Na idade média a organização política, descentralizada, se construía com base nas relações de fidelidade, onde o vassalo, em troca de terras e proteção, oferecia lealdade e apoio militar em eventuais conflitos em que o suserano se envolvesse. A estabilidade se mantinha a partir de certa identificação cultural proveniente da tradição e da religião. A figura do rei não era dotada de autoridade, e era incapaz de impor sua vontade. Não era, portanto, o uso da força ou mesmo a ideia poder os agentes norteadores da organização social.

São Tomás de Aquino traz à tona o pensamento de Aristóteles. Para defender a monarquia, ele reconhece a importância da existência de um governante, que não apenas saiba o que o povo quer, já que o povo não é um bom guia de si mesmo, mas para que também exista algum ente capaz de trazer ordem e controle:

“Para Tomás de Aquino, a finalidade principal dos governos temporais é manter a harmonia interna da comunidade, essa paz que, uma vez perdida, conduz ao dissenso entre os membros e pode desembocar na guerra civil. Por isso, os governantes não devem buscar a paz porque esse é o desejo do povo, mas porque ela é um bem em si . A paz é um fim que justifica as ações do governo, mesmo quando a opinião pública majoritária favorece decisões que conduziriam à desarmonia.” (COSTA, 2020).

Neste contexto a Igreja Católica se afirma enquanto instituição autônoma e trouxe à Europa Ocidental as primeiras noções de centralização de poder da forma que conhecemos hoje. Simultaneamente ocorre o desenvolvimento das cidades e do comércio. Paradoxalmente, a solidificação do poder da Igreja trouxe o rompimento da unidade cultural, qual seja, a tradição, e se apresentou como ameaça à já frágil autonomia que os reis detinham no território europeu. A crise de unidade foi definitivamente consolidada com a Reforma Protestante e os conflitos religiosos dela decorrentes.

As guerras religiosas trouxeram teorias a respeito da legitimidade dos líderes do governo, bem como das possíveis justificativas para insurgir contra ele visto que até então questionar o monarca seria o mesmo que questionar a Deus. Não obstante, quando o chefe usa seu poder para oprimir ou para praticar injustiças contra os próprios súditos, a revolta se justifica como combate à tirania, sendo esta uma manifestação do poder contrária às leis naturais, conforme aponta o texto:

“Não se tratava de uma revolta contra a monarquia , mas de uma revolta contra a tirania caracterizada pela atuação de monarcas em desacordo com as leis naturais, a qual justificava a revolta e a resistência e poderia conduzir a uma guerra civil. [...] Uma das metáforas construídas no texto é a de que o reino deve ser entendido como um navio: o monarca é o piloto encarregado de guiar o leme e tomar as decisões, mas seu poder decorre da instituição do dono do navio, que é o povo. Por esse motivo, o povo (ou uma assembleia por ele constituída) teria o direito de expulsar um tirano ou um rei indigno e colocar um bom rei no seu lugar.” (COSTA, 2020).

Evidencia-se, portanto, uma crescente necessidade de justificar o poder político. Neste contexto, o poder político começa a ser justificado e se moldar de forma a atender aos parâmetros como hoje o conhecemos a partir de Bodin, que surge com o conceito de soberania, afirmando que ela se trata de elemento inerente em qualquer República: sempre há um poder soberano, sendo este absoluto e perpétuo. Já Thomas Hobbes trouxe a harmonia entre o li e o fa. Resgata a noção medieval de lealdade, ainda que se distanciando da noção de poder proveniente de ordem natural. Ainda, confere ao monarca poderes legislativos que lhe eram inéditos. Hobbes apresenta o contrato dos súditos com o rei, firmado para que este pudesse garantir a paz e defesa de todos, conferindo-lhe uma série de prerrogativas para este exercício.

Depois de Hobbes, a ideia de soberania na visão de John Locke passa pela propriedade, sendo esta proveniente do estado natural. O Estado se manifesta para evitar os conflitos em torno da propriedade e protegê-la, sem, contudo, nela interferir. Locke se contrapõe à soberania ilimitada hobbesiana ao trazer a necessidade de separação dos poderes de modo a limitar o poder estatal. Ainda assim, a separação não era equilibrada, visto que o legislativo se sobrepunha aos outros e se limitaria por uma lei natural, e não positiva.  

O último dos principais contratualistas, ao contrário de Locke, vê a propriedade como a origem dos conflitos e do estado de guerra. Rousseau postula um pacto em que o povo aparece como soberano, e o governo tem a função de não apenas protegê-lo, como também representá-lo. A teoria constitucional do séc. XVIII aplica a soberania popular de Rousseau no poder supremo de Locke, conforme o texto do prof. Alexandre Costa, transformando o próprio poder de autogoverno do povo em fundamento do poder de governo.

Em que pese toda a trajetória do ideal de soberania, as constantes mudanças sociais, evoluções e retrocessos, temos que o Brasil vivencia um período de profunda instabilidade e crise política. No contexto de caos, como justificar a soberania? Na linha de Rousseau, temos a Constituição Federal, que no art. 1º, parágrafo único, determina que todo poder emana do povo, poder este que é exercido de forma indireta através de representantes eleitos cuja ação, em tese, se limita pelo próprio texto constitucional.

Partindo da teoria de Bodin, na qual a soberania caracteriza-se por ser ilimitada, há um paradoxo entre as soberanias do povo e da constituição. A teoria constitucional resolve o dilema atribuindo a autoria do texto à manifestação da soberania popular através do poder constituinte. O poder do povo é absoluto e não pode de forma alguma ser abdicado, visto que se trata de um poder natural, originário: ao contrário do próprio texto Constitucional, não precisa ser justificado para ser constituído. Não obstante, seu caráter absoluto não implica que ele seja ilimitado.

Bibliografia

ARRUDA, A.A.D.M. A formação do estado moderno sob a concepção dos teóricos contratualistas. Revista do Curso de Direito do UNIFOR. v. 4 n. 1 (2013). pp. 51-57

COSTA, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa (Qu'est-ce que le Tiers État?). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997. Capítulo V.