A crença de que seja possível desenvolver uma metodologia capaz de balizar decisões jurídicas de modo consistente continua presente em discursos contemporâneos. Dentro dessa discussão, encontra-se o realismo jurídico que buscou explicar a influência das preferências político-ideológicas no processo decisório dos juízes. Nesse sentido, são de extrema relevância os fatores extra jurídicos que influenciam os processos judiciais (HORTA; COSTA, 2017). Para melhor compreendermos esses argumentos, há que se discutir mais a fundo o realismo jurídico.

O realismo jurídico norte-americano partia do pressuposto de que seria possível a formulação de uma teoria descritiva da decisão judicial.  Para prever a decisão de um caso concreto, portanto, realizar-se-ia uma pesquisa empírica e se encontraria, por meio de um processo causal, como se daria a decisão. Dentre as proposições que serviam para se chegar a como os juízes embasavam suas decisões estavam a de que o direito seria determinado, que as regras jurídicas não guiariam a tomada de decisão judicial, que o juiz decidiria com base em algo diverso do direito, e que a atividade judicial seria constitutiva do direito. Em linhas gerais, a maioria dos juízes chegaria a sua decisão sem considerar a totalidade dos materiais jurídicos disponíveis e, após chegar a uma inclinação sobre o caso, raramente teriam dificuldade de revestir suas decisões de argumentos jurídicos satisfatórios (STRUCHINER; BRANDO, 2014).

Uma limitação da teoria, conforme apontado por Hart, seria a própria linguagem.  Em um dado contexto, uma regra jurídica aparentemente transmitiria um padrão de conduta bastante claro, no entanto, em um contexto distinto, poderia se tornar bastante imprecisa e incapaz de indicar ao cidadão ou à autoridade policial uma conduta a ser adotada. Outra questão é a própria ausência de regra, a denominada anomia, ou , ainda a existência de mais de uma regra aplicável. Em todos esses cenários, estamos diante de uma decisão judicialmente difícil. Nesses casos, para a tomada de decisão, é necessário ir além do direito.

Pesquisas sócio-intuicionistas revelaram que, embora as pessoas se engajem em genuíno raciocínio moral, muitas vezes elas tomam decisões morais intuitivas e em seguida tentam construir uma justicativa socialmente aceitável. Isso parece corroborar os argumentos do realismo norte-americano, ao menos quanto à primeira parte da questão. Nos casos difíceis do direito, os juízes teriam uma inclinação pré-estabelecida que tentariam justificar a posteiori. Isso tudo aconteceria de maneira rápida e jubjacente a uma racionalidade consciente. Uma vez tomada a decisão, contudo, o juiz teria plena consciência de que não mais poderia justificar sua decisão em um processo autromático e subjacente. Nesse momento, entraria a justificação com base nos materiais jurídicos. Essa é a segunda parte da questão realista, que também parece ser corroborada.

Nesse contexto se posicionam duas grandes questões: como os juízes podem atender ao requisito da imparcialidade e como podem garantir a independência funcional, uma vez que há um grande peso de suas inclinações morais iniciais sobre suas decisões finais? De fato, há indicações de que a intuição das pessoas, inclusive dos juízes, podem ser moldadas por fatores estranhos ao direito, como reações afetivas ou decorrentes do momento específico do dia. Como garantir, portanto, que as decisões dos juízes respodam aos seus deveres funcionais?

É verdade que os juízes, em sua maior parte, passam por rigoroso processo seletivo para que possam exercer suas funções. Tal processo, contudo, é pautado principalmente por conteúdos de caráter técnico-científico que pouco respondem aos desafios morais e filosóficos dos questionamentos aqui colocados. Se, por um lado, o modelo sócio-intuicionista consegue descrever uma boa parte dos problemas, muito ainda é necessário discutir em termos de solução para esses mesmos problemas.

A ciência da Psicologia Cognitiva e Social sugere ao direito a existência de tendências e regras sociais que pautam o comportamento humano. De modo geral, as pessoas possuem uma tendência de atribuirem um peso maior às opiniões de seus pares que da população de modo geral. Isso se aplica aos magistrados, que acabam levando em consideração na hora de pautar suas decisões o que outros magistrados e operadores do direito consideram relevante sobre o tema. São, portanto, fatores relevantes do processo decisório de juízes: suas capacidades mentais, suas condições de trabalho, seus interesses pessoais e seus interesses profissionais.

Espera-se que dentro do processo decisório haja uma infalibilidade racional, ou seja, que os juízes operem para e conforme o direito, sem interferências intersubjetivas. Essa é, contudo, uma pretensão dificilmente materializável. Na prática, os juízes são falíveis e tomam suas decisões, em parte, apoiados em crenças construídas ao longo de suas vivências dentro e fora dos tribunais.

Voltando à pergunta presente no título do artigo: o direito seria um conjunto de normas? À luz do que foi discutido anteriormente, podemos responder, de maneira contida, que dificilmente poder-se-ia considerar o direito como um conjunto de normas expressas, aplicáveis por si só. Caso consideremos, contudo, que a normatividade do direito está na interpretação que se dá ao texto, podemos afirmar que ele seria um conjunto de normas situado no tempo e no espaço, tanto físico quanto psicológico.

Temos, portanto, a norma expressa textualmente e a norma que se estabelece nos espaços intersubjetivos nos quais o direito é aplicável. Os juízes não são sujeitos destacados de suas inclinações morais e pessoais, mas atuam antes dentro e por meio dessas inclinações à luz das normas expressas.

REFERÊNCIAS
Bisol, Jairo. O vazio e o inacabado da lei. Conclusão (8p).

Horta e Costa. Das Teorias da interpretação à Teoria da Decisão: por uma perspectiva realista acerca das influências e constrangimentos sobre a atividade judicial. 2017.

Horta e Costa. Vieses na decisão judicial e desenho institucional: uma discussão necessária na era da pós-verdade

Struchiner, Noel; Brando, Marcelo. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?. Em: Struchiner, Noel; Tavares, Rodrigo (org.). Novas fronteiras da teoria do direito. Rio de Janeiro: PoD; PUC-Rio, 2014.