Muitos de nós não nos preocupamos mais com essas perguntas, entretanto, questões como 'de onde viemos?' ou 'para onde vamos', que eram tradicionalmente questões filosóficas, hoje são recorrentes exclusivamente para a ciência. Os filósofos atuais não têm estudado de acordo com as descobertas mais recentes da física, e por isso, a filosofia está morta hoje."

A presente afirmação do físico Stephen Hawking se fundamenta em dois pressupostos básicos: 1) uma suposta dicotomia radical entre ciência e filosofia e 2) bases metafísicas acerca do papel da ciência.
Quanto ao ponto 1), podemos recobrar o livro de Ian Barbour (Science and Religion, 1966) e divisão quádrupla acerca das relações possíveis entre ciência e religião: 1) cooperação, 2) independência, 3) conflito e 4) diálogo. Embora Barbour esteja interessada em como o desenvolvimento da ciência afetou a Religião, podemos fazer uma analogia em relação a ciência a partir da presunção de Hawking.

Ora, o desenvolvimento da ciência ensejou uma nova forma de compreender o mundo, forçando as interpretações anteriores, como a Filosofia e a Religião, a se depararem com essa nova metodologia. Seguindo o que Galileo afirma, no Il Saggiatore, que o “livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos”, podemos afirmar que o método cientifica, afastando-se do que se chamava Filosofia Natural, como o braço filosófico de investigação da natureza (conferir o texto do medievalista São Boaventura Reductio Scientia Ad Theologiam ),a ciência conquistou autonomia investigativa em termos de uma metodologia mais quantitativa que qualitativa (PENEREIRO, 2009, p. 176; 180-181). Dessa forma, podemos dizer que houve um afastamento das explicações de ordem dedutivas, voltando a metodologias indutivas a partir de regras de inferências baseadas nas informações sensíveis advindas da experiência (OLAVO et al., 2014, p. 582-583), afastando conceitos e categorias explicativas que fossem não empiricamente verificáveis, seguindo a proposta explicativa de dar conta do fenômeno a partir das observações sensíveis.

O sucesso da ciência pressionou a Filosofia na época moderna. Ora, Descartes busca, nas Meditações, mostrar que a regularidade da Natureza poderia ser explicada filosoficamente na busca de provar, como se depreender da Sexta Meditação, um fundamento para a confiabilidade da ciência por meio de sua prova da existência de Deus na Terceira Meditação - havendo um Deus perfeitamente bom, fez a Natureza para ser conhecida regularmente. Kant, já no Prefácio à primeira Crítica, afirma que não há conhecimento, tomado a Aristóteles, que não tenha passado por ele. Fazendo a divisão entre Estética Transcendental e Lógica Transcendental, o autor de Köninsberg propõe que todo conhecimento merece esse nome por ter dados advindos da experiência permitidos pelas condições de possibilidade do Espaço e Tempo, dados estes que são submetidos às categorias do entendimento. Kant busca salvar com isso a física de Newton, mostrando ser verdadeiro conhecimento sobre o mundo.

Contudo, o que se pode perceber da abordagem de Barbour, aplicada à relação ciência e filosofia, é que o nível explicativo que interesse à ciência e à filosofia são distintos. Haveria conflito se a ciência e a filosofia usassem a mesma metodologia - como propuseram os positivas de Viena, destacadamente Carnap -, contudo, parece haver mais ou um diálogo ou uma independência, sendo que optamos pela primeira opção. Isso porque Filosofia e Ciência optaram por compreender a realidade a partir de perspectivas diferentes, as quais são claramente compatíveis. Perguntar sobre de onde viemos ou para onde vamos pode compreender uma abordagem mais naturalista, afastando a possibilidade de sentido real extra natureza, contudo, é exatamente isso que a Filosofia questiona. O fato de saber que há uma teoria sobre a origem do universo visível é diferente de dizer porque há algo e não o nada; ou ainda, que há um sentido da vida em termos de um propósito.  

Hawking assume que haveria algum tipo de conflito, por assumir aquilo que Plantinga (2011, p. 346-349) chama de redução da ciência ao naturalismo metafísico, ao assumir que a ciência tem bases exclusivamente materiais, logo, a existência também. Ao assumir que a completude explicativa é  natural seria o mesmo que dizer que não é preciso ir além da Física para explicar toda a realidade (RITCHIE, 2012, p. 167). Contudo, essa mesma afirmação não é cientificamente verificável, portanto, escapando à explicação científica, já que não se pode empiricamente provar o que seria toda a realidade existente, sendo uma postura filosófica, confundindo ciência com metafísica (WARD, 1996, p. 99-100). Dizer que o sentido da vida é redutível a uma explicação acerca do futuro natural da realidade do Universo já presume que não é necessário fazer algum tipo de investigação para além do natural.

Quando se reflete sobre o impacto de tais discursos na relação com a filosofia, podemos dizer que o discurso antifilosófico hoje não segue a mesma senda. O positivismo científico, aos moldes do Círculo de Viena, perdera força filosófica e há a abertura de novas abordagens quanto à realidade, inclusive co recuperação do discurso religioso e de outras abordagens. A indiferença e até antagonismo em relação à religião versa mais sobre uma ideia de instrumentalização da mesma em termos de ideologia e não tanto como a guerra entre ciência e filosofia. Cremos que o discurso de Hawking se assemelha de alguma aversão à Filosofia hoje apenas na falsa compreensão crítica sobre o próprio papel da ciência, bem como da Filosofia, como uma forma de espantalho. A novidade está, nos dias atuais, em imaginar que a Filosofia teria papel empobrecedor mais que alargador sobre as visões de mundo.

Se por um lado Hawking ainda compra uma forma de cientificismo acrítico, sem um pensamento reflexivo sobre as bases da ciência, há que se considerar o fato de uma nova ordem crítica surgir de uma investigação pouco acurada sobre o papel da filosofia. Não há falar em morte da filosofia, pois a reflexão sobre a morte ou não da filosofia não é científica, mas especulativa. Imagina-se que as categorias filosóficos foram deflacionadas e reduzidas, em especial com o naturalismo metafísico a partir de novas perspectivas científicas, como na neurociência e na física, a relações meramente materiais. O que a Filosofia mostra, mais uma vez, seguindo a lógica do thaumatzein aristotélico, é que dizer que a Filosofia é isso ou não é aquilo é uma forma especulativa e conceptual de compreensão de mundo, logo, filosófica, mostrando que apenas fazendo filosofia é possível refletir sobre a própria Filosofia.      


Bibliografia

BARBOUR, Ian. Science and Religion. California:HarperOne, 1997.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010 [1787].
OLAVO, L.S.F.; POLITO, A.M.M.; BARBOSA, P.V. Espaço, Tempo e Realidade: um estudo comparativo
entre três concepções de mundo. In.: Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 31, n. 3, pp. 568-597,
dez. 2014.
PENEREIRO, J.C. Galileo e a defesa da cosmologia copernicana: a sua visão do Universo. In.: Caderno
Brasileiro de Ensino de Física, v. 26, n. 1, pp. 173-198, abr. 2009.
PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies. Oxford: Oxford University Press, 2011.
RITCHIE, J. Naturalismo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
WARD, Keith. God, Chance & Necessity. Oxford: One World, 1996.