Autores: Adriano Augusto Araújo Magalhães, Carlos Alberto Rabelo Aguiar, Guilherme Domingos dos Reis, Jhonas de Sousa Santos, Raíck Junio dos Santos Silva e Rebeca Cristina Pereira Araújo.

Atualmente, a concepção de uma ordem natural subjacente à própria realidade física manifesta-se de maneira profícua no imaginário social compartilhado pela maioria da população brasileira. Em razão disto, propõe-se discutir e contrapor a definição de Estado laico com a desvirtuação política da religiosidade, empregada pelos governos.

Em diálogo com os ensinamentos da tradição grega, a noção de harmonia só pode prevalecer na medida em que forem presentes a ordem natural, os deveres tradicionais e a ordem política de modo equilibrado no mesmo sistema (COSTA, 2021, p. 17-19). Sobre a ótica governamental brasileira ora vigente, é possível identificar que o Estado roga por uma tradição religiosa revestida por um ordenamento positivo que declara constantemente a defesa de determinados valores morais, os quais são manuseados como ferramenta de instauração do que é chamado de “ordem”.

Ou seja, em que pese a centralidade ocupada pela figura do Estado — em conjunto com o acompanhamento em tempo real dos atos das instituições públicas —, a contemporaneidade permanece em diálogo com as tradições humanas, nas quais se incluem, dentre outros: os valores morais, as crenças pessoais, as filosofias universais e, especialmente, as religiões milenares.

Não obstante, o avanço da modernidade está amparado por um nítido processo de progresso científico — nos quais se inserem os valores e técnicas empregadas pelas diversas ciências humanas e naturais. A secularização, que pode ser caracterizada pelo declínio da religião, resulta na possibilidade de expressão das individualidades, que não passam mais a se sujeitar exclusivamente aos interesses do monopólio religioso. Neste diapasão, a secularização está intimamente relacionada ao surgimento da liberdade de crença e do pluralismo religioso.

Em complemento, a laicidade pode ser analisada sob a ótica de afastamento da igreja e do Estado e, simplificadamente, define-se como a ausência de uma religião oficial contida na esfera pública. Embora essa diferenciação permita a inclusão de alternativas religiosas à hegemonia de um único credo na esfera civil, os conceitos de laicização e secularização “são processos sociais que não podem ser generalizados e universalizados”. Ou seja, ambos os processos não ocorrem de maneira universal e linear, sendo necessário distinguir a experiência histórica de cada país (RANQUETAT JR, 2008, p. 67-71).

Apesar de toda a problemática existente por trás dessas categorias, o Estado brasileiro é considerado —  ao menos teoricamente — laico. Entretanto, devido ao fato de a história nacional ser hegemonicamente marcada pela forte presença religiosa cristã (neopentecostais e católicas apostólicas romanas), a inauguração do laicismo não quebrou com as barreiras que dizem respeito à promoção da tolerância religiosa e de culto ao longo do território. Muito pelo contrário, “a separação Igreja-Estado no Brasil, estabelecida com o advento da República, não pôs fim aos privilégios católicos e nem a discriminação estatal e religiosa às demais crenças, práticas e organizações mágico-religiosas, sobretudo as do gradiente espírita” (MARIANO, 2011, p. 249).

Como infeliz decorrência desse cenário, percebe-se que os preceitos religiosos das aludidas religiões hegemônicas têm sido frequentemente distorcidos e utilizados intencionalmente para legitimar governantes que promovem discursos supostamente “sagrados”, os quais ridicularizam os direitos humanos e disseminam uma concepção generalizada de assertividade e razão incontestáveis do que constitui a verdade das coisas. Este discurso de alienação, amplamente divulgado em meio aos governados e nas mídias sociais, traduz-se em uma influência negativa direta aos valores democráticos e do significado atribuído à prática da política pela população brasileira.

Destarte, as tentativas de governo por meio de um sistema em que se busca a coexistência dos credos tradicionais religiosos e o desvirtuamento da política têm resultado em falhas que implementam um cenário de desgaste emocional a toda a população, gerando-se incertezas quanto ao futuro, subestimando-se as tragédias sociais e precarizando-se as vidas humanas. A frieza ocasionada por esse embate constante revela um sistema apático e incapaz de agir em prol de todos, com ênfase no que se refere às questões sanitárias vivenciadas diuturnamente na pandemia do coronavírus (Covid-19).

Após o período das eleições presidenciais ocorridas em 2018, a proteção das tradições, consideradas uma alternativa para combater os fracassos socioeconômicos dos governos anteriores, mostraram-se distorcidas inclusive em momentos nos quais foi defendido o suposto “direito à vida”, ainda que gerado por meio de uma violência física e emocional. Confira-se o trecho de uma reportagem feita a respeito da manifestação de determinado grupo em um hospital, no caso de uma criança de 10 anos, vítima de abuso sexual, após ter reconhecido legalmente o direito de interrupção da gestação:

O grupo protestou, ajoelhou e cantou em frente à unidade de saúde. De braços dados, eles chamaram o médico responsável pelo procedimento de "assassino" e utilizaram a página no Instagram para divulgar imagens do ato. "Estamos aqui como igreja para dizer que Recife não é a capital do aborto, nós somos pró-vida, e queremos salvar as duas vidas. As duas importam e valem", disse uma representante do grupo. (...) (DE UNIVERSA, 2020)

Esse inalcançável cenário em que convivem simultaneamente as tradições religiosas (naturais) e as ordens governamentais traz uma série de inconsistências que se chocam continuamente, afetando questões de saúde pública, aumentando-se a desigualdade social, visto que os discursos religiosos fundamentalistas funcionam como um mecanismo de mascarar os interesses individuais dos governantes. Além disso, fomenta-se um falso atributo de humanidade que acredita na resolução de problemas sociais com preceitos religiosos e que acabam por minimizar evidentes dificuldades estruturais, os quais resultam em mortes.

Conforme trazido no texto a “Ordem natural e autoridade política”, Milan Kundera aborda uma visão de heroísmo da Antígona na qual é construída uma luta em oposição à opressão de um governante que impõe obrigações ilegítimas, isto é, que não possui uma base religiosa e sim proclama um interesse individual (COSTA, 2021, p. 6-7). No atual contexto, o que se vê é justamente o contrário: não se busca mais a liberdade das tradições e se aguarda a figura de um Messias enviado por um ser divino que o dará todas as ferramentas para salvar o país, ainda que suas deliberações sejam autoritárias e coloquem em risco as liberdades conquistadas e positivadas dentro do Estado Democrático de Direito.

Ainda de acordo com a tragédia Antígona de Sófocles, na qual ocorrem inúmeras mortes dentro de uma família em vista do contínuo conflito entre a ordem governamental e religiosa, é notória a procura pelo que se entende como certo enquanto muitos morrem em vista disso (SOFOCLES, 2005). O costume de priorizar essa busca é atual e potencializa um sofrimento que se instaura em razão de um confronto que adoece a humanidade e a transforma em seres frios obcecados pelo que acreditam ser a verdade, independentemente de quantos dos seus precisem perder a vida para isso e por conta disso.

Por fim, a promoção de uma ordem natural baseada em fundamentalismos religiosos, por parte dos governos, remonta à manipulação social e ao descrédito da política como ferramenta destinada a resguardar o Estado laico brasileiro. Considerando-se que essa ordem natural é disseminada dia após dia, o que faz com que as pessoas nela acreditem e a reproduzam, a garantia da liberdade de crença e de consciência ganha uma feição corrompida, de modo que a diferenciação entre o que é real e o que é ilusório se confunde na concepção partilhada tacitamente pelos governados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Alexandre. Ordem natural e autoridade política. Arcos, 2021. Pág.17-19. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/natureza-x-governo/. Acesso em: 16 mar. 2021.

______________. Ordem natural e autoridade política. Arcos, 2021 p. 6-7. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/natureza-x-governo/. Acesso em: 16 mar. 2021.

DE UNIVERSA. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: Grupo católico faz ato em hospital de PE contra aborto de menina estuprada. Uol.com.br: De Universa, 16 ago. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/16/grupo-de-catolicos-tenta-impedir-aborto-de-menina-de-10-anos.htm. Acesso em: 16 mar. 2021.

MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira: católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 11, n. 2, p. 249, 2011. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/9647. Acesso em: 16 mar. 2021.

RANQUETAT JR, Cesar. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos. Revista Sociais e Humanas, v. 21, n. 1, p. 67-71, 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/773/532.  Acesso em: 16 mar. 2021.

SÓFOCLES. Antígone. eBooksBrasil, 2005.