Seria o Direito um conjunto de normas? De acordo com um recorte específico da teoria do direito (ao qual o presente texto pretende se dedicar), sim. Referimo-nos ao recorte da escola analítica, no qual se inserem tanto o positivismo quanto o realismo jurídicos e que, segundo Alf Ross (2000), é a escola dedicada a estudar os principais problemas jusfilosóficos, tendo em vista seu interesse pelo conceito de direito, pela sua natureza e não por fatores externos que o constituam, sejam estes metafísicos ou sociais. Nas palavras de Ross (2000), assim se define a escola analítica:
Tomada como um todo a escola analítica leva o selo de um formalismo metódico. O direito é considerado um sistema de normas positivas, isto é, efetivamente vigorantes. A "ciência do direito" busca apenas estabelecer a existência dessas normas no direito efetivo independentemente de valores éticos e considerações políticas. [...] Este formalismo encontrou destacada expressão nas obras de Kelsen. A "pureza" que ele exige da ciência do direito tem objetivo duplo: por um lado livrar a ciência do direito de qualquer ideologia moral ou política, de outro, livrá-la de todo vestígio de sociologia, isto é, considerações referentes ao curso efetivo dos eventos. De acordo com Kelsen, a ciência do direito não é nem filosofia moral nem teoria social, mas sim teoria dogmática específica em termos normativos. (ROSS, 2000, p. 25).
De acordo com essa perspectiva, fatores políticos, econômicos ou sociais, bem como concepções metafísicas de justiça, bem e moral não integram o corpus da ciência do direito, apesar de guardarem com ela e com o seu exercício estreita relação. O que compõe este corpus da ciência do direito seria, na concepção da escola analítica, justamente o conjunto de normas positivas e os seus esquemas de interpretação, na percepção kelseniana, é isto que compõe a teoria pura do direito.
O direito incide, portanto, sobre fatos materiais da vida, atribuindo a eles o peso simbólico da norma e, a partir daí, um significado jurídico, uma existência no plano jurídico.
O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. (KELSEN, 1998, p. 3).
À vista disso, Santos Neto (2012, p. 397) assente que Kelsen, ao permitir que o aplicador do direito escolha uma alternativa que esteja “fora” da moldura adotada como parâmetro, desenvolve uma percepção restritamente voluntarista da interpretação. Dessa maneira, a concepção de Kelsen se desdobraria em uma teoria da interpretação que seria considerada cética.
Assim sendo, as normas operam, em termos gerais, portanto, como símbolos que carregam valor jurídico e a ciência do direito como o conjunto de técnicas de interpretação desses símbolos. Dessa maneira, é de suma importância o entendimento de como se dão a operação de tais técnicas de interpretação e os processos de incidência simbólica das normas. Nesse sentido, Kelsen faz um diagnóstico de como as teorias da interpretação normalmente trabalham nesse campo, fazendo recurso a uma espécie de plano transcendente de racionalidade no qual estaria inscrita a interpretação correta da norma:
A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. (KELSEN, 1998, p. 247-248).
Todavia, esse gênero de raciocínio sofre um grande abalo a partir da metade do século XVIII, e, para esclarecer esse movimento, é de grande valor o recurso a Foucault, que em seu texto "Nietzsche, Freud e Marx", faz uma breve exploração da revolução provocada por estes três autores nas técnicas de interpretação vigentes, especialmente em comparação com as técnicas empregadas no século XVI.
De acordo com Foucault, a partir dessas três teorias distintas, a relação entre símbolo e interpretação foi profundamente alterada, no sentido em que esses autores abandonam a ideia mesma de que existam símbolos primários a se interpretar, e adotam a postura de que na verdade, o que há é uma grande cadeia de interpretações de interpretações:
Não há nada absolutamente primário a interpretar, porque no fundo já tudo é interpretação, cada símbolo é em si mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas a interpretação de outros símbolos. (FOUCAULT, 1997, p. 22).
Tal percepção encontra forte eco no pensamento kelseniano, na medida em que Kelsen também entende que a norma é já em si banhada por significações jurídicas atribuídas por outras normas, formando assim uma cadeia que não tem fim natural:
A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma. (KELSEN, 1998, p. 3).
Essa recursividade interpretativa, esse caráter interminável da interpretação, que não possui começo nem fim, é algo que também está presente na leitura de Foucault sobre Nietzsche e que se conecta profundamente com o caráter político - e não jurídico - dos símbolos e das normas.
Desta forma, Nietzsche apodera-se das interpretações que são já prisioneiras umas das outras. Não há para Nietzsche um significado original. As mesmas palavras não são senão interpretações. Ao longo da sua história, antes de converterem em símbolos, interpretam, e têm significado, finalmente, porque são interpretações essenciais. [...] E é por isto que há símbolos, símbolos que nos prescrevem a interpretação da sua interpretação, que nos prescrevem o dar-lhe a volta como símbolos. (FOUCAULT, 1997, p.24).
Kelsen (1998), no plano do direito, corre paralelamente, fazendo reflexões semelhantes com caminhos e intuitos diferentes. Sua tentativa de purificação do direito não se trata de um esforço kantiano de racionalização da ciência jurídica - como é frequentemente mal-interpretad - mas de um reconhecimento de que a norma não possui uma interpretação correta dentro do direito positivo, assim como o símbolo não traz em si uma interpretação. O símbolo já é em si uma interpretação de outras interpretações em cadeia, assim como a norma já é banhada de significações jurídicas advindas de outras normas, e essas significações e interpretações são fruto de disputas de poder, são fruto da política.
A questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer - segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. (KELSEN, 1998, p. 251).
Destarte, é possível concluir que sim, o direito é um conjunto de normas. No entanto, isso não quer dizer que essas normas carreguem em si algum sentido de justiça, bem como retidão ou qualquer valor moral inerente que seja passível de interpretação pela ciência do direito. Na verdade, o direito enquanto conjunto de normas, é transpassado, da sua formação até o seu exercício e a sua execução, por fatores políticos, sociais, econômicos, morais e de vários outros caráteres. (STRUCHINER, 2014). No entanto, esses fatores não compõem a ciência do direito e nem são juridicamente interpretáveis.
A questão que surge, portanto, é a seguinte: se o direito não é composto de valores transcendentais, políticos, morais ou sociais, e se cada norma remete a uma outra numa cadeia infinita, onde está a base de sustentação de tal sistema? Para Kelsen, o conjunto de normas em que consiste o direito é sustentado por uma ficção: a norma fundamental.
[...] a norma fundamental é a instauração do fato fundamental da criação jurídica e pode, nestes termos, ser designada como constituição no sentido lógico-jurídico, para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-positivo. Ela é o ponto de partida de um processo: do processo da criação do Direito positivo. (KELSEN, 1998, p. 139).
Nessa lógica, Goyard-Fabre (2002, p.344) destaca: “ [...] o que, nesse processo de constituição do jurídico, se revela essencial para Kelsen é que a norma, enquanto esquema de interpretação, não cria o fato ou o ato jurídico em sua materialidade, mas instala-o em sua validade objetiva como ser do direito”. Ou seja, percebe-se que tanto a norma fundamental como a regra do reconhecimento, são elementos fundamentais do ordenamento jurídico, não obstante, a noção de validade não é cabível para a regra de reconhecimento. Em contrapartida, verifica-se que a norma fundamental de Kelsen apresenta uma essência metafísica em que a noção de validade é primordial para sua doutrina.
Portanto, a norma fundamental revela-se como um mecanismo teórico puramente lógico, sem existência material, que confere a sustentação do direito quando pensado enquanto conjunto de normas. Ela põe um fim fictício à eterna recorrência interpretativa sem ter de recorrer ao direito natural ou a nenhum atributo social específico que pudesse vir a se sobrepor sobre outros, abalando a credibilidade do sistema. A norma fundamental é, no fim, o alicerce de uma concepção que visa fugir ao jusnaturalismo sem ter que embrenhar o direito na política e na moral e sem ter de recorrer a nenhuma racionalidade transcendente. Assim, é através dela que o direito se sustenta enquanto conjunto de normas e interpretações.
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Princípio Editora, 1997.
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo:Martins Fontes, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru, São Paulo: EDIPRO, 2000.
SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. A teoria da interpretação em Hans Kelsen. In: MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos (Coord.). Contra o absoluto: perspectivas críticas, políticas e filosóficas da obra de Hans Kelsen. Curitiba: Juruá, 2012. p. 381-404.
STRUCHINER, Noel; Brando, Marcelo. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito? Em: Struchiner, Noel; Tavares, Rodrigo (org.). Novas fronteiras da teoria do direito. Rio de Janeiro: PoD; PUC-Rio, 2014.