Discentes: Guilherme Aranha, Izabela Lemes, Lucas Orsi, Sofia Vergara, Tiago Reis, Walter Cunha.

As orelhas aos teus com cera tapes,
Ensurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros. (HOMERO, 2019)

Tomando emprestada a metáfora de Jon Elster (2009), o constituinte, assim como o herói grego Ulisses, se amarra - e amarra os outros atores constitucionais - ao mastro de seu barco, porque quer ouvir - e precisa de ouvir - o canto mágico das sereias. Ele conhece o suficiente de si mesmo e das sereias para saber de antemão que não será capaz de resistir à tentação do canto. A maneira mais prudente para tanto é se utilizar da “ajuda” de uma corda para prevenir que saia do barco rumo à sua morte quando enfeitiçado pelas sereias.

Constituições diferem dependendo de quando e de onde nós, a tripulação de Ulisses, esperamos ouvir o canto das sereias. Constituições decidem o quão apertado nos amarramos ao mastro e quão fácil é se libertar da corda. Com o caminhar conjunto - mas não necessário e inevitável - da democracia com o constitucionalismo, o canto das sereias passou a ser uma voz de dentro: a sede por mais poder é a nossa vontade (ou ao menos é o desejo da maioria que se encontra no poder).

Uma vez amarrado, Ulisses não pode ser persuadido pelas sereias a bater seu barco e sua tripulação na encosta rochosa. Contudo, nessas condições, o barco não chegará à longínqua Ítaca. No momento do canto, a direção do barco já estava acertada e a tripulação não precisou de mudar seu curso. Mas há outras condições: a tripulação também precisa de concordar em incapacitar seu comandante e - até mais importante - deve reconhecer o momento crítico em que é seguro libertar Ulisses de sua amarra.

Essa relação, apesar de referente a uma constituição, pode ser útil para analisarmos o capítulo “O grande inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski (2012).

Quinze séculos passados desde a prometida volta do Senhor, a tripulação, à deriva, sem conseguir chegar à tão sonhada e esperada Ítaca, não viu outra opção senão desatar Ulisses. Liberto, nem mesmo a volta de Jesus foi capaz de amarrá-lo de novo: “amanhã mesmo eu te julgo e te queimo na fogueira como o mais perverso dos hereges” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 347). Parece que desatar Ulisses é um verdadeiro calcanhar de Aquiles.

Para maior ilustração, do monólogo do grande inquisidor convém destacar a ressignificação do Senhor pelo clérigo.

Da mesma forma que diversas constituições proclamam que todo poder emana do povo, todo poder da Igreja emana de Deus.

Já falamos que o povo é uma construção discursiva - simbólica, representativa, fragmentária - para preencher um vazio, um hiato no lugar e no momento em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade. A chave é como se dá a construção do discurso para preencher essa moldura. Uma vez completo o espaço, sua utilidade se esvai. A instrumentalização da figura do Senhor, na obra de Dostoiévski, é um excelente exemplo disso.

Comprando os fiéis com o pão terreno, mundano, material, em detrimento do pão celeste, o grande inquisidor afirma deter a liberdade dos homens e se deixa absorver pelo mundo, a ponto de quase excluir Deus de seu universo, mesmo que em nome dele fale todo o tempo e conduza os homens como um rebanho: “isso nos custou muito caro, mas levamos a cabo aquela obra em Teu nome” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 348). Um dos perigos desse discurso aparentemente fundamentado é sua desvirtuação: “felizmente, ao partires, nos transmitiste Tua obra, concedendo-nos o direito de ligar e desligar e, decerto, não podes imaginar em retirá-lo agora” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 353).

Paralelamente às dimensões literária e religiosa, Kim Lane Scheppele (2018) chama a atenção que, por meio dos instrumentos e caminhos democráticos, agentes políticos buscam subverter a própria democracia. Mesmo antes de Scheppele, Karl Loewenstein (1937) – ainda na década de 1930, preocupado com a ascensão do fascismo na Europa – trabalhou com o conceito de “democracia militante”, que seria um mecanismo de autodefesa constitucional, por meio do qual um regime se protegeria proativa e ativamente contra o totalitarismo e a intolerância: algumas liberdades democráticas poderiam ser restritas com o fito de, ante uma ameaça – mascarada pelo uso de meios legais –, se proteger o regime.

É interessante traçar algumas considerações a respeito da proposta de Loewenstein. Da mesma forma do discurso do grande inquisidor, a depender do conceito que se adote de democracia, pode haver uma subversão de sua ideia. Tome-se como exemplo a ditadura militar brasileira:

Uma das características do regime inaugurado em 1964 foi a tentativa incessante de revestir as medidas de exceção de legalidade e juridicidade. Ainda que se tratasse de um governo autoritário, era fundamental manter uma estrutura minimamente similar ao Estado de Direito. Só assim é possível compreender alguns fenômenos: (1) o Congresso Nacional não foi fechado; (2) os partidos políticos não foram extintos; (3) houve intensa atividade legislativa posterior à tomada de poderes pelos militares; (4) os tribunais continuaram funcionando. Houve, evidentemente, cassações, expurgos, demissões e perseguições, como ocorre em qualquer regime autoritário. Mas isso não significou a completa ruptura com o arcabouço institucional construído no período democrático (PAIXÃO, 2014, p. 429)

A uma primeira mirada, não seria de todo estranho – claro, restringindo-se apenas a esses elementos estritamente formais –, classificar – ainda que apenas para efeitos de se problematizar o conceito de Loewenstein – a ditadura militar como uma democracia.

Ora, se o próprio regime se via – ou ao menos tentava se fazer visto – como uma democracia, contra quem lhe fazia oposição poderia utilizar-se dos instrumentos da democracia militante, justamente por que atuariam “contra a democracia”. Desse modo, preventiva e ativamente os militares poderiam, por exemplo – e como fizeram – suspender direitos e garantias individuais para manter o status quo, o establishment, subvertendo o próprio ideal do instituto. A legitimidade de seu uso, portanto, estaria condicionada também a uma mera construção discursiva.

Daí se conclui que nada garante que uma constituição, ainda que democrática, gere uma democracia: “essas pessoas estão mais convictas do que nunca de que são plenamente livres, e entretanto elas mesmas nos trouxeram sua liberdade e a colocaram obedientemente a nossos pés” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 348).

Pode-se pensar, nesta linha, no caso chileno. O golpe de Pinochet foi em 1973 e a Constituição é de 1980. Mesmo após a redemocratização do país em 1990, manteve-se a Constituição da ditadura. E por quê? Porque ela foi pensada para resistir a uma mudança e, de algum modo, ao menos até o plebiscito de outubro de 2020, foi bem sucedida. Isso porque a “fábrica constitucional” (SAJÓ; UITZ, 2017) chilena, mesmo mudando seus operadores, não alterou sua “sala de máquinas” (GARGARELLA, 2013): a resistência ao projeto democrático. Esse foi o projeto de futuro de Pinochet, e buscou vinculá-lo ao país por meio de sua constituição.

A tomada de poder por meio de armas e de tanques, atualmente, chega a ser démodée. O projeto dos autocratas é mais amplo e mais inteligente, de sorte que essa instrumentalização da constituição e essa máscara legalista de que fazem uso (SCHEPPELE, 2018) nos levam a duas das três espécies de ansiedade existencial expostas por Alice Ristroph (2009): uma concerne à dúvida sobre a possibilidade, sobre o futuro do estado de direito, enquanto a outra, ao receio de que a resposta a “para que serve a teoria constitucional?” seja “absolutamente nada”.

Uma frase irônica de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha Nazista, parece consubstanciá-las: “sempre será uma das melhores piadas da democracia o fato de que ela dá aos seus inimigos mortais os meios para destruir a si própria”. Na mesma linha enfatiza o grande inquisidor: “Que importa se hoje ela se rebela em toda a parte contra nosso poder e se orgulha de rebelar-se? É o orgulho de uma criança e de um escolar. São crianças pequenas que se rebelaram na turma e expulsaram o mestre. Mas o êxtase das crianças também chegará ao fim, ele lhes custará caro” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p. 355).

Entre o poema do grande inquisidor, que se passa no século XVI, contado por Iván, personagem de "Os irmãos Karamázov", livro publicado em 1880, e 2020, são quase 500 anos de história. A percepção dos paralelos de então com a atualidade podem levar a estas questões: será que é melhor deixar Ulisses amarrado ao mastro, ficar à deriva e tentar a sorte? Ou será que é melhor desatá-lo, abrir mão da liberdade e ser comprado pelo pão material?

Para se chegar a uma resposta a "para que serve a teoria constitucional?", é preciso de se deixar claro que o grande inquisidor não está com, mas apenas contra Jesus, da mesma forma que não existe democracia constitucional com, mas apenas contra (MOUFFE, 1992) legalistas autoritários que resgatam oportunisticamente as ideias de Carl Schmitt (1996), para quem a constituição é a decisão política fundamental do soberano, que poderia suspendê-la ou alterá-la a seu bel-prazer.

A constituição para os governantes, assim como Jesus para os clérigos, serve para limitar sua ação. É por isso que - sobretudo - em face de ameaças à sua ordem, deve ser mais protegida e salvaguardada, sem deixá-la ser desmembrada, reescrita ou ressignificada conforme os interesses de governantes com tendências autoritárias e de maiorias ocasionais.

Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2012.

ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: UNESP, 2009.

GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the constitution. Oxford: Oxford University Press, 2013.

HOMERO. Odisseia. Mimética, 2019, ebook.

LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, 1. The American Political Science Review, v. 31, n. 3, 1937, p. 417-432.

MOUFFE, Chantal. Penser la démocratie moderne avec, et contre, Carl Schmitt. Revue française de science politique, v. 42, n. 1, 1992, p. 83-96.

PAIXÃO, Cristiano. Autonomia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência constitucional brasileira (1964-2014). Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, v. 43, 2014, p. 415-460.

RISTROPH, Alice G. Is Law? Constitutional crisis and existential anxiety. Constitutional Commentary. v. 25, p. 431-459, 2008-2009.

SAJÓ, András; UITZ, Renáta. The Constitution of Freedom: An Introduction to Legal Constitutionalism. Oxford: Oxford University Press, 2017.

SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic legalism. University of Chicago Law Review, n. 85, 2, p. 545-583, March 2018.

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1996.