O Chile protagonizou, no ano de 2020, um histórico plebiscito que outorga a construção de uma nova constituinte após 30 anos sob regime da Constituição herdada do período ditatorial de Augusto Pinochet nos anos de 1973 a 1990. Este momento tem como principal característica a participação popular chilena perante as inúmeras insatisfações quanto às medidas adotadas pelo governo atual.
Os protestos iniciaram-se em 2019 e ocorreram principalmente na capital chilena, tendo como estopim o aumento no preço da passagem de metrô no percentual de 3,75%, passando de 800 para 830 pesos, o equivalente a R$ 4,80. No entanto, as razões que levaram Santiago a ser palco de violentos protestos não são única e exclusivamente decorrentes do aumento da passagem de ônibus. O dissabores da população vem de muito antes, decorrente da desigualdade social e econômica, do alto custo para ter acesso aos serviços básicos no país, visto que o acesso à saúde e à educação é praticamente privado e o Estado tem uma presença tênue em fornecer tais serviços, da falta de representatividade da classe política, dentre outros. Tais circunstâncias levaram a uma onda de violência no país provocando mortes, depredações, incêndios e saqueamento de lojas e, assim, fizeram com que o atual presidente, Sebastián Piñera, declarasse estado de emergência na capital, impondo um toque de recolher e adotando medidas de controle convocando os Carabineros - polícia militar, que desde a ditadura não eram mobilizada, para controlar os protestos, consequentemente gerando mais ondas de revolta e violência.
Mesmo com um pedido oficial de desculpas por parte do presidente e a declaração de mais direitos e igualdade no país, o fim do toque de recolher e do decreto de emergência encerrado não impediram com que os manifestantes fizessem uma greve geral exigindo o regresso dos Carabineros aos quartéis. Os confrontos somente cessaram com um acordo político, no qual convocou um plebiscito para decidir sobre a construção de uma nova Carta Magna ou a continuidade, porém com as devidas modificações exigidas pela população, da Carta vigente. Apenas em 2020, após ter sido adiada diversas vezes devido ao contágio e o avanço da pandemia no país, com uma maioria de 80% dos votos os chilenos aprovam a mudança para criação de um novo texto constitucional elaborado por 155 representantes eleitos por sufrágio popular.
A nova Assembleia Constituinte traz no seu bojo uma significativa vitória popular, uma vez que a sua composição possui uma maior diversidade e, portanto, foi mesclada entre membros com ou sem filiação partidária, isto é, professores, escritores e ativistas sociais, participação de povos indígenas, bem como formada com paridade de gênero, sendo que 50% dos constituintes são mulheres e 50% homens. Todavia, dentre os 155 constituintes alguns critérios foram adotados, tais como ser maior de idade (18 anos) e cidadão chileno, não exercer nenhum cargo político no Executivo ou Legislativo e tampouco ter sido sentenciado à pena superior a três anos de detenção.
Ainda que este seja um processo louvável da soberania popular chilena, sobretudo após viverem anos sob regras da Constituição de 1980 que possui um forte legado da ditadura de Pinochet, não seria a primeira assembleia elaborada mediante sufrágio universal. A contar do século XVIII até a contemporaneidade, demasiadas foram as constituições promulgadas e/ou outorgadas que alegam possuir caráter de soberania popular. A própria Constituição brasileira vigente, cita a participação popular na sua fundamentação legitimadora, todavia, a decisão de uma nova constituição e a formação da Assembleia não tem a participação popular direta. Além disso, o Brasil não é a única, outras seis possuem tal característica, isto é, tendo o povo apontado como parte da sua fundamentação, dentre estas, quatro foram promulgadas e duas outorgadas.
Não diferente do Chile, a mudança e a participação popular na elaboração do texto constitucional brasileiro só ocorreu mediante a pressão popular sob o Congresso e de movimentos organizados para chegarmos a Constituição Cidadã, a qual carrega o título de marco histórico de redemocratização, depois dos impiedosos anos ditatoriais no Brasil, e detém a presença de movimentos sociais e participação popular para possibilitar que os direitos sociais fossem abarcados e assegurados. Entretanto, a participação popular se deteve apenas na formulação do texto, dado a ausência da efetividade da letra da lei e as inúmeras alterações que dificultaram ao povo o acesso a tais serviços, a título de exemplo a Reforma Trabalhista e suas exigências.
Neste viés, o que em tempos outrora, nas primeiras noções de soberania do povo, mais especificamente em Rousseau onde explicava que a soberania do Estado deveria ser transferida ao povo, ou seja, a soberania seria exercida diretamente de modo infindável e absoluto por estes; e Thomas Hobbes, ao colocar a soberania do povo como a autoridade original do poder soberano dos reis, atualmente, com o transcorrer dos séculos e recebendo percepções modernas conforme o avanço da sociedade, a concepção atual confere a legitimidade da soberania do poder do povo através do constitucionalismo como mecanismo de delimitar os poderes do governo. Logo, ao adquirir esse aspecto de participação da sociedade civil e dos cidadãos em geral, o povo atua como instrumento para conferir ao poder político legitimidade e perpetuidade, bem como razão da existência da autoridade. Dessa maneira, não seria incomum a possibilidade de um plebiscito que provocasse uma assembleia para compor um novo texto constitucional ou apenas modificá-lo se a população que a ela está submetida entendesse que o texto não condiz mais com o atual contexto e não responde às suas necessidades, a título de exemplo, o plebiscito já fora utilizado outras vezes antes no Brasil, para decidir a forma de governo no ano de 1993, entre monarquia ou república e o sistema de governo entre parlamentarismo e presidencialismo.
Por fim, Assembleia Constituinte faz história ao gerar a primeira Constituinte composta por um número igualitário entre homens e mulheres, o que demonstra uma conquista das mulheres chilenas que, tal qual a todas as mulheres do mundo, precisam lutar pelos seus direitos e conquistar, ainda que em passos vagarosos, maior espaço na política chilena e reivindicar por uma igualdade de gênero. Atualmente, no Chile, dos 155 deputados que compõem a Câmara, tão somente 35 são mulheres, no Senado não é diferente, a proporção é semelhante a da Câmara, logo as mulheres são minorias e ainda têm muito o que vencer em um mundo patriarcal.
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