Em vistas da evolução histórica do nosso Estado Democrático, é fácil afirmar que os conceitos e definições de soberania e povo embasaram os ideais que norteiam o Estado Moderno. Entretanto, as raízes dessas duas forças se entrelaçam de maneiras que dificultam esclarecer suas extensões, limites e identidades dentro do constitucionalismo atual.
A ideia de soberania se consolidou em meados do século XIII, quando a concentração dos poderes na figura dos Monarcas resultou no surgimento do conceito de Soberano. Esse conceito foi se fortalecendo ao longo da Idade Média conforme guerras e dissociações político-religiosas (vide o conflito entre católicos e protestantes) levavam reinos a questionar a legitimidade de seus governantes e governantes adversários, e faziam novas filosofias políticas surgirem.
Jean Bodin foi um dos que buscou desenvolver o conceito de soberania de modo sistemático. Seis livros sobre a República, datado de 1576, traz a concepção de Bodin para o que haveria de ser a autoridade real, conceituando a soberania como:
“... o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República.”
Naturalmente, outras teorias foram surgindo ao longo dos anos, trazendo novas interpretações para o conceito de soberania e sua relação entre rei e povo. Assim fez Hobbes, um dos primeiros representantes da dita “escola contratualista”, que se aprofundou na crença emergente de que a autoridade dos reis precisava ser assentada na autoridade do povo; e se afastou da ordem natural que se embasava no tradicionalismo para legitimar o poder do rei, subvertendo-a e colocando apenas a autonomia do indivíduo como tal. Tendo assim o indivíduo (povo) como renunciante de seu poder para que este fosse delegado a uma única figura, o rei.
Séculos após as publicações de Bodin e Hobbes, Jean-Jacques Rousseau conduziu a passagem da soberania estatal para uma soberania popular através de seus pensamentos impressos no “O Contrato Social”. Diferentemente de Bodin e Hobbes, que atribuíam a soberania à figura centralizada de um único governante, para Rousseau a soberania se apresentava no poder legislativo exercido diretamente pelo povo.
Com a emersão dos ideais constitucionalistas do século XVIII, tendo a noção de soberania popular absoluta de Rousseau e a caracterização dessa soberania como um poder legislativo de carácter supremo, houve uma transição da soberania popular como um poder de autogoverno para um fundamento do poder de governo. Estabelecendo uma percepção, nas palavras do professor Alexandre Costa, de:
“[...] um governo limitado, fundado em uma soberania ilimitada e estruturado por uma lei suprema. E a fonte do paradoxo está justamente em submeter o governo a duas supremacias distintas: a do povo e a da lei.”.
A exemplo disso temos a promulgação da constituição dos EUA iniciada com o icônico preâmbulo ”We the People...”, indicando seu processo constituinte como um exemplo do exercício direto da soberania popular. Apesar da Convenção da Filadélfia não ter sido convocada para este fim e em momento algum ter se investido o direito de estabelecer uma constituição; assim como, nem de longe possuía representatividade étnica e social em sua composição, em relação à sociedade americana da época.
Entretanto, conforme essa soberania se consolidava em regramentos escritos, que só se modificariam conforme um rígido sistemas de emendas, vemos o constitucionalismo constituindo uma proteção ao texto constitucional e estabelecendo limites a própria soberania do povo. Essa constituição germinou um novo sistema, assim como uma nova percepção de povo, na qual se manifestaria através desse sistema de emendas; instituindo ao povo uma autolimitação de sua soberania que só se manifestaria na forma da lei; definindo o caráter paradoxal da soberania do povo em se limitar aos ditames da supremacia da constituição e ao mesmo tempo afirmando o caráter absoluto do poder popular.
Desse modo, percebe-se que as variações do conceito de soberania estão intimamente ligadas à evolução política da sociedade e estão propensas a se alterar com o tempo. Mas mesmo com o passar dos anos, essas variações permanecem ligadas a duas ideias distintas, explicitadas por Dalmo de Abreu Dallari:
“(...) apesar do progresso verificado, a soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas: como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica”.
E assim como o conceito de soberania evolui e se molda com as mudanças sociais e políticas, também se moldam a definição de povo e sua identidade como sujeito constitucional.
Michel Rosenfeld explicita essa fluidez da identidade do sujeito constitucional em seu livro “A identidade do sujeito constitucional”. De seu estudo depreende-se que a identidade constitucional é propensa a se alterar com o tempo e que se faz necessário sua reelaboração através da análise do passado e futuro das gerações que se sujeitam a uma determinada constituição.
Além disso, entende-se que uma constituição é essencialmente incompleta, de maneira que não é possível abarcar toda a matéria constitucional relevante, até porque a necessidade de novas diretrizes normativas surgem da própria necessidade. Sendo necessário que uma constituição escrita esteja aberta à interpretação, mesmo que isso signifique aceitar uma variedade de interpretações divergentes.
Desse modo, temos as emendas à constituição que impõem um caráter evasivo e conflitivo da Constituição consigo mesma, o que nos leva ao questionamento de como essas emendas influenciam na construção da identidade institucional?!
Um exemplo disso é a já mencionada Constituição Americana, que até a Guerra da Secessão permitia a escravidão, sendo posteriormente proibida pela emenda XIV, permitindo, entretanto, a segregação racial (caso Plessy v. Ferguson), para depois se negar à possibilidade dessa mesma segregação (caso Brown v. Board of Education).
“O constitucionalismo impõe, para a formação da identidade constitucional, um confronto entre o pluralismo e a tradição, que está fundada nas identidades pré-constitucionais, tais como: religião, etnia, cultura e nacionalidade, o que se faz com uma imposição de limites às identidades pré-políticas da nação (ULRICH PREUSS, apud ROSENFELD, idem, p.21)”.
Percebe-se, desse modo, que a identidade constitucional contemporânea se fundamenta em razões de moralidade política, como: direitos fundamentais; direito de igualdade e a liberdade de expressão.
Sendo assim, a problemática da identidade do sujeito constitucional decorre da necessidade de se contrapor às identidades pré-políticas (nacionalidade, étnicas, culturais e religiosas), assim como também deve às abranger em seu espectro identitário.
Logo, fica evidente que a identidade do sujeito constitucional é algo complexo, fragmentado, parcial e incompleto (evidente na Constituição de 1787, visto que se renovou em muitos momentos), sendo um produto de um processo dinâmico sempre em aberto; e deve ser considerada mais como uma ausência, um hiato e até mesmo um vazio do que algo concreto e pré-estabelecido do qual possamos extrair legitimidade, pois isso nos possibilita sua reconstrução e complementação conforme a sociedade passa por mudanças sócio-políticas.
Referências Bibliográficas:
Costa, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.
Costa, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.
BODIN, Jean. 1992. On sovereignty: four chapters from Six Books of the Commonwealth. Cambridge: Cambridge University Press.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Saraiva, 1983. P.68.
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional, Trd. Menelick de Carvalho Netto, Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.