A concepção de ordem natural é demasiada antiga, e detém forte ligação com a necessidade humana de explicar fenômenos sociais e o modo pelo qual assimila a realidade por meio dos conceitos por si criados. Nesse sentido, sobreleva-se as antigas teorias jusnaturalistas, intrinsecamente ligadas às leis naturais e ao tradicionalismo que regiam os povos e que, posteriormente, a fim de cumprir com as necessidades das civilizações à época fora positivado.

A transição de leis naturais para leis escritas foi muito bem abordada na obra de Sófocles - Antígona em que se descreve a dificuldade das normas naturais, divinas e imutáveis passarem a ser escritas pelos homens. Observa-se que a partir deste ponto surgiu um jusnaturalismo mais racional, dando início a racionalização geral do direito que, por fim, ensejou a estabilização do direito como linguagem geral, passando a reger as sociedades globais.

Neste ponto, o Estado passou a ser Soberano, tendo efetivo poder de organização e comando, centralizando o gerenciamento da sociedade. Surgiu a ideia de contrato social, proposta por Thomas Hobbe, que entendia a legitimidade das normas em virtude do consentimento individual dos indivíduos em “assinar” o contrato social com o Estado, dando legitimidade às suas ações.

O constitucionalismo, por sua vez, assegurou ainda mais equilíbrio entre os elementos  tradicionais e os novos conceitos.

A atuação do Estado e as tradições

Todavia, o estabelecimento do constitucionalismo nos estados modernos não pôs fim ao embate secular de tradição e governo. Considerando um viés contratualista de que os indivíduos dão legitimidade para as ações do Estado, constata-se a existência de situações que exigem a atuação do Estado em harmonia com a tradição, como por exemplo, a laicidade do Brasil que apresenta-se intimamente ligada a democracia e a liberdade religiosa. Nesse sentido, sobreleva-se as palavras de Celso Lafer¹ sobre o tema:

“Uma primeira dimensão da laicidade é de ordem filosófico-metodológica, com suas implicações para a convivência coletiva. Nesta dimensão, o espírito laico, que caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate, e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento.”

Inicialmente assegurada pelo Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, a laicidade do estado brasileiro foi, posteriormente mantida pela Constituição Federal em seu art. 5º, inciso VI, no qual  dispôe:

é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.²

Contudo, inobstante a laicidade apresentar-se como elemento constitutivo da ordem natural do estado brasileiro, e ter ampla resignação da população do país, verifica-se  nos últimos tempos, mais precisamente com a ascensão do bolsonarismo, uma intervenção do Estado que embora devesse ocorrer em harmonia com a tradição veio se manifestando de modo manifestamente contrário.

Um exemplo disso, são as inúmeras aparições públicas do atual presidente que foram palco de manifestações, indiscutivelmente, polarizadas e inapropriadas para um chefe de poder executivo de um país laico. Neste ponto, resta evidente a atuação do Estado de maneira contrária à ordem natural da sociedade brasileira.

Ainda quanto a interferência do Estado na ordem natural, destaca-se que nem sempre esta é indevida, uma vez que tradições podem se estabelecer de modo a oprimir e enfraquecer minorias políticas e sociais. Nessas ocasiões a intervenção do Estado faz-se necessária para a garantia da ordem social como é o caso da garantia de igualdade de gênero.

Seria a tradição avessa ao Estado?

É, contudo, importante enfatizar que a tradição carrega consigo gigantesco destaque mesmo em sociedades globalizadas, pautadas por normas positivadas, como nos dias atuais. Se tomarmos o pensamento weberiano como exemplo, veremos que as tradições e os costumes operam como substrato inicial das interações dos indivíduos para com a sociedade. A tradição e os costumes desempenham uma função primordial na coesão e organicidade de um grupo, uma vez que são automáticas, naturais e demandam uma menor complexidade social [3]. Portanto, estabelecem um pilar para aquele grupo, antes mesmo da existência do poder do Estado, que possibilitará o seu avanço em direção às novas formas de organização social.

Nesse sentido, embora o apreço pela tradição aparente ser uma seita rústica, ultrapassada e ignorante, há de se reconhecer que o apego à tradição nos permitiu prosseguir enquanto sociedade humana e, ainda hoje, continua a exercer sua função, ainda que desprovido de sua primazia, perceptível antes dos Estados soberanos.

A partir desse contexto, é notório que o Estado revolucionário francês de 1789 representou um marco para o constitucionalismo e para o conceito de Estado e de governo, um giro linguístico nos conceitos e uma reviravolta socio-política no mundo europeu. Todavia, a tradição, dada por vencida pelos revolucionários, retorna, se atualiza e se faz presente através da crítica de Burke à Revolução. A tradição se apresenta muito mais como um ceticismo legítimo sobre o papel do Estado nessa incipiente organização social, do que mera simpatia bucólica para com o passado, ou seja, há uma ressignificação da tradição, um novo paradigma linguístico para o termo. Conforme explicita Orrueta Filho sobre o tema: [4]

Trata-se, consequentemente, do conjunto de normas jurídicas que nascem e se solidificam a partir de costumes reiterados ao longo de gerações; isto é, são tradições. Consequentemente, o direito tradicional (prescription) teria como prerrogativa a seu favor justamente aquilo que falta ao direito abstrato: ele recebeu seu aval da experiência de incontáveis gerações e, por isso, fora suficientemente testado.
Obviamente, sua permanência não é prova de sua perfeição; mas é prova de sua razoabilidade moral e de sua eficácia política, isto é, sua capacidade de ordenar a sociedade e de conservar os interesses dos cidadãos sob sua proteção. Em contraste, à “perfeição” dos direitos abstratos, corresponde, na mesma proporção, o seu “defeito prático.

Portanto, tradição e Estado não devem ser vistos como antagônicos, mas complementares, uma vez que a coexistência harmônica desses institutos promove uma coesão social saudável, pautada em múltiplos alicerces. Evita-se, assim, a existência de um Estado abusivo o qual depende exclusivamente do uso da força para fazer-se legítimo e assegurar a coesão, ou mesmo de normativas tradicionais de caráter injusto e irracional, as quais poderiam ser discutidas e modificadas, de forma democrática obviamente, com um pouco de incisão do Estado.

Referências

[1] LAFER, Celso. Estado Laico. Direitos Humanos, Democracia e República – Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009, p. 226.

[2]

[3] WEBER, Max. Conceitos básicos de Sociologia. 4 ed. São Paulo: Centauro Editora, 2005.

[4] Orrutea Filho, Rogério. "Direito, política e tradição: paralelos entre Edmund Burke e Schopenhauer." Voluntas: Revista Internacional de Filosofia [Online], 11.2 (2020): 510-528. Web. 4 Mar. 2021