de universalizar a moral é inócua, uma vez que a moral é contingente (Costa, 2020). A moral nada mais é do que algo que se passa na cabeça de um ser humano. Portanto, em sendo o ser humano um animal condicionado pelo seu meio histórico, social e cultural, nada mais natural do que a moral variar também. É uma decorrência biológica da psicologia humana. Seria ingênuo acreditar na existência de direitos naturais independentes do contexto subjacente a eles. Até mesmo pessoas visionárias e à frente de seu tempo como Sócrates e Aristóteles achavam natural a escravidão. Isso não ocorria por eles serem pessoas ruins, mas apenas porque a mente humana é inexoravelmente condicionada pelo contexto em que está inserida.

Nesse sentido, parece acertada a conclusão de Hume, na medida em que as crenças humanas são sempre artificiais e contingentes. Não parece haver uma ordem natural universal e atemporal que determine a moralidade humana e consequentemente o direito (Hume, 2009). Ao contrário, as descobertas recentes da psicologia comportamental dão conta de que a mente humana é altamente sugestionável pelo seu meio e apresenta um viés de confirmação fortíssimo (Kahneman, 2011).

Portanto, resta ao ser humano compreender que o direito é mesmo uma invenção puramente humana e que não há, ao contrário do escrito na declaração dos direitos do homem, qualquer ordem natural que garanta direitos inatos aos seres humanos.

Os operadores do direito moderno, aparentemente ignoram essa discussão tratada neste post. A maioria dos juristas não debate seriamente a existência ou não de uma ordem jurídica natural. Eles preferem fugir do tema e tratá-lo como um mito. Essa postura é perigosa, uma vez que até mesmo a declaração do homem e do cidadão encampou expressamente a tese de que existiriam direitos naturais.

O próprio positivismo jurídico não enfrenta diretamente esse tema.  Seu grande problema é tentar importar o método científico para analisar um campo do conhecimento que tem como objeto a sociedade e o comportamento humano. Justamente por isso, o positivismo jurídico é uma teoria muito limitada para explicar o fenômeno do direito, uma vez que ignora os fatores sociais, hermenêuticos e argumentativos que são ínsitos ao fenômeno jurídico. A teoria pura de Kelsen, por exemplo, dedica pouquíssimas páginas à teoria hermenêutica e sequer trata de argumentação jurídica, um tema que hoje é central para a análise do direito. Na mesma linha, H.L.A. Hart (2012) propõe a distinção entre pontos de vista interno e externo, o primeiro realizado por atores políticos dentro do sistema jurídico e o segundo por pessoas de fora desse sistema

Isso também é resultado de uma visão extremamente empírica, advinda da teoria positivista clássica do século XIX que tratava fenômenos sociais como coisas, e ignorava que ordem e caos não estão em diâmetros opostos de um espectro, mas coexistem no mesmo plano, o das relações humanas. À vista disso,, aponta-se que:

Fenômenos caóticos, apesar de existirem em abundância, foram ignorados pelas ciências exatas; porque a sociedade do trabalho conseguiu no processo de sua formação usar as causalidades descobertas de uma forma produtiva. Assim a sociedade industrial confirmou com o sucesso da aplicação o determinismo das ciências exatas, que só- se referiam a alguns aspectos do mundo objetivo (Brüseke, 1991, p. 39)

Buscava-se criar, nesse sentido, uma racionalidade para o caos. O que se vê na contemporaneidade é uma reação assustada da sociedade no que diz respeito à confrontação com fenômenos caóticos, pois influenciados pelos ideais do positivismo clássico e pela ideia de ordem natural, apresentamos dificuldade em observar a sociedade fora dos moldes e estruturas que nós mesmos criamos para ela.

Desenvolveu-se assim uma concepção unidimensional dos fenômenos sociais e humanos, ignorando as variáveis da natureza, da consciência humana e até da própria racionalidade. “A tese da existência de leis do movimento da sociedade e a previsão do fim da história, eliminou a categoria central das ciências humanas: a liberdade. Ela, entendida como capacidade humana da criação de normas próprias, confronta-se com as estruturas sociais e econômicas e não existe sem o meio biofísica.” (Brüseke, 1991, p. 40)

Portanto, verifica-se que atualmente o tema da (in)existência de uma ordem natural é tratada como um mito, como um tabu, no sentido de que pouco se fala a respeito, e de forma esparsa o direito natural é usado como um trunfo argumentativo que carece de maior densificação. Ao tentar impor regras e modelos das ciências exatas às relações sociais - que se frise, até para o mundo científico são controversas, considerando que não é incomum que uma teoria científica tenha uma ou mais exceções -, a sociedade tenta domar a inconstância do mundo em que vive.

Parece-nos, assim, que a forma da humanidade lidar com o caos de sua existência, foi criar uma ordem artificial, dando ao mundo uma aparente constância e estabilidade, que por si só, não é natural, apesar de se basear em mitos fundantes como comunidades imaginadas (Anderson, 2008) e a soberania do povo.

Referências Bibliográficas:

Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Brüseke, Franz Josef. Caos e Ordem na Teoria Sociológica. Rev. de C. Sociais, Fortaleza, V. XXII, N.os (1/2) : 39-67, 1991

Carvalho Netto, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In.: Sampaio, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 141-163.

Comte, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Costa, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural. Arcos, 2020.

Costa, Alexandre. A filosofia o cultivo das dúvidas sobre o direito, 2020.

Costa, Alexandre. O jusnaturalismo racionalista de Immanuel Kant. Arcos, 2020.

Costa, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito. Arcos, 2020.

Hart, H. L. A.. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Hervada, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. 2 ª ed. Martins Fontes, 2008.

Hume, David. Tratado da natureza humana. 2 ª ed. São Paulo. UNESP, 2009.

Kant,  Immanuel. Crítica  da  Razão  Pura. 5ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998.

Kahneman, Daniel.Rápido e devagar: duas formas de pensar São Paulo: Objetiva, 2012.

Rosenfeld, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.