As ideias de ordem natural e de ordem jurídica natural remetem às origens mais remotas do pensamento humano. Em diversas culturas, tais categorias se manifestaram de formas variadas, a exemplo dos pares rta-dharma, cosmos-nomos, li-fa etc. No pensamento ocidental, tais noções se originam na Grécia antiga,  de onde surge o exercício da filosofia, e são disseminadas através de perspectivas diferentes e sob justificativas diferentes.

No pensamento platônico, está presente a divisão metafísica entre o mundo das formas ideais e o mundo dos sentidos, o primeiro sendo o lar das formas eternas, imutáveis e perfeitas das quais se originariam as cópias degeneradas que encontramos no mundo dos sentidos (PLATÃO, 1997). Desta forma, é possível perceber que o conceito de ordem natural em Platão remete ao de mundo das ideias, pois é deste que emana aquela.

A ordem natural é encarada, em Platão e em muitos outros pensadores que acabam por aplicar variantes desta teoria, como esse rol de formas ideais que seriam o modelo natural ideal de tudo que encontramos no mundo dos sentidos, que dele surgiria. Em Platão, trata-se de uma proposição metafísica que termina por englobar todo tipo de ente. No entanto, as consequências ético-políticas de tal segmentação são perceptíveis quando tal ordem natural ou mundo ideal deve inspirar a concepção do que é direito, lei, justiça e muitos outros conceitos. No momento que o real está submetido a leis "naturais" metafísicas, que pairam no mundo das ideias, surgem inúmeras questões problemáticas.

Gianni Vattimo recorre a Karl Popper para diagnosticar a estrutura do pensamento platônico:

Popper considera que Platão seja um perigoso inimigo da sociedade aberta porque tem uma concepção essencialista do mundo: tudo o que é real responde a uma lei que é dada como estrutura do ser, e também a sociedade não deve fazer outra coisa senão adequar-se a essa ordem essencial. (VATTIMO, 2016).

Em Platão, essa "estrutura do ser" não está presente no mundo dos sentidos senão como mera distorção. A verdade do ser está num outro plano: no mundo das ideias. E o presente texto visa explorar o caráter de verdade e de transcendência que o conceito de ordem natural recebe na tradição ocidental, por influência do pensamento grego.

Esse raciocínio foi muito bem diagnosticado por Nietzsche, especialmente no Crepúsculo dos Ídolos (NIETZSCHE, 2006), como uma ficção que se perpetuou por todo o desenvolvimento da filosofia ocidental. A lógica da ordem natural metafísica que transcende o mundo dos sentidos é a lógica também empregada pelo cristianismo, por exemplo, que deriva sua ordem jurídica natural dos ditames transcendentes de Deus. É a divisão agostiniana entre a cidade de Deus e a cidade do mundo (AGOSTINHO, 1996) como herança platônica.

Ao postular a contingência dos valores morais, na esteira do ceticismo, Hume tenta restringir o conceito de ordem natural apenas ao mundo físico (COSTA, 2020). Ao afirmar a impossibilidade de conhecermos o Bem em si, a Justiça em si ou quaisquer outros valores morais em si, Hume parece excluir o fator transcendência da equação da ordem natural, pois apenas o que está presente no mundo dos sentidos é passível de conhecimento.

Tal lógica é remodelada por Kant numa tentativa de resistir às consequências do empirismo de Hume. O filósofo alemão, estimulado por Hume, desenvolve a hipótese de que o ser humano está limitado pelas categorias do conhecimento que são condição de possibilidade da atuação dos sentidos (KANT, 2001), estabelecendo a crítica transcendental e trazendo a centralidade da filosofia para a epistemologia e para o próprio sujeito. A partir de Kant, a tradicional mirada da filosofia para os entes do mundo dá um giro de 180º em direção à racionalidade e aos limites do próprio conhecimento humano.

No entanto, ao fazer a passagem para o plano dos valores morais, Kant (2001) aparenta dar alguns passos atrás, no sentido de reestabelecer o velho desprezo platônico pelo mundo dos sentidos, ou pelo mundo real, que parecia estar em declínio desde Hume, ou pelo menos uma variante dele. Kant (2001), ao estabelecer a razão pura como a única verdade possível e como morada da ordem natural, atribui a ela um caráter universal, como  forma de derivar daí também uma ordem moral natural, da qual se derivaria uma ordem jurídica e uma ética naturais.

Dessa forma, Kant (2001) opera um processo de "purificação" do pensamento de forma a excluir dele tudo o que remeta ao mundo empírico, às paixões, aos sentidos, aos impulsos etc. Ao mesmo tempo em que tenta universalizar essa razão estéril para daí retirar uma moral. É, em alguma medida, mais uma artimanha para dividir o mundo entre "aparente" e "verdadeiro", buscando mais uma forma de transcender o mundo da vida, desprezando tudo que o integra como meramente empírico e, portanto, apenas aparente.

Cindir  o  mundo em  um  "verdadeiro"  e  um "aparente",  seja  do  modo  cristão, seja do modo kantiano (um cristão pérfido no fim das contas) é apenas uma sugestão da décadence: um sintoma de vida que decai... (NIETZSCHE, 2006).

Esta cisão, este desprezo pela vida, esta pretensa universalidade e racionalidade pura, tão trabalhados ao longo da tradição filosófica ocidental (e não somente), são postos em questão a partir do século XIX, através de alteações no contexto histórico-social global e, teoricamente, do que Vattimo vem a chamar de "escolas da suspeita", referindo-se a Marx, Freud e Nietzsche:

[...] a afirmação do pluralismo cultural que, também em consequência das relações políticas alteradas entre Ocidente e outros mundos culturais, que passaram do estado de colônia ao de nações independentes, fez emergir a parcialidade daquilo que por muitos séculos a filosofia europeia considerou a essência da humanitas; tem a ver ainda com a crítica da ideologia de fundo marxista; com a descoberta do inconsciente por parte de Freud; com a desmitização radical a que Nietzsche submeteu a moral e a metafísica tradicionais, inclusive o próprio ideal de verdade... (VATTIMO, 2016).

Nesse sentido, a noção de uma ordem natural transcendente de onde se possa derivar um direito é algo que deixa de fazer sentido, na medida em que todas as localidades transcendentes de onde se poderia importar essa ordem natural são desacreditadas ao longo desse período de ferrenha crítica à metafísica. Diante de todo esse contexto teórico legado por tais "escolas", surge no Direito o positivismo kelseniano, teoria através da qual o Direito se aproxima da realidade histórica, política e social, afastando-se da metafísica, da ordem natural, das formas eternas e da transcendência.

Kelsen (1998), em sua Teoria Pura do Direito, opera uma separação entre o ser e o dever-ser, de forma a tentar purificar o Direito de qualquer ligação ontológica para com valores morais. A norma representa uma moldura que comporta inúmeras interpretações, e a escolha de qual é a interpretação correta é sempre política, e não remete à ciência do Direito. Dessa forma, a ciência do Direito, purificada, perde qualquer conexão com a "ordem natural" e encara o seu caráter de linguagem formal da política, moldura onde as conjunturas histórico-político-sociais são pintadas. A própria separação entre Moral e Direito já implica a possibilidade constante de crítica, revisão e contestação do Direito positivado, coisa que não é possível num sistema que atribui moralidade ao Direito, tornando qualquer crítica ao Direito positivado imediatamente imoral.

É só a partir de Kelsen que a teoria do Direito começa a se perceber sujeita a forças contingentes, históricas e culturais, e não oriunda de uma ordem jurídica natural, divina, eterna ou universal. O Direito enquanto campo de expressão da política. As normas jurídicas como forma de consolidação de um zeitgeistpolítico. É a partir daí que o Direito se livra do platonismo, que nas palavras de Rorty "é uma tentativa de libertar-se da sociedade, do nómos, da convenção e dirigir-se para a physis, a natureza. (RORTY, 2000)

Portanto, a partir de tais desdobramentos teóricos, o mundo contemporâneo pode lidar muito bem com a inexistência de uma ordem jurídica natural, no momento em que se entende que o conteúdo das normas é fruto do aqui e agora, e não de nenhuma transcendência:

"Os seres humanos realmente têm esses direitos?" Tais questões pressupõem que o progresso moral é, pelo menos em parte, uma questão de aumentar nosso conhecimento moral, um conhecimento sobre algo independente de nossas práticas sociais, tais como a vontade de Deus ou a natureza da humanidade. (RORTY, 2000).

Os direitos são conquistados e positivados através de embates políticos, conjunturas históricas, necessidades econômicas e muitos outros fatores pelos quais não atravessa uma ordem jurídica natural. No mundo contemporâneo, nosso esforço enquanto sociedade é trabalhar esses mecanismos de disputa, de diálogo, essas convenções e a democracia, no intuito de aprimorar os mecanismos decisórios que criam direitos e os que julgam direitos através do recurso aos discursos em conflito na comunidade e como eles afetam a vida das pessoas, e não a nenhum tipo de ordem natural.

Referências Bibliográficas:

AGOSTINHO, Bispo De Hipona. A cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

COSTA, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural. Arcos, 2020.

KANT,  Immanuel. Crítica  da  Razão  Pura. 5ª Edição. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1997

RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.