Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista nascido em Praga, em 1881, quando essa cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro. Ele foi um dos principais teóricos do direito do séc. XX, tendo especial importância na incorporação da filosofia da linguagem ao pensamento jurídico.

Suas abordagens sobre o direito são marcadas pelo questionamento de dualidades cristalizadas na teoria jurídica de seu tempo e que continuam integrando o senso comum atual dos juristas, tais como:

  • direito e estado,
  • direito subjetivo e direito objetivo,
  • direito internacional e direito interno.

No final dos anos 1910, Kelsen trabalhou na elaboração da Constituição da Áustria e contribuiu decisivamente para o desenvolvimento do modelo europeu de controle de constitucionalidade. Em 1920, ele foi nomeado para a Corte Constitucional, atuando nesse órgão até 1929, quando a lei constitucional austríaca foi altera de forma excessivamente conservadora. (Lagi, 2021)

Em 1930, Kelsen se mudou para a Alemanha, assumindo uma posição de professor de direito na Universidade de Colônia, de onde ele foi removido em 1933, com a ascensão do regime nazista, por motivo de sua ascendência judaica. Então, ele se mudou para a Suíça, atuando na universidade de Genebra durante alguns anos, nos quais publicou sua obra mais célebre: a Teoria Pura do Direito, de 1934, que teve amplo reconhecimento internacional.

A eclosão da Segunda Guerra levou Kelsen a emigrar da Europa para os EUA, em 1940, onde se tornou professor na universidade da Califórnia, em Berkeley. Nesse período, ele escreveu uma nova edição da Teoria Pura do Direito, publicada em 1960, que é a versão normalmente citada em textos atuais.

1. A morte do sujeito de direito

Kelsen é um dos principais responsáveis pela produção de uma teoria contemporânea do direito. Tal como as demais teorias políticas da modernidade, as teorias jurídicas modernas produzem narrativas calcadas em um enfoque que parte da autonomia dos sujeitos: elas explicam os fenômenos jurídicos como direitos subjetivos, que estabelecem relações intersubjetivas.

Kelsen observa que a longa tradição jusnaturalista estimula a percepção de que os direitos têm prioridade sobre as normas: as principais normas jurídicas positivadas apenas reconheceriam direitos previamente existentes. Se é possível pensar a existência de direitos subjetivos naturais, é porque os direitos que temos não decorrem sempre de sua criação social. Nesse contexto cultural, as categorias teóricas formuladas para organizar o conhecimento dos juristas precisam ser capazes de lidar com direitos que decorrem das normas impostas e com direitos que fazem parte da estrutura natural do mundo.

A pandectística adota como matriz explicativa fundamental a noção de "relação jurídica": existem relações sociais constituídas por "vínculos jurídicos", que Miguel Reale chama acertadamente de vínculos de atributividade. O que é propriamente jurídico é a vinculação entre as pessoas, que as coloca em uma situação relacional, atribuindo-lhes direitos e deveres. Pensar o direito como relação é enxergá-lo, primordialmente, a partir da ótica dos sujeitos relacionados: pessoas que têm "pretensões" com relação ao comportamento de outros seres humanos, na medida em que se julgam titulares de direitos.

Esse enfoque conduz à ideia de que os direitos são vontades individuais, juridicamente protegidas e garantidas pela possibilidade de acionamento judicial. Kelsen acentua que não é por acaso que essas teorias adotam como matriz o direito romano, que apresenta o direito na perspectiva daquilo que os cidadãos podem (ou não) pedir aos magistrados incumbidos de tomar decisões judiciais.

Em contraposição, Kelsen adota uma perspectiva notadamente objetivista e despersonalizadora: o direito não deve ser visto como um atributo dos sujeitos, mas precisa ser enxergado como um fenômeno social objetivo. Para Kelsen, as teorias baseadas nas pretensões subjetivas nos afastam do reconhecimento de que o direito é uma construção social que impõe aos cidadãos certos deveres, garantidos pelo estabelecimento de alguma forma de sanção. A função da ciência do direito deveria ser o esclarecimento do sentido das normas jurídicas, identificando os deveres que as pessoas têm, independentemente de suas vontades subjetivas ou das intenções concretas das autoridades que estatuíram as leis.

Vontade, interesse ou subjetividade são categorias que não têm lugar na abordagem objetivista de Kelsen. O que lhe interessa é definir o direito como um conjunto de enunciados normativos, cujo significado objetivo é o objeto próprio de uma teoria do direito. Ao fixar esse caráter objetivo do direito, Kelsen busca desconstruir as dicotomias jurídicas fundadas na dualidade sujeito/objeto, que marca as teorias modernas: normas objetivas que geram direitos subjetivos, sistemas jurídicos que instituem sujeitos estatais, direitos nacionais percebidos como regras impostas por um sujeito soberano idealizado (o povo).

Para o positivismo de Kelsen, só os fenômenos objetivos importam: as normas enquanto construções sociais, os sentidos objetivos do sistema normativo. Um direito cuja dinâmica não é percebida como a atuação de sujeitos determinados (individuais ou coletivos), mas como uma estrutura de significados, que somente pode ser devidamente compreendida por meio da identificação das categorias que permitem identificá-los com clareza. Interessa a Kelsen a forma como as normas se organizam, se conectam, se tensionam e determinam o sentido jurídico dos fatos concretos.

No campo do direito, Kelsen foi um dos principais artífices daquilo que Foucault chamou da "morte do sujeito". Os antigos acreditavam que nossa racionalidade era capaz de compreender diretamente o mundo objetivo. Os modernos, na esteira de Kant, passaram a entender que as estruturas sociais (como o direito) poderiam ser compreendidas como decorrências necessárias do olhar racional dos sujeitos, que constituiriam o conhecimento e a cultura à sua imagem e semelhança. Embora o conceitualismo de Kelsen seja ligado a essa perspectiva kantiana (na busca de entender os conceitos jurídicos que decorrem de nossa racionalidade), seu relativismo moral o conduz a reconhecer que as sociedades podem estabelecer o conteúdo jurídico ao que bem entenderem.

O positivismo formalista de Kelsen significa o seu reconhecimento de que existe uma jurídica necessária, mas que os conteúdos jurídicos dependem completamente das decisões políticas de uma sociedade. Essa perspectiva o faz declarar que as teorias tradicionais do "direito subjetivo" são apenas uma das formas possíveis de organização do direito. Não é inevitável que os sistemas jurídicos reconheçam a liberdade e a igualdade dos cidadãos, nem que atribuam às pessoas uma série de direitos subjetivos individuais. A conformação específica de um direito concreto depende do sentido do sistema normativo, construído politicamente. Para Kelsen, existe uma estrutura universal do direito (decorrente da estrutura lógica das normas jurídicas), mas ela é puramente formal (determina as categorias operadas pelos juristas, mas não o seu conteúdo).

A dissonância entre o estruturalismo formalista de Kelsen e o subjetivismo das teorias tradicionais é tão marcante que não seria razoável esperar que ele tivesse muito sucesso em convencer seus contemporâneos do acerto de sua perspectiva. De forma relativamente improvável, Kelsen conheceu muito sucesso, talvez por ter elaborado estratégias teóricas capazes de compreender melhor o direito público, especialmente o direito constitucional, que ganhava espaço na Europa do início do século XX. Kelsen não pensava o direito como uma rede de obrigações interpessoais, mas com um sistema unificado de regulação social, cuja estrutura e modo de operação poderia ser objeto de uma abordagem científica.

A ideia de que o direito deve ser percebido a partir de um enfoque normativo teve ampla aceitação. Todavia, a tradição jurídica não adotou o radical objetivismo de Kelsen. O que se fez normalmente foi acolher as sugestões de Kelsen para descrever o "direito objetivo", mas dentro de perspectivas que continuaram se estruturando em torno das ideias clássicas de direito subjetivo (direitos humanos, direitos fundamentais, direitos individuais e coletivos, etc.), entendido este como uma decorrência subjetiva do sentido objetivo das normas. O sucesso parcial de Kelsen conduziu o senso comum a construir teorias paradoxais, que se equilibram de forma tênue entre objetivismo e subjetivismo, entre estruturas formais necessárias e conteúdos universalmente válidos.

No presente artigo, chamamos atenção para alguns dos principais elementos da Teoria Pura do Direito de Kelsen, buscando esclarecer as posições que ele defende e evitar alguns erros típicos na interpretação de suas ideias.

1.Teoria pura, e não direito puro

O primeiro ponto a ser esclarecido é que Kelsen nunca afirmou a pureza do direito, muito menos a pureza do poder. Sua posição é a de que o direito é um fenômeno que decorre da atividade política e que, portanto, ele é atravessado pelas escolhas valorativas das autoridades que contribuem para a elaboração de textos legislativos, bem como para a sua aplicação aos casos concretos.

A “pureza” defendida por Kelsen não é a do objeto da teoria jurídica, mas a da própria teoria, que deveria ser construída a partir da observação cuidadosa dos discursos normativos. Em especial, os juristas deveriam se precaver contra a tentação de atribuir cientificidade a suas próprias preferências ideológicas, misturando suas intuições pessoais com as conclusões de uma análise rigorosa dos fenômenos jurídicos.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. (Kelsen, 1992)

A ideia de que o objeto da ciência do direito deve ser o direito positivo em geral é melhor explicada em um texto no qual Kelsen tentou esclarecer suas ideias para o público dos EUA, assim que se mudou para aquele país. Em 1941, ele publicou na Harvard Law Review um artigo no qual explicava os principais elementos de sua abordagem, de forma didática, comparando suas ideias com o positivismo de John Austin (1790-1859), que era amplamente conhecido naquela cultura jurídica (Kelsen, 1941). Nesse texto Kelsen deixa claro que ele entende que todos os direitos nacionais existentes no mundo têm a sua validade decorrente do direito internacional, que define os critérios por meio dos quais um Estado pode ser reconhecido como parte do sistema internacional.

Uma vez que as ordens jurídicas nacionais encontram a justificação da sua validade na ordem jurídica internacional, que ao mesmo tempo define as suas esferas de validade, a ordem jurídica internacional deve ser superior a cada ordem nacional. Assim, ela forma, juntamente com elas, uma ordem jurídica unitária e universal. (Kelsen, 1941)

Em vez de tomar cada direito nacional como um objeto particular, dotado de legitimidade própria, Kelsen trata todos os direitos do mundo como parte de um conjunto mais amplo, que os abarca dentro de uma mesma ordem. Na medida em que existe uma ordem jurídica universal, este ordenamento pode ser objeto de uma descrição específica, que seria justamente a tarefa de uma teoria geral do direito.

Tal como é tarefa da ciência natural descrever o seu objeto - a realidade - num sistema de leis naturais, também é tarefa da jurisprudência [“ciência do direito”] compreender todo o direito humano num sistema de normas. (Kelsen, 1941)

Esta ciência do direito deve ser pura, na medida em que precisa descrever adequadamente os conteúdos normativos, para poder identificar os conceitos “a priori” necessários para a devida compreensão de tais fenômenos. Na medida em que o objetivo do cientista do direito seria o de compreender esta ordem universal e suas estruturas linguísticas, ela pode se pretender como uma “pura teoria” acerca das normas jurídicas. Por um lado, ela não é uma teoria geral das sociedades e da política, pois seu único objeto é o conjunto das normas jurídicas. Por outro, não se trata de um conjunto de critérios de avaliação política ou ideológica, visto que seu objetivo é apenas o de esclarecer a estrutura do seu objeto, sem fazer apreciações valorativas acerca de sua moralidade ou justiça.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.
Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto. (Kelsen, 1992)

Essa pretensão de pureza é um dos elementos mais criticados da obra de Kelsen, mas é também um dos menos compreendidos, como o autor explica no Prefácio da 1ª edição da TPD.

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. [...]
[A Teoria Pura do Direito], além de adesões e imitações, provocou também oposição - oposição feita com uma paixão quase sem exemplo na história da ciência jurídica. [...] A luta não se trava na verdade - como as aparências sugerem - pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas consequências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe.
[O]s argumentos que são dirigidos, não propriamente contra a Teoria Pura do Direito, mas contra a sua falsa imagem, construída segundo as necessidades do eventual opositor [...]. Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é - asseguram muitos - aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta.
Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, a sua pureza. [...]
O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado. Assim, pois, nada parece hoje mais extemporâneo que uma teoria do Direito que quer manter a sua pureza, enquanto para outras não há poder, seja qual for, a que elas não estejam prontas a oferecer-se, quando já não se tem pejo de alto, bom som e publicamente reclamar uma ciência do Direito política [...]. (Kelsen, 1992)

2. Abordagem normativa do direito

A teoria alemã de sua época era fundada especialmente nas abordagens neokantianas, que afirmam o caráter a priori de certas categorias jurídicas. Gustav Radbruch (1878-1949), por exemplo, sustentava que:

Os conceitos de direito “público” e de direito “privado” não são conceitos de direito positivo que possam ser utilizados por qualquer “ordem jurídica” ou sistema jurídico positivo. Antecedem, por força duma necessidade lógica, toda e qualquer experiência doas coisas do direito e condicionam-na. São conceitos jurídicos a priori. (Radbruch, 1997)

Essa busca de conceitos que não são definidos por uma cultura jurídica específica, mas que estruturam necessariamente uma compreensão jurídica dos fenômenos sociais, encontra eco na pretensão de Kelsen de tratar do “direito em geral”. O próprio Kelsen reconhece explicitamente essa influência kantiana, o que explica o fato de seu discurso construir-se “em definições e distinções entre conceitos; conceitos puros dados a priori, independentes da experiência, como a norma e a norma hipotética fundamental” (Rodrigues Xavier, 2020).

Embora esteja inserido em um contexto cultural que se voltava a compreender as estruturas conceituais subjacentes às práticas sociais, Kelsen que a teoria jurídica de sua época era construída sobre uma base conceitual que não dava prevalência a categoria “norma’. Seguindo a perspectiva civilista da escola dos pandectistas, dava-se prevalência a outros conceitos, em especial a “direito subjetivo”, “ato jurídico” e “relação jurídica”. Nas palavras de Radbruch:

Da validade do direito na vida social, nas relações entre os homens, deriva ainda com não menor evidência que o seu conteúdo não pode deixar de ser formado por “relações jurídicas”, e que estas, por sua vez, o são por “deveres” e “pretensões” chamadas “direitos subjetivos”. Não é concebível uma ordem jurídica que não possa decompor-se em relações jurídicas, e, por tanto, em direitos e obrigações dos homens uns para com outros. Mas os direitos e obrigações também não são concebíveis sem “sujeitos” de direito a quem pertençam, ou sem “objetos” a que se refiram. (Radbruch, 1997)

Tal como Radbruch, Kelsen também se dedica a identificar os conceitos sem os quais o direito não é devidamente compreensível. A diferença entre eles é que, enquanto o primeiro considera inconcebíveis descrições que não estejam baseadas no repertório conceitual da pandectística alemã, Kelsen entende que essas abordagens não são capazes de compreender adequadamente o caráter normativo do direito.

Kelsen compartilha com essa abordagem a ideia de que existem no mundo várias ocorrências, que se tornam jurídicas na medida em que eles são qualificados dessa forma pelo direito.

Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito — por exemplo, uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. — , poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito.
Numa sala encontram-se reunidos vários indivíduos, fazem-se discursos, uns levantam as mãos e outros não - eis o evento exterior. Significado: foi votada uma lei, criou-se Direito. Nisto reside a distinção familiar aos juristas entre o processo de legislação e o seu produto, a lei. Um outro exemplo: um indivíduo, de hábito talar, pronuncia, de cima de um estrado, determinadas palavras em face de outro indivíduo que se encontra de pé à sua frente. Esse acontecimento externo significa juridicamente que foi ditada uma sentença judicial. (Kelsen, 1992)

Nas teorias jusnaturalistas, existe a ideia de que certos fatos são naturalmente jurídicos e que certos direitos e deveres estão inscritos na própria natureza das coisas. O conteúdo jurídico de certos atos não dependeria do estabelecimento de normas sociais, mas seria parte do seu próprio modo de ser. Inspirado pela separação empirista entre fatos e valores, Kelsen não pode supor que certos fenômenos (que são fatos) têm um significado jurídico intrínseco. Para ele, o sentido jurídico é sempre estabelecido por uma norma jurídica.

Mas esta significação jurídica não pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor, a dureza, o peso. [...]
O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso mesmo, um evento sensorialmente perceptível, uma parcela da natureza, determinada, como tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento do sistema da natureza, não constitui objeto de um conhecimento especificamente jurídico - não é, pura e simplesmente, algo jurídico.
O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. (Kelsen, 1992)

Mas o que é essa norma, que atribui sentido jurídico a certos fatos?

O direito positivo, que é o objeto da teoria pura do direito, é uma ordem pela qual a conduta humana é regulada. A regulação é realizada por enunciados que determinam como as pessoas devem se comportar. Tais enunciados são chamados normas. (Kelsen, 1941)

Uma das possibilidades seria entender que a norma é tratá-las como comandos. A abordagem que trata o direito como uma série de diretrizes impostas às pessoas pode ser chamada de “imperativista”. Tal perspectiva ocorria nas primeiras teorias positivistas, como a jurisprudência analítica de John Austin, para quem o “comando” é a categoria chave para compreender o direito.

J. Austin define comando como a expressão de um desejo de que alguém faça ou não faça algo, acompanhado de um mal a ser imposto pelo emissor ao destinatário se descumprido esse desejo.  A característica específica que diferencia o comando dos outros tipos de desejos é capacidade de o emissor punir o destinatário em caso de violação da ordem expressa. Assim, a definição austiniana de comando implica as noções de dever e sanção.  
Dever, para o autor, é a conduta do destinatário desejada pelo emissor do comando.  Esse conceito exprime a mesma ideia que aquela de comando, mas de outra forma.  Enquanto o comando expressa o fenômeno na perspectiva do emissor, o dever expressa-o na perspectiva do destinatário, que se sujeita ao comando.  Assim, comando e dever implicam-se mutuamente: só existirá um se houver também o outro.

Kelsen se aproxima de Austin, ao determinar que as normas estabelecem deveres para as pessoas, mas substitui a abordagem “concreta” da jurisprudência analítica (que busca identificar o desejo real das pessoas que impõem as condutas) por uma perspectiva mais abstrata: o que nos obriga não é a vontade de quem emite o comando, mas é o sentido objetivo da norma.

O comportamento humano é decretado, previsto ou prescrito por uma regra de direito sem qualquer ato psíquico de vontade. A lei pode ser chamada de comando “despsicologizado”. Isso aparece na afirmação de que o homem “deve” se comportar de acordo com a lei. É neste ponto que reside a importância do conceito de “dever”, aqui se revela a necessidade do conceito de norma. Uma norma é uma regra que afirma que um indivíduo deve se comportar de uma certa maneira, mas não afirma que esse comportamento é a vontade real de alguém. (Kelsen, 1941)

A concepção de Kelsen busca diferenciar o ato concreto de vontade pelo qual o legislador estabelece uma regra e o sentido objetivo da regra estabelecida, que é justamente o que obriga as pessoas, pois “a norma é o significado de um ato de vontade, e não um ato de vontade” (Kelsen, 1992).

“Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. (Kelsen, 1992)

Uma teoria do direito não tem por objeto o estudo de atos de vontade, não tem por função esclarecer os motivos e desejos das autoridades legisladoras.

[O] conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. (Kelsen, 1992)

A função da ciência do direito é compreender as consequências jurídicas decorrentes das normas que compõem o ordenamento. É determinar o significado jurídico de certos fenômenos que são objetos das normas jurídicas, independentemente da vontade que as estabelece, inclusive porque as normas costumeiras decorrem de processos sociais que não podem ser reduzidos a um ato de vontade de uma autoridade determinada.

Como em vários outros pontos, Kelsen aplica a navalha de Ockham e exclui do seu modelo explicativo as referências psicológicas a uma eventual vontade das autoridades políticas que estabelecem a norma, por considerar que essa abordagem está baseada na ficção supérflua e perigosa de que estamos submetidos à vontade do legislador ou do Estado. Esse é um caminho que conduz o juristas a se preocuparem com o sentido factual dos desejos de uma autoridade, em vez de se concentrarem na tarefa própria da ciência do direito: descrever o direito enquanto um sistema de normas.

Como em vários outros pontos, Kelsen aplica a navalha de Ockham e exclui do seu modelo explicativo as referências psicológicas a uma eventual vontade das autoridades políticas que estabelecem a norma, por considerar que essa abordagem está baseada na ficção supérflua e perigosa de que estamos submetidos à vontade do legislador ou do Estado. Esse é um caminho que conduz o juristas a se preocuparem com o sentido factual dos desejos de uma autoridade, em vez de se concentrarem na tarefa própria da ciência do direito: descrever o direito enquanto um sistema de normas.

Embora adote uma perspectiva epistemológica ligada à tradição kantiana (em sua busca pelos conceitos a priori da experiência humana), Kelsen rejeita veementemente  as abordagens éticas de matriz kantiana, voltadas a identificar conteúdos morais a priori. No ponto dos valores, Kelsen se filia à tradição empirista de Hume, que acentua a impossibilidade lógica de passar de juízos de fato ar juízos de valor, o que o liga a uma abordagem ética relativista.

O que sobretudo importa, porém - o que tem de ser sempre acentuado e nunca o será suficientemente - é a ideia de que não há uma única Moral, “a” Moral, mas vários sistemas de Moral profundamente diferentes uns dos outros e muitas vezes antagônicos, e que uma ordem jurídica positiva pode muito bem corresponder - no seu conjunto - às concepções morais de um determinado grupo, especialmente do grupo ou camada dominante da população que lhe está submetida - e, efetivamente, verifica-se em regra essa correspondência - e contrariar ao mesmo tempo as concepções morais de um outro grupo ou camada de população. [...]
A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade. [...]
Uma tal legitimação do Direito positivo pode, apesar da sua insuficiência lógica, prestar politicamente bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável. Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por forma alguma de justificar - quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa - a ordem normativa que lhe compete - tão-somente - conhecer e descrever. (Kelsen, 1992)

3. Superando as dicotomias tradicionais

A teoria romana do direito, bem como sua releitura moderna (na pandectística), é organizada em torno dos pedidos que ele pode fazer em juízo. Essa abordagem valoriza aquilo que os autores podem pedir, e que eles consideram que são os seus próprios direitos. Ao considerar o “direito subjetivo” como um objeto autônomo, que uma pessoa pode ou não ter, faz com que a teoria tradicional considera que a “obrigação” é uma decorrência dos direitos subjetivos de uma pessoa: posso exigir condutas de outras pessoas porque tenho pretensões juridicamente protegidas.

Tal concepção reforça a centralidade teórica do “direito que se tem”, pois o processo judicial era entendido apenas como uma forma de proteger os direitos que cada considera que são seus e com base no qual faz exigências perante outras pessoas. Kelsen inverte os termos dessa relação, indicando que o caráter jurídico de certas normas sociais decorre de elas serem impostas mediante a imposição de sanções. Ao considerar que o elemento jurídico fundamental não é o direito de exigir, mas é o dever de cumprir as obrigações, sob pena de receber uma sanção. Tal postura termina por borrar as fronteiras entre normas e deveres: o dever é simplesmente o conteúdo da norma jurídica, aplicado a uma situação concreta.

Costuma-se, na verdade, distinguir norma jurídica e dever jurídico e dizer que uma norma jurídica estatui um dever jurídico. Porém, o dever jurídico de realizar uma determinada conduta não é uma situação de fato diversa da norma jurídica que prescreve esta conduta. A afirmação: um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta é idêntica à afirmação: uma norma jurídica prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção.

A ideia de que as normas criam direitos e deveres subjetivos é substituída pela noção de que os direitos e deveres são apenas uma dimensão concreta do conteúdo das normas.

A conduta de um indivíduo prescrita por uma ordem social é aquela a que este indivíduo está obrigado. Por outras palavras: um indivíduo tem o dever de se conduzir de determinada maneira quando esta conduta é prescrita pela ordem social. Dizer que uma conduta é prescrita e que um indivíduo é obrigado a uma conduta, que é seu dever conduzir-se de certa maneira, são expressões sinônimas.

O radical normativismo de Kelsen não apenas coloca a norma jurídica no centro da teoria, mas rejeita os conceitos tradicionais, que buscam explicar o direito como uma forma de proteger interesses ou pretensões dos indivíduos. Em um dos pontos que podem justificar as críticas que o apontam como comunista, Kelsen afirma que a própria noção de “direito subjetivo” parece decorrer de teorias voltadas a naturalizar certos direitos, especialmente o de propriedade.

A concepção tradicional de que o direito é um objeto do conhecimento jurídico diferente do dever, de que àquele caberia mesmo a prioridade em relação a este, é sem dúvida devida à doutrina do Direito natural. Esta parte da suposição de direitos naturais, de direitos inatos ao homem, que existem antes de toda e qualquer ordem jurídica Positiva. Entre eles desempenha um papel principal o direito subjetivo da propriedade individual A função de uma ordem jurídica Positiva (do Estado), que põe termo ao estado de natureza, é, de acordo com esta concepção, garantir os direitos naturais através da estatuição dos correspondentes deveres. [...] Se se afasta a hipótese dos direitos naturais e se reconhecem apenas os direitos estatuídos por uma ordem jurídica positiva, então verifica-se que um direito subjetivo, no sentido aqui considerado, pressupõe um correspondente dever jurídico, é mesmo este dever jurídico.

Mais uma vez, Kelsen insiste em propor uma teoria despsicologizada. Enquanto a teoria tradicional tenta apresentar o direito como vontades protegidas, interesses garantidos ou comandos decorrentes de uma vontade legisladora, Kelsen busca construir uma teoria que deixa de lado as categorias baseadas em alguma espécie de vontade subjetiva ou como se as normas jurídicas criassem direitos e deveres.

A tentativa de determinar por esta forma o dever jurídico induz em erro. Assim sucede com a suposição de que o dever jurídico é um impulso ínsito ao homem, uma impulsão para uma conduta que ele sente como prescrita, a vinculação por uma norma natural ou divina que lhe é inata e cuja observância a ordem jurídica positiva se limita a garantir, estatuindo uma sanção. Ele não é, porém, senão a norma jurídica positiva que prescreve a conduta deste indivíduo pelo fato de ligar à conduta oposta uma sanção.

O resultado dessa abordagem está em profunda desconexão com as perspectivas tradicionais, construídas com base na dualidade direito/dever e direito subjetivo/objetivo. Quando Kelsen busca descrever o direito como um conjunto de normas, que são sentidos normativos a serem compreendidos, ele dissolve as fronteiras entre esses elementos, reduzindo todos eles a uma questão acerca da determinação adequada do conteúdo normativo, que define as obrigações que temos, sendo nossos direitos apenas decorrências dos deveres que as normas atribuem para outras pessoas.

Na concepção da jurisprudência tradicional, o sujeito jurídico - como pessoa física ou jurídica-, com os “seus” deveres e direitos, representa o Direito num sentido subjetivo; a titularidade jurídica (Berechtigung) designada como direito subjetivo é apenas um caso especial desta noção compreensiva. E o Direito neste sentido subjetivo mais amplo situa-se em face do Direito objetivo, da ordem jurídica, quer dizer, em face de um sistema de normas, como se formasse um domínio distinto. A Teoria Pura do Direito afasta este dualismo ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e ao tomar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida; quer dizer: reconduzindo o chamado direito em sentido subjetivo ao Direito objetivo. Desta forma, supera-se aquela posição subjetivista em face do Direito a cujo serviço se encontra o conceito de direito em sentido subjetivo: aquela concepção forense ou advocatícia que apenas considera o Direito do ponto de vista dos interesses das partes, isto é, aquela concepção que o visualiza tendo apenas em mira saber o que ele significa para o indivíduo, em que medida lhe aproveita, quer dizer, em que medida serve o seu interesse, ou o prejudica, isto é, o ameaça com um mal. E esta a atitude específica da jurisprudência romana que, saída no essencial da prática consultiva dos juristas que exerciam o jus respondendi, foi recebida juntamente com o Direito romano. A atitude da Teoria Pura do Direito é, inversamente, uma atitude inteiramente objetivista- universalista. Ela dirige-se fundamentalmente ao todo do Direito na sua objetiva validade e procura apreender cada fenômeno particular apenas em conexão sistemática com todos os outros, procura em cada parte do Direito apreender a função do todo jurídico. Neste sentido, é uma concepção verdadeiramente orgânica do Direito. Mas, se concebe o Direito como organismo, não entende por tal qualquer entidade supra- individual, supra-empírica-metafísica - concepção esta por detrás da qual se escondem quase sempre postulados ético-políticos -, mas única e exclusivamente: que o Direito é uma ordem e que, por isso, todos os problemas jurídicos devem ser postos e resolvidos como problemas de ordem. A teoria jurídica torna-se, assim, numa análise estrutural do Direito positivo o mais exata possível, liberta de todo juízo de valor ético-político.

4. A teoria da interpretação

O relativismo valorativo de Kelsen o leva a responder a dois problemas fundamentais do direito de modo oposto às teorias tradicionais do direito: a questão da interpretação e a questão do fundamento do direito.

No caso da interpretação, Kelsen reconhece que não é possível resolver os casos concretos somente a partir das normas jurídicas. As normas definem deveres, mas não determinam exaustivamente os modos pelos quais as situações concretas podem ser apreciadas, o que faz com que seja inevitável complementá-las por meio de escolhas valorativas.

Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. [...]
A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação [...]. Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato.

Na medida em que os valores adotados pelo julgador não podem ter pretensão de objetividade, a aplicação normativa é apresentada por Kelsen como uma combinação de "ato de conhecimento" (que identifica as normas e os seus potenciais sentidos) e "ato de vontade" (que escolhe os valores a serem aplicados).

A idéia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação.
A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer - segundo o próprio pressuposto de que se parte - uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito.

Essa admissão do elemento valorativo não rompe a despersonalização kelseniana da ciência do direito, na medida em que ele afirma que a decisão judicial concreta é uma questão política, e não científica. O elemento volitivo e subjetivo lhe parece inescapável para a política, mas a pureza da teoria estará mantida na exata medida em que Kelsen considera que a decisão judicial não pode ser reduzida a uma aplicação científica.

5. A norma fundamental

Para Kelsen, a pergunta sobre o fundamento último de validade do direito não pode ser devidamente respondida, tendo em vista que ela pressupõe a existência de valores objetivamente válidos, algo incompatível com o positivismo de sua abordagem. Essa percepção leva Kelsen a reconhecer que os juristas tratam o direito "como se ele fosse válido", embora seja impossível oferecer razões sólidas que justifiquem essa posição.

Se o Direito é concebido como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens, surge a questão: O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? E esta questão está intimamente relacionada com esta outra: Por que é que uma norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de validade?
Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo “vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. Já anteriormente num outro contexto, explicamos que a questão de porque é que a norma vale - quer dizer: por que é que o indivíduo se deve conduzir de tal forma - não pode ser respondida com a simples verificação de um fato da ordem do ser, que o fundamento de validade de uma norma não pode ser um tal fato. Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de algo dever ser se não pode seguir que algo é.
O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma com o fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai; ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermão da Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso mas pressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho. [...]
O fato de alguém ordenar seja o que for não é fundamento para considerar o respectivo comando como válido, quer dizer, para ver a respectiva norma como vinculante em relação aos seus destinatários. Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas. A esta norma se encontram sujeitos tanto a autoridade dotada de poder legislativo como os indivíduos que devem obediência às normas por ela fixadas. Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior.
Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). [...]
Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.

O objetivismo de Kelsen impede que ele se limite a dizer que a crença na validade é um fenômeno subjetivo, que envolve os valores individuais dos juristas. Kelsen percebe que o reconhecimento da validade do sistema normativo é um atributo mais geral, sem o qual não é possível cumprir o objetivo fundamental da ciência do direito: explicar o fenômeno jurídico como se houvesse um sistema normativo coeso, que integrasse todas as normas. A abordagem da ciência do direito parte do pressuposto de que faz sentido tratar as normas como válidas e, por isso, questionar a validade geral do sistema normativo parece inviabilizar a construção de qualquer saber jurídico normativo.

Abandonado esse pressuposto, poderíamos ter uma ciência sociológica do direito, mas não uma ciência normativa do direito. Por esse motivo, Kelsen se limita a apontar que o axioma da validade existe, sem oferecer motivos que justifiquem essa pressuposição. Assim, parece ter razão Andrei Marmor quando afirma que:

Ao evitar deliberadamente qualquer explicação sobre o que pode fundamentar a escolha de um agente de adotar o ponto de vista jurídico, ou qualquer norma fundamental, Kelsen deixou sem resposta as questões mais prementes sobre a normatividade do direito. Em vez de fornecer uma explicação sobre o que torna racional a pressuposição do ponto de vista jurídico, ou o que torna racional considerar as exigências do direito como exigências vinculativas, Kelsen convida-nos a parar de perguntar. (Marmor, 2021)

Embora Kelsen nos convide apenas a suspender a pergunta, tal suspensão pode ser compreendida de diversas formas. Para um naturalista, suspender uma pergunta tão importante parece um exercício formalista vazio, que obsta o desenvolvimento de uma reflexão que seria fundamental, em termos tanto políticos como filosóficos. Já para um positivista, como Kelsen, existe o reconhecimento de que a justificativa moral da validade jurídica desempenha uma função política e ideológica de primeira grandeza, tal como a falsa ideia de que as normas jurídicas têm um sentido unívoco.

Não se pretende negar que esta ficção da univocidade das normas jurídicas, vista de uma certa posição política, pode ter grandes vantagens. Mas nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição científica do Direito positivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente possível do ponto de vista lógico. Neste caso, com efeito, apresenta-se falsamente como uma verdade científica aquilo que é tão-somente um juízo de valor político.

A admissão do relativismo valorativo deve fazer com que os teóricos do direito reconheçam que a relevância política dos fundamentos morais não é um argumento sólido para continuarmos tentando extrair deveres de fatos, nem para buscarmos uma fundamentação objetiva do direito positivo. Por isso, o que Kelsen nos demanda não é simplesmente que paremos de perguntar, mas que paremos de insistir em dar respostas científicas para questões políticas, que a ciência é incapaz de resolver.