A sociedade contemporânea, em especial a ocidental, vive um momento de intensos embates entre um pensamento progressista e uma ideia de necessidade de respeito as tradições ou até um retorno a tradições abandonadas.

Nesse cenário de tensões, o governo deveria tentar atuar para equilibrar as diferentes demandas das ideias progressistas e das tradições. Entretanto, o papel conciliador do Estado acaba por gerar mais tensões, seja porque o próprio governo ignora um dos lados e tenta fazer prevalecer uma certa concepção do que seria o socialmente “correto ou aceito”, seja porque os conflitos sempre irão existir, não importando a atuação política.

Essa noção de equilíbrio, que resolvemos não adotar, foi muito difundida pelos antigos numa perspectiva de que os governantes deveriam atuar de modo a respeitar as tradições, sendo estas sinônimo da ordem natural imanente do mundo. Portanto, segundo o pensamento de diversas culturas antigas, o governo deveria agir de modo compatível com a ordem natural das coisas, respeitando as tradições (COSTA, 2020).

Para trabalhar melhor essa dicotomia entre a vontade política e a “vontade” das tradições, faremos uma breve digressão para entender essas duas categorias. De pronto, é importante salientar que encaramos que tanto o governo (vontade política) quanto as tradições, são elementos artificiais que não podem ser encarados dentro de uma ordem natural.

Sobre os governos, para poupar tempo e seguir as ponderações já realizadas sobre o tema, remetemos o leitor ao texto já produzido pelo grupo “Governantes e governados: desigualdade natural ou necessária?”. No texto, basicamente concluímos pela artificialidade da distinção entre governantes e governados, o que não significou dizer que essa diferença não seja necessária para as sociedades complexas como a nossa. Portanto, seguiremos a linha de que a vontade política não é natural e nem é fruto de uma suposta ordem natural (como defendem os contratualistas).

Já as tradições são apresentadas como personificações da ordem natural, o que as legitimaria. Para Costa (2020), essa visão foi combatida pelo historicismo do séc. XIX, apesar de ainda ser muito recorrente na contemporaneidade.

Adotaremos a concepção de que a cultura (nela inserida as tradições) é resultado de um processo evolutivo/acumulativo que confere aos povos suas mais distintas crenças e formas de governo (ALMEIDA, 2011).

Partindo dessa premissa de que a cultura remete a um processo evolutivo e, consequentemente, modificativo ao longo do tempo, não há como existir uma tradição inserida dentro de uma ordem natural imanente. A cultura, tratada como um processo evolutivo, não segue uma cadeia estática, o que foi tradição antes, pode não ser tradição hoje ou no futuro. Por isso que “O mundo contemporâneo é muito diferente - culturalmente diferente - do mundo antigo, justamente porque a evolução cultural ocorre: as crenças, desejos, normas e instituições de hoje são o produto de um lento e gradual processo evolutivo.” (ALMEIDA, 2011, p. 63/64). Não há como encarar uma ordem natural dentro de algo tão volátil ao tempo.

Talvez até possamos encarar a evolução (evolução em um sentido modificativo e não necessariamente de aprimoramento) cultural em si como algo da “ordem natural das coisas”, mas estaríamos diante de uma ordem natural esvaziada de conteúdo ou de difícil determinação.

Almeida (2011) explica que o ser humano possui uma psicologia social/moral inata que definiria as manifestações culturais diversas dentro de um contingente de possibilidades que não contrariassem essa mesma psicologia inata. Em outras palavras, o ser humano teria um senso moral universal que restringiria as possibilidades culturais, mas ainda haveria de ter diversas culturas distintas devido ao processo de evolução cultural único de cada povo.

Ora, se apenas o processo evolutivo da cultura e suas “diretrizes cognitivas” (que seriam a psicologia social/moral inata do ser humano) são inseridas dentro de uma ordem natural das coisas, o conteúdo da cultura estará sempre fora da ordem natural. Portanto, nem as tradições, os costumes, os estados e os governos fazem parte da ordem natural, são todas estruturas artificiais frutos do conteúdo da cultura.

Nesse diapasão, o direito natural não conseguiria encontrar respaldo na concepção de um único senso moral universal, pois a nossa psicologia moral inata permitiria a concepção de diversos sensos morais distintos ( ALMEIDA, 2011, p. 141/148).

Essa conclusão não significa dizer que o direito natural estaria completamente equivocado. Para Almeida (2011, p.141):

O jusnaturalista está parcialmente certo ao afirmar que existem princípios normativos sobre os quais a estrutura do direito está fundamentada O direito natural inscrito em nossa mente, que determina a estrutura da experiência moral possível, é baseado em certos princípios universais. Mas, ao contrário do que o jusnaturalista poderia esperar, esses princípios acomodam uma grande diversidade de parâmetros culturalmente determinados - e não apenas os valores morais considerados corretos pelos filósofos jusnaturalistas. É possível descobrir, por meio de experimentos, os princípios inatos da gramática universal moral, mas, dada a sua abrangência e indeterminação, não seria correto invocá-la para avaliar, normativamente, a validade de um determinado conjunto de normas jurídicas, como propunham os teóricos jusnaturalistas. Na verdade, todos os sistemas jurídicos que já existiram são fundamentados sobre esses princípios, que são inerentes a nossa cognição normativa.” - grifo nosso.

Portanto, a concepção de “ordem natural” é limitada e não serve para legitimar a vontade política e nem a vontade das tradições.

Os gregos também eram críticos da tradição, mas ainda buscavam na ordem natural uma espécie de baliza. Eles acreditavam que a ordem natural deveria ser acessada pela racionalidade e, nas concepções construídas por esse processo, rejeitar as tradições e o governo que fossem contrários aos ditames da ordem natural (COSTA, 2020).

Posto isso, temos que a solução dos gregos para o equacionamento entre a política e as tradições não nos serve.

A busca de uma equação que explica e tenta equilibrar as tensões entre a política e as tradições deve, necessariamente, adotar a ideia de que se trata de um conflito entre duas artificialidades que são frutos da cultura em um processo histórico contínuo. Portanto, as tensões possuem um paradigma histórico importante que deve ser considerado e, a priori, por se tratar de dois sistemas artificiais, não existiria prevalência de legitimidade em algum deles.

Desembarcando nos dilemas contemporâneos, podemos pegar como exemplo de embate entre a vontade política e as tradições, a conflituosa relação “Estado x Religião”.

O que deve prevalecer, os ditames do governo ou as tradições religiosas? E quando o governo busca a legitimidade de suas decisões nas próprias tradições religiosas, ainda perduram conflitos?

De cara, ao analisar a tensão entre Estado e religião, já podemos resgatar a ideia de um processo histórico contínuo. Ora, essa tensão já era retrata desde os gregos antigos, com a tragédia “Antígona”, que já trazia elementos complexos dessa tensão (KATHRIN, 2002).

O histórico das tensões entre religião e Estado não significa necessariamente uma dicotomia em que ambos se digladiam. Conforme explica Bonome (2008), a relação entre os governantes e a religião pode ser usada para fortalecer ambas estruturas, de modo que a religião busca ter influência nas decisões políticas e a decisão política busca legitimidade nas tradições religiosas.

Ocorre que o recorte histórico recente mostra que a religião aparentemente perdeu força diante das decisões políticas, pelos menos do ponto de vista de interferência direta da igreja no Estado. No entanto, a igreja apenas migrou seus esforços para as áreas que lhe são garantidas a hegemonia moral, atuando nos temas que de um modo ou outro irão causar tensões no meio político. Segundo Bonome (2008, p. 6):

“A Igreja acredita que através da educação poderá impor valores da moral católica que influenciará as gerações futuras. Quanto à saúde, a Igreja, impondo sua moral rígida contra métodos contraceptivos e o aborto, acredita estar defendendo a vida contra o que acredita ser a banalização da vida.”

Ainda segundo Bonome (2008), a igreja acabar por adentrar em esferas privadas alheias aos seus fiéis, impondo tradições para toda uma sociedade diversa e complexa, gerando novos grupos que irão conflitar com a religião e contra o Estado se este não se impor firmemente contra as tradições. Mas, a imposição firme do Estado contra tradições da esfera privada do religioso, também gerará conflitos.

Portanto, é possível chegar à conclusão de que o conflito entre Estado e religião não diminuiu significativamente com a contemporaneidade, apenas houve uma restruturação desse conflito (FREIRE, 2014).

Com essa perspectiva histórica, não seria um devaneio acreditar que as tensões entre a política e as tradições (especificamente as religiosas) estão em uma constante sistemática de retroalimentação, sem a preponderância de nenhuma. Enquanto temos a acessão de diversos governos conservadores (Brasil, EUA, Inglaterra e etc), temos também o avanço de diversas pautas progressistas em grupos da sociedade civil.

Considerando a premissa de que ambos polos são estruturas artificiais e, portanto, nenhum prepondera sobre o outro com base na noção de naturalidade, as tensões continuaram vivas e pendendo para ambos os lados.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. A evolução da mente normativa: origens da cooperação humana. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade de Brasília, Brasília, 2011. Disponível em: < https://repositorio.unb.br/handle/10482/9867>. Acessado em: 06/10/2020.

BONOME, José Roberto. Relações entre estado e igreja na Argentina e no Brasil. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-Universidade de Brasília, Brasília, 2008. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/4950>. Acessado em: 05/10/2020.

COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. A filosofia grega. Arcos, 2020.

FREIRE, W. F. A. Religião, esfera pública e pós-secularismo: o debate Rawls-Habermas acerca do papel da religião na democracia liberal. Saberes, Natal, v. 1, n.10, nov. 2014, 104- 134. Disponível em:< http://periodicos.ufrn.br/saberes/article/viewFile/5445/4917> . Acesso em: 05/10/2020.