A afirmação da liberdade individual moderna foi bruscamente rompida com a chegada do novo Coronavírus (SARS-CoV-2) e as medidas de isolamento social como modo de frear a disseminação do vírus que já causou mais de 2 milhões de mortes no mundo inteiro. Com o avanço do novo paradigma pandêmico, surgem novas discussões sobre a contraposição entre autoridade estatal e autonomia individual, fato que se percebe na polêmica sobre a vacinação obrigatória, o uso de máscaras e até no desrespeito às medidas de isolamento.

Até onde a liberdade individual pode ser ferida pelo Estado em prol da maioria e quais os limites da própria liberdade individual? Alguns criticam a obrigatoriedade da vacina e o uso de máscaras sob a ótica do Artigo 5º, II da Constituição brasileira que afirma que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, entretanto é necessário perceber que, conforme os contratualistas, os indivíduos renunciam voluntariamente a algumas liberdades ao estabelecer o convívio social.

A dificuldade de compreensão do proposto pelos contratualistas nesse contexto talvez advenha da mudança brusca de paradigma. Kuhn, em sua obra “A natureza das revoluções científicas", afirma que "o que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual conceitual prévia o ensinou a ver" (KUHN, 1994), demonstrando assim que o período de transição entre novos paradigmas pode ser conturbado e é necessária uma desconstrução do pensamento anterior para alcançar novas visões. A filósofa Claire Marin dialoga com Kuhn ao falar sobre a ilusão de invulnerabilidade do ser humano em relação às doenças por conta do avanço da tecnologia que se tinha antes desse novo coronavírus, a qual foi totalmente rompida com o paradigma ainda bastante obscuro da pandemia e que nos trouxe formatos novos de interação social, trabalho e autocompreensão.

Ainda sobre aqueles que insistem em contrapor as decisões tomadas no mundo inteiro baseados na liberdade individual, pode-se afirmar que o próprio conceito moderno de liberdade interfere na relação Estado – povo se comparada com sociedades antigas. A liberdade vista na antiguidade, afirma Benjamin Constant, é diferente do conceito moderno da palavra. Enquanto a antiguidade entende a liberdade como uma participação direta na vida pública e política, inclusive submetendo-se à vigilância da vida privada, os modernos dão menos valor à participação política e valorizam o afastamento da vida privada da vida pública, ou seja, uma liberdade garantidora de direitos e com menor interferência estatal. Portanto, percebe-se que a visão moderna de liberdade proposta por Constant em muito tem relação com os protestos contra vacinação, uso de máscaras e isolamento social, visto que alguns grupos da sociedade atual tendem a rejeitar a imposição estatal, mesmo que visando ao bem público, pois para eles a liberdade “É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos” (CONSTANT, 1980).

Isaiah Berlin (1909-1997) formula duas acepções acerca do conceito de liberdade. Segundo ele, a não interferência, a ausência de impedimentos e de restrições à vontade do sujeito é uma liberdade negativa. Já a liberdade positiva seria um “autodomínio”, voltada para questões relacionadas ao exercício do poder (ELIAS, p. 5). Assim, enquanto a liberdade negativa é a ausência de algo, a liberdade positiva seria a presença – “da ação, da participação em tomadas de decisões, da autodeterminação” (ELIAS, p.5). Essa acepção acerca da liberdade positiva associa a liberdade à razão, de modo que o entendimento racional da vida humana leve à autonomia dos indivíduos e tem reflexos no pensamento sobre o Estado, em que garante a possibilidade de participação nas suas escolhas.

De toda forma, qualquer dessas concepções modernas acerca da liberdade não existiria sem antes ter-se concebido a ideia de indivíduo. Nesse quadro, destaca-se John Locke (1632-1704), que reforçou o conceito de individualidade, e foi um ponto essencial para o desenvolvimento da ideia de particular e coletivo.

Locke defende a construção de um estado livre. Diferente do governo com poderes absolutos descrito por Hobbes (1588-1679), segundo Locke, os indivíduos abririam mão de sua liberdade absoluta em troca de segurança prestada pelo governo, mas preservariam direitos naturais, e assim surgiria o contrato social (COSTA, p.1-2). Desse modo, diante da existência de tal contrato, o Estado passa a decidir e conduzir a sociedade norteado pelo interesse coletivo daqueles que lhe dão legitimidade.

Essa percepção de Estado como responsável pela condução e tomada de decisões assemelha-se à figura do Grande Inquisidor — capítulo do romance “Irmãos Karamazov” (1879), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) —, que acreditava que o livre arbítrio era desejado, mas em contrapartida trazia também angústia e dor aos homens, já que tinham que discernir entre o bem e o mal, sendo assim, toma para si o papel de conduzir os homens, que consentiam em trocar sua liberdade pela busca da felicidade e segurança. Interpretando isso na teoria de Berlin, seria um tipo de liberdade “pseudopositiva”, em que o líder afirma que “exprime os desejos reais”, os quais nem mesmo os indivíduos sabem quais são (ELIAS, p. 13), o que pode abrir espaço para tirania.

O fato é que, ao abrirmos mão de parcela de nossa liberdade em nome da segurança, legitimamos ao Estado o poder para fazer escolhas em nosso nome. Deve-se destacar, entretanto, que essas escolhas pautam-se no interesse coletivo e nem sempre se limitam a não interferência na esfera privada dos indivíduos.

Assim como previu Berlin, na vida em sociedade nem sempre haverá compatibilidade entre princípios e valores e, portanto, acredita que o sacrifício de um em detrimento do outro é inevitável (ELIAS, p.11). Nessas situações, Berlin considera legítimo diminuir a liberdade em prol de valores igualmente importantes (BERLIN apud ELIAS, p.16). Em contrapartida a essa teoria, Dworkin (ELIAS, p.16) como um desenvolvimento de sua concepção de liberdade, defende que deve-se buscar a coexistência de valores, como a igualdade e liberdade.

Assim como a filósofa Claire Marin fala a respeito de rupturas no contexto de pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), talvez o paradigma de liberdade dos modernos seja rompido para mostrar que não somos tão independentes e livres como pensávamos, que não é possível que se tenha a liberdade negativa plena em uma sociedade com valores plurais.

Ou simplesmente podemos chegar à conclusão de que o exercício da liberdade não deve apenas ser visto como a não interferência proposta por Berlin em seu conceito negativo, mas também como a possibilidade de discernimento entre as motivações e a possibilidade de se avaliar racionalmente as escolhas feitas pelo Estado, uma vez que, voltando à noção de governo consentido de Locke, ao povo cabe consentir ou revoltar-se contra exercício do poder quando este vai além do direito, quando deixa-se de visar ao bem comum e viola o contrato social (CUNHA, 2018).

Interpretando o contexto pandêmico e as restrições decorrentes das medidas tomadas para contenção segundo a lógica de Dworkin, devemos refletir que certas liberdades devem ser mitigadas para que o interesse coletivo e ordem social sejam mantidos, pois liberdade não seria apenas a ausência de obstáculos, mas sim, de fazer o que se deseja sem que isso impossibilite o direito de outros e respeite os valores morais da coletividade (ELIAS, p.16). Para tanto, o Estado deve realizar a ponderação dos valores no caso concreto, sem que avance sobre o núcleo essencial de um direito, não se olvidando da teoria dos “limites dos limites” (FERREIRA, 2020).

Assim, diante do cenário atual, é preciso que as pessoas entendam que, para combater esse vírus que assola o mundo, devemos abdicar parte de nossa liberdade — mais ainda do que já abdicamos em situações normais. Não é uma condição fácil ou agradável, mas necessária. Sobre isso, pode-se destacar a fala do historiador Yuval Noah Harari (2020) de que “as opções são tentarmos superar a crise por meio de controle e vigilância totalitário e centralizado, ou por meio da solidariedade social e do empoderamento dos cidadãos”. Entende-se, assim, que, mesmo que o indivíduo exerça sua autonomia e escolha não cooperar, o Estado poderá adotar uma alternativa conveniente, afinal, viver em sociedade significa que o indivíduo deve desistir dessa ilusão egoísta de liberdade absoluta.

Como ressalta Harari (2020), as tecnologias de vigilância atuais podem ser usadas por governos para "instituir regimes de vigilância total que coletam dados de todos e depois tomam decisões de maneira opaca", o que é algo preocupante, visto que, no cenário atual, os governos de vários países já monitoram os cidadãos a fim de tentar controlar a pandemia. Dessa forma, com o monitoramento dos cidadãos através, por exemplo, de seus celulares, são coletados dados de quantas pessoas continuam saindo de casa, quem está em isolamento social e os lugares e horários com maiores riscos por conta de aglomerações. Por certo, esse fator nos ajudará a combater o novo coronavírus, mas, mesmo que retomemos essa parte de nossa liberdade que nos foi tirada devido ao isolamento e às demais medidas de combate ao vírus, acabaremos consequentemente perdendo outra. As tecnologias de monitoramento poderão representar a nova ameaça à autonomia, à liberdade e à democracia. Dessa forma, é possível que, futuramente, os cidadãos tenham que lidar com um Estado bastante presente em suas vidas, mesmo que de forma oculta. Essa é uma situação perigosa que pode resultar até mesmo em um regime totalitário, por isso é importante que o Estado também respeite a autonomia de seus cidadãos.

Aceitamos as decisões do Estado como Grande Inquisidor não por angústia com a possibilidade de termos que fazer escolhas, mas sim porque ao Estado transferimos o poder para decidir. Entretanto, isso não pode significar uma disposição total de nossa liberdade, tampouco a abstenção da participação e reflexão acerca das motivações de determinadas escolhas feitas por este, de modo que esteja presente a motivação com fulcro no interesse coletivo, para que o Estado se afaste do que Berlin chamou de liberdade pseudopositiva. Não se pode acabar com a autonomia dos indivíduos ou sua liberdade, é necessário ter consciência de que é por intermédio da possibilidade de escolher entre o bem e o mal e optar pelas suas próprias escolhas que o ser humano se apresenta como sujeito.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos Modernos. Paris, 1980. In: Revista de Filosofia Política, nº 2, 1985, p. 9-25. Tradução: Loura Silveira. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2021.

COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. 2020. Disponível em: <https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/>. Acesso em: 17 mar.2021.

CUNHA, Alexandre Sanches. Locke: Legitimidade do Governo e o Direito à Rebelião. 2018. Disponível em: <https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/01/02/locke-legitimidade-governo-e-o-direito-rebeliao/>. Acesso em: 19 mar. 2021.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O Grande Inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. Disponível em: <https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/08/dostoievski-o-grande-inquisidor.pdf>. Acesso em 17 mar. 2021.

ELIAS, Maria Lígia G. Granado Rodrigues. Isaiah Berlin e o debate sobre a liberdade positiva e a liberdade negativa. Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: <https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/02/isaiah-berlin-e-debate-sobre-liberdade-positiva-e-liberdade.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2021.

FERREIRA, Eduardo Henrique. A eficácia do direito fundamental geral de liberdade durante a crise da Covid-19. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-27/ferreira-direito-fundamental-geral-liberdade-covid-19>. Acesso em: 18 mar. 2021.

HARARI,  Yuval Noah. Entrevista concedida ao programa Newshour. BBC, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52268811>. Acesso em 19 mar. 2021.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. Capítulos 8 a 12 e Posfácio.