A perspectiva de norma como uma revelação subjacente que decorre da interpretação de um conjunto de textos, indicada por Paul Silbert, parece contrastar com a compreensão mais formalista atribuída por vezes a Kelsen.

As teorias jurídicas formalistas do século XIX e do início do século XX julgavam possível a produção de normas em patamar de estruturação tal que levasse à completude do sistema jurídico, o que apenas perdeu força a partir da crise do paradigma do Estado Liberal.

Kelsen, por ser visto como precursor do formalismo do século XX, afastou-se dessas correntes formalistas clássicas, porque as considerou dependentes de uma inalcançável certeza do Direito. Para o jurista austríaco, os textos legais não poderiam contemplar a totalidade das situações fáticas e, portanto, haveria uma indeterminação natural da linguagem jurídica.

Apoiado nesses pressupostos, Kelsen erige sua teoria pura do Direito: a ciência jurídica deve ter um objeto genuinamente seu, livre de contaminações de outras ciências. Para alcançar esse fim, o jurista reduz o Direito à norma. Legitimidade, conteúdos políticos ou de outra natureza são estranhos ao Direito, que tem por objeto a lei. A validade de uma norma repousa, assim, em sua mera vigência, enquanto que a eficácia social é relegada a um plano diferente do jurídico.

Essa formulação tem alinhamento claro com a avaliação de Silbert de que “o conceito de norma em Kelsen é bastante preciso: trata-se do sentido objetivo de um ato de vontade. A norma, portanto, não é texto, mas é significado”, além de deixar evidente o equívoco dito pelo filósofo de ignorar o “o caráter linguístico-interpretativo do direito” em Kelsen para compreendê-lo como mero defensor da aplicação literal das leis.

Kelsen, portanto, sustenta ser possível a construção de uma ciência pura do direito, livre de critérios valorativos, " uma ciência que precisa descrever o seu objeto tal como ele efetivamente é, e não prescrever como ele deveria ser do ponto de vista de alguns julgamentos de valor específico".

Segundo PEDROSA (2016) essa estrutura formal representaria uma verdade universal dentro do Direito, tendo em vista que a estrutura formal não sofre influências das mudanças sociais, ou seja, ela permanece a mesma, independentemente do contexto espaço - temporal. Tal teoria é confrontada pelo pensamento de Foucault, que afirma que não há conhecimento sem influência das relações de poder, sendo que a própria ideia de verdade científica é um discurso temporal de criação de verdades.

"A diferença entre saber e ciência, entre verdade científica e genealogia da verdade sugere que nas ciências humanas as verdades atribuídas ao sujeito são produzidas como efeitos dos mecanismos de poder. Na busca de uma justificação racional e social, certas práticas coercitivas funcionam como se fossem verdades, fortalecendo ainda mais suas segregações e separações. As estratégias de poder produzem efeitos de verdade, funcionam como tais." [1]

Nessa mesma perspectiva, está a análise sobre um conceito muito caro ao Direito, a justiça. Segundo Costa e Diniz, a ideia de justiça e sua relação com as normas variou muito ao longo do tempo. Em um primeiro momento, sob a influência da filosofia clássica grega, a lei deveria estar de acordo com a ideia de justiça para ser correta. Todavia, como destaca Kelsen, a indicação de um ideal de justiça não passa de uma tentativa vazia de justificar valores absolutos. Logo, não é possível pensar na justiça das normas da forma como os gregos sugeriram em razão de apenas refletir os valores de determinada cultura como sendo o adequado. (COSTA e DINIZ 2018).

Visando superar esse problema, Derrida tentou modificar o conceito de justiça, separando-o da ideia de certo e errado. Não existe, segundo o filósofo, uma justificativa racional que assente a validade das leis. O direito é válido pois cria dever, e se cria dever possui validade. O discurso circular em questão evidencia a complexidade da relação entre o direito e a justiça, já que, via de regra, não há uma relação de justificação entre eles. Tal constatação é muito útil no âmbito jurídico em razão de grande parte do sistema apoiar suas decisões em conceitos de justiça e moral, o que joga uma cortina de fumaça sobre a arbitrariedade das decisões em muitos casos.

E o que Paul Silbert quis provocar ao afirmar que “o que é evidente não nos instiga?”. De qual lugar ele fala? Nem naturalista, nem positivista, segundo o próprio, um realista, em razão de considerar que sua postura buscava sempre reconhecer a real faceta do direito, sem os dogmatismos inerentes aos radicalismos positivistas e naturalistas.

Tal afirmação é de suma importância para compreender suas considerações, principalmente quando examinadas em contraposição ao que defende Kelsen.

Enfim, se um conjunto de normas ou um conjunto de direitos subjetivos, o que se vê nos dias atuais é atuação de um Direito interpretativo, que necessita urgentemente de uma reforma, em que a justiça, a autonomia e o respeito ao próximo sejam sobrestimados.  

BIBLIOGRAFIA

COSTA, Alexandre; Diniz, Ricardo Spindola. Direito, Desconstrução e Linguagem/Um mínimo de liberdade. Em: Coelho, Saulo; Diniz, Ricardo; Coelho, Diva. Florianópolis: Tirant lo blanc, 2018.

[1] CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a verdade. 2005. 212 f. Tese (Doutorado em filosofia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 198.

KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito. 7. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PEDROSA, Lana Matienzo Gomes. Direito e verdade: interlocuções entre Kelsen e Foucault. Unibrasil Centro Universitário, v. 02, n. 02, 2016.