Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.

É natural que nas sociedades humanas exista uma distinção entre governantes e governados?

Buscando responder tal pergunta, faz-se necessário primeiramente entender e definir o que é natural. Parte-se do pressuposto de que natural é uma verdade imutável e universal, e, portanto, aplicável a todos os agrupamentos humanos ou entende-se o natural como algo que se restringe ao que cada agrupamento toma como premissa para sua convivência? Essa definição é importante, pois, a depender de qual pressuposto tomamos, podemos chegar a resultados e respostas diferentes.

Isso porque cada povo e cultura e em cada período histórico interpreta sua ordem natural de forma diversa. Na idade média, por exemplo, o natural é essencialmente a ordem imposta por Deus, que não se confunde com as razões e natureza humana, pois, como apontado por Tomás de Aquino (1980): “a natureza do homem é mutável. [...] A vontade humana, em virtude de um consentimento comum, pode determinar o justo, em coisas que por si mesmas em nada repugnam à justiça natural.”

Na modernidade, Michel Foucault, por sua vez, apresentou a natureza como uma espécie de limite às leis e razões humanas: “Se há uma natureza que é própria da governamentabilidade, dos seus objetos e das suas operações, a consequência disso é que a prática governamental não poderá fazer o que tem que fazer a não ser respeitando essa natureza. Se atropelar essa natureza, se não a levar em conta ou se for ao encontro das leis estabelecidas por essa naturalidade própria dos objetos que ela manipula, vai haver consequências negativas para a mesma” (FOUCAULT, 2008, p. 22).

Thomas Hobbes (1983), por sua vez, partia do pressuposto de que o comando básico da natureza é a preservação da vida. Por esse preceito, é possível inferir que, a depender da necessidade de cada sociedade, pode ser natural ou não estabelecer uma centralização de poder. Vê-se, então, que o conceito de natural não é uníssono. A razão humana é capaz de criar premissas sociais, e assim influir diretamente no que uma sociedade considera como justo ou como moral, delimitando o escopo do que se considera “natural”.

Diante do exposto, não é difícil supor o porquê de filósofos e pensadores diversos chegaram a respostas diferentes para aquela pergunta inicial sobre distinção e desigualdade. Cumpre aqui evidenciar, brevemente, algumas dessas teorias.

Para Platão, “um homem precisa de outro para uma necessidade, e outro para outra, e como precisam de muita coisa, reúnem numa só habitação companheiros e ajudantes” (PLATÃO, 2002). Na obra A República, Platão constrói um Estado ideal, pautando-se no que considera uma desigualdade natural dos seres humanos, de forma que cada habitante teria uma função a cumprir. Isso porque naturalmente alguns seriam superiores (em questão de força ou inteligência) e outros inferiores. A sociedade seria dividida entre comerciantes, guardiões e governantes – estes seriam os filósofos por sua inteligência superior. O Estado ideal de Platão é, portanto, baseado na divisão em classes, e nas desigualdades inerentes e naturais que as dividem e justificam a distinção entre governantes e governados.

Da mesma forma, Aristóteles também entendia que os homens eram naturalmente sociáveis. E, similarmente, o filósofo encara a desigualdade como algo aceitável, sendo um fruto da natureza. Ao se referir à escravidão, explica que alguns nasceram para mandar, enquanto outros nasceram para obedecer. Há, portanto, uma desigualdade natural que repercute na vida social dos indivíduos (BARBOSA, 2004). Esse pensamento, contudo, não compatibiliza com as noções de justiça e isonomia que adotamos hoje em dia, principalmente com a importância que tomam os direitos humanos e fundamentais. Se é fato que a sociedade é marcada por desigualdades, a perspectiva de que esse fator advém do nascimento é completamente ultrapassada.

John Locke, por sua vez, não compactua com as ideias de Platão e Aristóteles de que a desigualdade é natural e apenas reflete um padrão social. Para o filósofo, não haveria desigualdade natural, partindo do pressuposto de que todos os seres humanos seriam iguais. A desigualdade social, por sua vez, seria uma convenção puramente humana. Nesse sentido, Locke entende que o ponto de igualdade entre todos os cidadãos era o trabalho, que coloca como o alicerce para o direito à propriedade privada (LOCKE, 2002). Com a revolução industrial e advento das formas de exploração capitalista, o que se viu na prática, contudo, está longe de ser uma correlação direta entre trabalho e posse.

Por fim, Rousseau, em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, parte de um pressuposto oposto ao dos demais filósofos citados, o de que o homem não tem uma tendência a socialização, mas sim a solidão. Ademais, para o filósofo não haveria autorização na lei natural para desigualdade, vez que os homens nascem livres, iguais e independentes. Ocorre que, quando unidos por um contrato social ilegítimo, dos homens é retirada sua liberdade, o que dá o direito de que alguns possuam o que os outros não tenham. Veja-se que para Rousseau a desigualdade não é natural, mas sim uma obra humana que advém da concessão da sua liberdade a partir de um contrato (BARBOSA, 2004).

Diante desse cenário, é possível a interpretação de que a distinção entre governantes e governados não é algo natural – natural no sentido estrito do termo, considera-se aqui o que advém da natureza, algo universal – mas sim uma concepção artificial de que, para que haja ordem, é necessária uma centralização de poder. É a própria razão humana que torna essa circunstância como natural. Isso porque, como se viu dos estudos de Pierre Clastres, Yuval Harari e Flannery e Marcus, a história foi marcada por diversas sociedades que não se encaixavam nesse padrão de formação social que hoje temos como natural, ou mesmo rechaçavam essa perspectiva. Justamente porque não é uma verdade imutável, não é a única forma de constituir sociedade.

Essa concepção, todavia, e sobretudo nas sociedades ocidentais e globalizadas, é bastante naturalizada, pois considera-se justamente essa distinção como a característica marcante de uma sociedade civilizada e funcional. Essa ideia parece ser muito bem retratada no seguinte trecho do livro O Senhor das Moscas: "Precisamos ter regras e obedecer a elas. Afinal, não somos selvagens. Somos ingleses e os ingleses são melhores em tudo." (GOLDING, 2011)

Escrito em 1954 por William Golding, O Senhor das Moscas desenvolve sua narrativa com o pano de fundo da Segunda Guerra Mundial, definindo o tom da trama ao redor da ideia de falha das instituições políticas e sociais. Um grupo de meninos, cuja idade varia entre 5 e 13 anos, são resgatados por um piloto de avião. O enredo se inicia propriamente com a queda desse avião de resgate em uma ilha deserta, quando percebe-se que os únicos sobreviventes são as crianças. Diferente do que se esperaria, as crianças não demonstram estarem assustadas, mas sim transparecem um sentimento de liberdade e alívio ao se encontrarem longe do mundo dos adultos, cheio de regras e corroído pela guerra. (GOLDING, 2011)

Postos de frente com a necessidade de aprender a sobreviver sozinhos e em condições inóspitas, esses jovens, inicialmente, se apegam às normas aprendidas em suas vidas anteriores.  Essa ideia fica clara no início da narrativa, em que, após uma assembleia, os meninos designam um líder. É perceptível aqui a ideia de centralização de poder como algo natural. Aponta-se que os meninos tinham a possibilidade de começar uma sociedade do zero, longe das instituições já fixadas, e de forma praticamente inconsciente, voltam ao mesmo padrão que já conhecem, de obediência às regras impostas por um líder, o que fica claro também na primeira metade do trecho transcrito acima.

Da frase transcrita, retira-se também outra ideia de formação social. A diferenciação do nós e eles como ponto de união daqueles que dispõe de similaridades. Ao tentar convencer os demais meninos sobre a necessidade de regras, e propriamente colocando de maneira assertiva sua liderança, o personagem Jack faz um apelo à identidade daquele grupo (afinal, são ingleses, civilizados) em contraponto direto com a figura do outro (selvagens).

Esse apelo do personagem vai ao encontro da teoria de Carl Schmitt. Para o filósofo alemão, existem dois princípios políticos formais sobre os quais se fixam as formas políticas: a representação e a identidade (SCHMITT, 2006). A identidade parte do pressuposto de que não existe nenhum Estado sem povo, e que o povo é sujeito da determinação conceitual do Estado. A identidade, contudo, requer diferença, já que a igualdade interna tem como contraposição uma desigualdade que lhe é externa (KLEIN, 2009).

Percebe-se que a igualdade para Schmitt é, portanto, aquela que tende a excluir e afastar aquilo que não é igual. A “homogeneidade se refere a uma característica existencial de um determinado grupo de indivíduos, o que o transforma num grupo político. A homogeneidade é aquilo que faz com que um povo se distinga de outros” (KLEIN, 2009, p. 141). Cria-se uma homogeneidade artificial que une o povo em torno da identificação pressuposta no binômio amigo-inimigo. A partir dessa teoria, Schmitt estabelece uma relação de igualdade entre dominantes e dominados, dos que mandam e obedecem, pois estes se identificam (nós) a partir do rechaço à figura do inimigo (eles).

Ao longo de O Senhor das Moscas, o autor cria uma tensão clara e latente entre civilização e selvageria, carregando a narrativa de simbolismos da passagem daqueles jovens entre os dois estados. Isso porque de início os jovens procuram instituir sua própria “civilização” – ou aquilo sobre o qual suas experiências passadas informavam como civilização -, dispondo apenas dos recursos naturais da ilha e de suas próprias lembranças e fantasias. Contudo, aos poucos, longes do contexto social em que viviam, os meninos vão revelando seus impulsos e instintos “selvagens”. (GOLDING, 2011)

Retoma-se aqui então a ideia de que, para sobreviver em sociedade, é preciso criar distinções entre as pessoas e estabelecer um tipo de poder centralizado – caso contrário todos sucumbirão à violência e selvageria. Esse fato parece ser algo natural no imaginário social. O tema não foi apenas explorado por filósofos e estudiosos da área, como também pela literatura clássica, como nas já mencionadas reflexões de O Senhor das Moscas, e ainda na própria cultura mainstream.

Sob essa perspectiva, o Netflix lançou, em 2019, a primeira temporada da série “The Society”. O enredo traz em sua essência clara inspiração do clássico de Willian Golding, com devidas adaptações para agradar ao público alvo (jovem/adolescente). De forma similar, a série narra a história de um grupo de jovens isolados da sociedade. Diferente de O Senhor das Moscas, no entanto, os jovens permanecem em sua cidade natal, dispondo das comodidades do mundo moderno (casas, água encanada, eletricidade, etc.). A partir daí, diversos temas relacionados à tomada do poder e formação de novas comunidades passam a ser tratados.

De início, a série dá indícios de uma possível crise gerada a partir do momento em que os jovens percebem que tem acesso a todos os estabelecimentos (supermercados, farmácias, lojas) e sem nenhum tipo de fiscalização. Isso porque, com algumas poucas exceções, os personagens partem, a princípio, de uma visão mais individual. Era naquele momento um grupo completamente horizontal, não havia uma figura de liderança ou mesmo um tipo de governo que impusesse regras de convivência. Todos continuavam vivendo em suas próprias casas e satisfazendo suas necessidades de forma completamente livre.

Ocorre que os recursos não são ilimitados, e os primeiros problemas começam a surgir com o desabastecimento do supermercado da cidade (uma vez que estando sozinhos e impossibilitados de sair, não haveriam meios de repô-lo). Esse caos deu origem a discussões sobre dividir recursos, estabelecer algum tipo de ordem e pensar no coletivo. Evidencia-se nesse momento a personagem Cassandra, que toma a frente dessas discussões e começa a implementar algumas medidas nesse sentido. Nem todos, contudo, ficam satisfeitos em ter de abrir mão da liberdade que gozavam até aquele momento, o que enseja problemáticas de teor político e atos de violência, que culminam no assassinato da personagem.

A partir desse ponto, a sociedade é praticamente inteiramente reestruturada. Como medida de proteção, não se pode mais ocupar uma casa sozinho, criando-se grupos que irão dividir moradias. Os alimentos foram todos confiscados pelo “governo” que se formou – liderança determinada com base numa característica hereditária –, e para que os outros possam recebê-los, precisam de alguma forma contribuir para o bom andamento social. Institui-se até um poder polícia com os indivíduos mais fortes daquele grupo. Nessa perspectiva, a série constrói uma narrativa gradual acerca da formulação de um governo, distinção entre os membros da sociedade e divisão do trabalho e a naturalidade com que podem tomar formas repressivas e totalitárias, mesmo que a sua instituição pareça ser um passo lógico e compreensivo.

Muito do que é trabalhado na série, pode ser extraído da obra Leviatã, de Thomas Hobbes. Ambas retratam o poder nas mãos do chefe (no caso de Hobbes, retratado na figura do Monarca), chegando à conclusão que a ordem só pode ser atingida por meio de um líder soberano (HOBBES, 1993).

A série trabalha, assim, a formação de uma nova sociedade, trazendo como ponto central a necessidade de criar leis e estabelecer um poder concreto para que pudesse seguir em frente. Tal proposta enseja interessantes discussões acerca dos ideais primordiais do que constitui uma sociedade organizada, em claro contraponto aos instintos humanos. A reflexão trazida na trama sobre a evolução natural das instituições políticas materializa algumas das discussões travadas nesse post, e permite um olhar acerca do senso comum do que se considera como natural para uma sociedade.

Viu-se que a ascensão da instituição política que diferencia os homens em governados e governantes também define outros diversos dois lados de um contínuo debate sobre os valores morais e políticos. Põe-se em contraponto: natureza e razão; igualdade e desigualdade; liberdade e governo; totalitarismo e anarquia. Nessa contraposição de princípios, valores, conceitos e teoria, é difícil chegar a uma resposta concreta para a pergunta. Todavia, dentre as teorias expostas, acredita-se que a mais correta na visão deste grupo seria a de que a distinção entre governantes e governados, por si só, não é natural, mas que pode ser naturalizada a depender da sociedade que a adote.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Cristine Aparecida. A desigualdade nos clássicos políticos de Platão a Rousseau. Educação e Filosofia, v. 18, nº 35/36 – jan./dez. 2004.

Costa, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020.

______. Yuval Harari e a Armadilha da Revolução Agrícola. Arcos, 2020.

______. As origens da desigualdade política. Arcos, 2020.

______. A ordem imaginada. Arcos, 2020.

DE AQUINO, Tomás. Suma teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. Caxias do Sul: Sulina Editora, 1980.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no College de France (1978-1979). Edição estabelecida por Michel Senellart; sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana; tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

GOLDING, William. O senhor das Moscas – 1954. Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participações S.A. Edição de 2011

HOBBES, Thomas. Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). 3. ed. São Paulo: AbrilCultural, 1983. Col. Os Pensadores.

KLEIN, Joel Thiago. A Teoria da Democracia de Carl Schmitt. Revista Princípios Natav, v. 16, n. 25, jan/jun. 2009, p. 139-156.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2002.

PLATÃO. A República. São Paulo. Martin Claret, 2002.

SCHMITT, Carl. Teoria de la constituición. Trad. Francisco Ayala. Salamanca: Alianza Editorial, 2006