Autores: Bárbara de Oliveira Aguiar, Lucas Moreira Ribeiro, Ludmila Laiara de Oliveira Queiroz, Mário Pereira Machado Filho, Samuel Lucas Machado Lopes.

Introdução

Em “O Ocaso do Jusnaturalismo”, o Prof. Dr. Alexandro Araújo Costa analisa o cenário jurídico contemporâneo e propõe o seguinte diagnóstico: a maioria das pessoas, incluindo juristas, acredita em direitos naturais, mas isso se dá de forma “silenciosa”, sem impactos significativos na prática jurídica.

Este artigo buscará demonstrar que, conforme elucidado por Costa, os direitos naturais ainda influenciam o direito contemporâneo, mas não somente de forma silenciosa. Dessa maneira, Expor-se-á que, no mundo jurisprudencial, a retórica jusnaturalista ainda se faz ativamente presente e fundamenta decisões importantes nos tribunais.

Desenvolvimento

A práxis jurídica contemporânea padece de uma grave patologia: a incapacidade de questionar a si própria. Para além do reduzido círculo de intelectuais preocupados com uma fundamentação filosófica sólida do direito, são raras as compreensões que ultrapassam a aplicação acrítica da norma posta.

Dentro da rotina dos tribunais e repartições públicas, não se pode culpar a aplicação rápida e eficiente do direito. Afinal, o que se busca é justamente o funcionamento astuto da máquina jurisdicional. O problema ocorre quando a mesma apatia é vista no lugar em que mais se deveria discutir os fundamentos do direito: as universidades.

Dentro das milhares de faculdades do país, o ensino dogmático, direto, bancário, é a regra. Busca-se, afinal, lograr aprovação em um concurso público, passar na OAB ou saber a legislação na ponta da língua para uma entrevista de escritório. A análise crítica do que se estuda, quando muito, fica adstrita a um punhado de matérias, escondidas no início do curso ou no fim do curso. Neste caso, os alunos estão ocupados com “coisas mais úteis”, como a elaboração de seu trabalho de conclusão de curso ou a busca por um emprego. Naquele, os egressos ainda não possuem conhecimento suficiente para saber o que se critica.

Dentro dessa lógica, o Brasil forma, anualmente, estudantes que reproduzem bordões acadêmicos acriticamente, sem conhecer as suas respectivas fundamentações (quando de fato existem). Dentre esses falsos axiomas, é provável que um dos mais repetidos entre eles é a ideia de que o direito contemporâneo superou o jusnaturalismo.

Mesmo em um ambiente privilegiado como a Universidade de Brasília, centro universitário que valoriza a postura crítica, não foram raras as vezes em que pude presenciar colegas e discentes se referindo à ideia de direitos naturais em tom jocoso. Quando não, citavam o jusnaturalismo enquanto uma teoria caduca, superada, destinada a ocupar espaço somente nos manuais de história e filosofia do direito. Há que se questionar, entretanto, até que ponto a práxis jurídica e seus fundamentos superaram essa tese.

O jusnaturalismo encontra suas raízes já nos primórdios da vida humana em sociedade. Entre os gregos, Antiseri e Reale (2017, p. 79) apontam para Hípias de Élida como o precursor da distinção entre direito natural e direito positivo. Segundo o filósofo, o primeiro é eternamente válido, enquanto o segundo é contingente, fruto do arbítrio dos homens.

Até a modernidade, o jusnaturalismo encontrava forte acolhimento nos círculos intelectuais. É na idade média que surge o seu mais brilhante defensor, São Tomás de Aquino. Profundamente inserido na cosmovisão cristã, o doutor angélico defende que a lei moral natural, um reflexo da lei eterna divina, é a totalidade dos preceitos ou ditames universais da reta razão que dizem respeito ao bem que se deve buscar e ao mal que se deve evitar (Copleston, 2020, p. 193).

Entre os modernos, os fundamentos do jusnaturalismo se modificam. Se antes decorriam os direitos naturais do cosmos ou de Deus, agora passam a emanar da própria natureza humana (Nader, 2018, p. 154). Essa nova forma de pensar se torna combustível para as revoluções liberais, conforme aponta Costa (2020):

Com Locke, o jusnaturalismo se encontrou com os direitos do homem à liberdade e à propriedade. Com Rousseau, o contratualismo se encontrou com um radical direito de igualdade que conduziu à perspectiva democráticade um governo cuja legitimidade se dá a partir da representatividade popular. As revoluções burguesas foram justificadas com base nessa mistura de liberalismo e democracia, que combina vontade popular e garantia dos direitos individuais.

Levada às últimas consequências pelos iluministas, a ideia de um direito natural antropológico apreendido pela razão foi valorizada ao ponto de se entender como possível a extração não só de princípios universais e genéricos, como o direito à vida e à propriedade, mas também de regras detalhadas para a vida humana em sociedade. É justamente dessa noção que surgem os esforços de codificação, principalmente nos ordenamentos francês e alemão.

Por outro lado, conforme bem aponta Costa (2020), justamente a o apogeu do direito natural, expresso na codificação,  foi também a razão da sua decadência. Afinal, se tudo está codificado, previsto na norma, o raciocínio de apreensão do direito natural torna-se desnecessário:

No século XIX, as revoluções triunfantes não precisavam de uma fundamentação filosófica, pois a hegemonia dos seus universos simbólicos era tamanha que dispensava um discurso justificador. Os códigos, as máquinas a vapor, as linhas de trem e as construções de ferro esses eram símbolos de uma nova era e signos de uma modernização que gerou um progresso material sem precedentes. A força da ciência, da economia industrial e dos códigosera tão grande que um questionamento filosóficoda sua validade soava arcaico, quando não completamente fora de lugar.(...) A Revolução Francesa representou o apogeu do direito natural iluminista, mas também marcou o início de um processo em que o discurso jusnaturalista perdeu espaço, não por ser errado, mas por ser desnecessário. Nesse processo, o culto à lei e a utopia da codificação deixou de ser uma inovação a ser justificada pelos filósofos, e passou a ser um dogma a ser conservado pelos juristas.

Em conclusão, Costa (2020) defende que, embora o avanço do juspositivismo tenha enfraquecido o jusnaturalismo, o direito contemporâneo continua colecionando diversos pressupostos “naturais”, a exemplo da autodeterminação dos povos, a vedação à escravidão e a igualdade de gênero. Em virtude da codificação, a retórica jusnaturalista serviria agora somente enquanto “peça de decoração”, uma xícara que “sem uso, nos espia do aparador”.

Em vista do exposto, considera-se que o diagnóstico proposto por Costa é parcialmente correto. Afinal, é verdade que as estruturas de pensamento jusnaturalistas ainda povoam o direito, mesmo que não se perceba. Aliás, é essa a característica marcante das ideologias inauguradas no século XX: a eleição de dogmas e objetivos tão auto evidentes e naturais que estariam além da possibilidade de questionamento. Não sem razão, Eric Voegelin denunciava o caráter profundamente religioso da linguagem política, que se apossava de símbolos do sagrado: a ecclesia (comunidade, nação), os mediadores entre o sagrado e o profano, os mitos fundadores (2002, p. 84-85).

A título de exemplo, tomemos a nossa constituição. Costa (2020) adverte que são evidentes os traços jusnaturalistas existentes na ideia de uma “soberania do povo”, um conceito que independe de justificação e funda o documento constitucional. Pode-se encontrar, entretanto, diversos outros elementos (pré) supostos, elegidos como naturais e inerentes a uma sociedade saudável: a democracia, a separação de poderes, a propriedade, a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana.

Para além do texto constitucional, é certo dizer que o jusnaturalismo também encontra amparo em outras fontes do direito. Dessa maneira, é principalmente na prática dos tribunais que podemos encontrar a retórica dos direitos naturais com mais força. Por essa razão, com a devida vênia, diverge-se da ideia de que, atualmente, os direitos naturais não passam de peça de decoração, conforme defendido por Costa. Para tanto, expor-se-á, a seguir, algumas decisões judiciais que retiraram dos direitos naturais, em alguma medida, os seus fundamentos.

No Habeas Corpus 84.851-6 BA, o relator Ministro Marco Aurélio de Mello deu razão ao impetrante, um fugitivo que alegava ausência de fundamentação em mandado de prisão expedido contra ele. O que chama a atenção no caso é a fundamentação empregada pelo magistrado para o deferimento: “a fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo”.

Não há que se duvidar de que a posição adotada pelo ministro adotou retórica manifestamente jusnaturalista, ao trazer à lume a ideia de que, paralelamente à ordem institucionalizada pelo Estado, subsiste uma ordem superior, não inscrita, natural (NADER, 2018, p. 168).

Também é relevante apontar a decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC: 337183 BA 2015/0242930-0. Embora tenha denegado o pedido do requerente, o tribunal não deixou de adotar uma retórica que remete aos direitos naturais do homem, oponíveis mesmo contra o próprio Estado:

4. O indivíduo, em sua relação com o Estado, não é mais, por óbvio, aquele súdito a quem só cabia cumprir, bovinamente, as ordens do monarca; é um cidadão, regido por um Estado Democrático de Direito, com o qual simbolicamente celebra, para a convivência em sociedade, um pacto de consentimento (na dicção de John Locke), em razão do qual somente a preservação da autoridade estatal garante o respeito às suas próprias liberdades públicas, ainda que, paradoxalmente, esteja uma delas in casu, a liberdade de locomoção, temporariamente suprimida.5. Evidentemente que poderá haver ordens formal e/ou materialmente ilegais e contra essas emanações do poder estatal a resistência é um direito natural. Sem embargo, no âmbito das relações processuais penais, o órgão legitimado a interpretar e aplicar a lei é apenas o juiz ou tribunal competente, investido do poder de dizer o direito (juris dicere). E, ao decidir sobre a liberdade ou algum outro bem ou interesse do indivíduo, erros que venham a ser cometidos deverão ser sanados pelo próprio Poder Judiciário, por meio dos mecanismos processuais próprios, entre os quais o mais festejado, o habeas corpus.STJ - HC: 337183 BA 2015/0242930-o, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 16/05/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/05/2017

Válido mencionar, ainda, decisão da sétima câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em prol do direito natural à vida:

3. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem, constitui direito natural inalienável de todo o ser humano e é, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. Recurso desprovido.(TJ-RS - AI: 70081490799 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 31/07/2019, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 02/08/2019)

Enfim, tanto nas cortes superiores quanto nos Tribunais de Justiça, ainda se pode perceber que a tese jusnaturalista ainda possui fôlego, servindo como fundamentação para diversas decisões. Embora tímido, o jusnaturalismo ainda não se calou.

Conclusão

A contemporaneidade ainda não superou o jusnaturalismo. Embora estejam em voga as escolas historicistas e pós-positivistas do direito, é fato que a práxis jurídica permanece impregnada pela aplicação dos direitos naturais.

Vê-se no constitucionalismo a assunção de diversos pressupostos que, para muitos, apresentam-se como autoevidentes, impassíveis de críticas e questionamentos, posto que derivados da “ordem natural das coisas”. A soberania popular, a dignidade da pessoa humana, a liberdade e outros direitos fundamentais são sempre pontos de partida, metaconceitos que devem orientar a atuação de qualquer jurista, independente de seus fundamentos filosóficos.

Nesse sentido, é correta a tese de Alexandre Araújo Costa ao diagnosticar a presença de um jusnaturalismo latente, lânguido, que geralmente depende da mediação do direito positivado. Por outro lado, a partir da análise da prática jurisprudencial pátria, foi possível perceber que os direitos naturais ainda não perderam completamente o seu fôlego, servindo de fundamentação jurídica para diversos casos.

Referências Bibliográficas

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2017. v. 1.

COPLESTON, Frederick C. Tomás de Aquino: Introdução à vida e à obra do grande pensador medieval. 1. ed. São Paulo: Ecclesiae, 2020.

COSTA, Alexandre. O ocaso do jusnaturalismo. 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/o-ocaso-da-filosofia-do-direito/. Acesso em: 13 set. 2021.

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 25. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

STF - RHC: 83851 BA, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 25/09/2004, Data de Publicação: DJ 06/10/2004 PP-00027

STJ - HC: 337183 BA 2015/0242930-o, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 16/05/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/05/2017

TJ-RS - AI: 70081490799 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 31/07/2019, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 02/08/2019

VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. 1. ed. Lisboa: Vega, 2002.