O Filósofo e Jurista austríaco, Hans Kelsen, em sua obra “A Teoria Pura do Direito”, um dos marcos da teoria Positivista do Direito, escrita no Século XX, tenta responder à difícil questão: “o que é o Direito?”. Para isso, com base no seu entendimento, puramente positivista, de que o direito é uma ordem normativa, um sistema de normas que regulam a conduta dos homens (KELSEN, 1998), Kelsen propõe o conceito de uma “Norma Fundamental”, que seria aquela que daria condição de validade a todo o ordenamento jurídico positivo. Vejamos:
“Com efeito, o Direito positivo somente pode ser justificado - como já notamos - através de uma norma ou ordem normativa à qual o Direito positivo – segundo o seu conteúdo - tanto pode conformar-se como não se conformar, assim podendo, portanto, ser justo ou injusto. A norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta, porém, a validade de qualquer ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem coerciva globalmente eficaz estabelecida por atos humanos. De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positivista, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como não conforme à sua norma fundamental, e, portanto, como não válida. O conteúdo de uma ordem jurídica positiva é completamente independente da sua norma fundamental. Na verdade - tem de acentuar-se bem - da norma fundamental apenas pode ser derivada a validade e não o conteúdo da ordem jurídica. Toda ordem coerciva globalmente eficaz pode ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A nenhuma ordem jurídica positiva pode recusar-se a validade por causa do conteúdo das suas normas. E este um elemento essencial do positivismo jurídico.” (KELSEN, p. 163, 1998).
Ocorre que Kelsen, na tentativa de caracterizar o Direito da forma mais pragmática possível, isto é, o voltando totalmente para o ponto de vista positivista, onde este se reduz apenas ao conjunto de normas, adentra em um conceito obscuro de Norma Fundamental que acaba por contradizer seu próprio argumento. Isto porque, está norma que fundamenta o direito está no topo da sua pirâmide normativa, dando legitimação e pressupostos para todo o restante do ordenamento jurídico.
Entretanto, ao recorrer à essa ideia abstrata de Norma Fundamental, Kelsen acaba por adentrar na seara extranormativa do pensamento jurídico, o que torna seus argumentos incoerentes, uma vez que o pensamento positivista não pode ser pautado em elementos metajurídicos na elaboração do ordenamento jurídico e para a sistematização da hierarquia das normas[1]. Dessa forma, sua teoria acaba por se aproximar do pensamento jusnaturalista.
Segundo os ensinamentos de Viviane de Andrade Freitas “Tal semelhança consiste no fato de Kelsen afirmar que o ordenamento jurídico deve ser fundamentado numa norma pressuposta que confere legitimação ao Direito, enquanto que o Jusnaturalismo concebe o Direito Natural como um conjunto de princípios provenientes da natureza a partir dos quais o legislador deve desenvolver a ordem jurídica. Ambos fundamentam o Direito em elementos abstratos, que não podem cair na esteira dos sentidos humanos por não serem empíricos”. (FREITAS, 2016).
Dessa forma, como bem pontuou Paul Silbert, em sua obra “Trialetic Theory of Morals”:
“Kelsen, no fundo, era um jusnaturalista. Sua tentativa de fornecer uma fundamentação objetiva para o direito, na linha neokantiana, mostra que ele reconhecia o caráter linguístico do direito, mas buscava os pressupostos transcendentais que forneceriam as bases para um conhecimento jurídico puro. Na medida em que a norma fundamental de Kelsen ultrapassa o direito positivo, não se mostra adequado chamá-lo de positivista, visto que ele advogava a existência de uma norma natural para justificar o ordenamento positivo, um salto que é típico das teorias jusnaturalistas."
Nesse mesmo sentido, Taraw afirma em sua obra, Le problème de la validité meta-normative des normes:
"Kelsen opera uma formalização lógica do pensamento jurídico que é focada apenas em mostrar qual seria a possibilidade de um discurso jurídico logicamente consistente. Seu foco de estudo são os discursos sobre o direito, e o que ele descobre é a estrutura formal de um discurso deôntico consistente. No fundo, seu trabalho é de lógica jurídica: uma abordagem formal que mostra a estrutura abstrata de afirmações sobre direitos e deveres, para indicar quais são as categorias necessárias desse tipo de abordagem. Embora Kelsen não proponha uma justificação jusnaturalista dos direitos positivos"
Conclui-se, então, que Kelsen, através de uma tentativa positivista de racionalização e normatização do direito, formula uma justificativa jusnaturalista para a questão. Sua busca incessante pela positivação do direito o leva, paradoxalmente, a uma solução jusnaturalista, mesmo que esse não fosse seu objetivo, como observado por Taraw e Silbert em suas respectivas obras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREITAS, Viviane de Andrade. Aspectos fundamentais da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4724, 7 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49444. Acesso em: 10 nov. 2020
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed.
SILBERT, Paul. Trialetic theory of morals. Ontario: Highlander, 1986.
Taraw, Siul A. Le problème de la validité meta-normative des normes. Bordeaux: Argent, 1998.
[1]FREITAS, Viviane de Andrade. Aspectos fundamentais da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4724, 7 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49444. Acesso em: 10 nov. 2020.