Autores: Ana Carolina Callai da Silva, Carlos Henrique da Silva Figueredo, Daniel Oliveira Simões, Diego Rodrigues de Morais, Emerson Fonseca Fraga, Rossana Jose da Silva e Tatianne Pereira da Silva.

Ceci n’est pas une pipe”. Foi com essa frase, atrelada à imagem de um cachimbo que René Magritte, pintor surrealista, insurgiu-se contra a ordem das coisas ao provocar uma reflexão, dessa vez, moldada não somente pela figura em si –  como ele mesmo e outros artistas surrealistas já estavam habituados a fazer –, mas em uma proposta de diálogo (no sentido mais sólido do termo) entre os diferentes tipos de linguagem. Nessa perspectiva específica, entre a língua escrita e a imagem.

A tela intitulada “La trahison des images”, datada de 1929, subverte ao questionar a natureza, a visão pré-concebida do mundo, dos termos e das ideias. Palavra e imagem se associam, ao mesmo tempo em que se dissociam no subconsciente, provocando uma preambular mistura de dubiedade e de estranhamento, até se assentarem naquilo que individualmente são: seja forma (palavra) ou símbolo (imagem).

Em uma espécie de filosofia das artes, as realidades imagética e textual se entrelaçam para compor a obra. Como, dentro desse painel, é possível aceitar uma sentença negativa que contradiz, em tom imperativo,  a imagem representativa de um cachimbo, quando o que se tem, o que se vê, o que se constrói com sombra, cor e luz forma o exato objeto? Quem predomina? Seria a língua ou forma? A frase ou a imagem? Há preponderância de um em relação ao outro?

Como a pintura e a língua são formas de expressão abertas, a primazia é, sobretudo, da interpretação. Expostos a tal contexto artístico,  cada indivíduo, alicerçado por um arcabouço de fatores e conhecimentos sociais proporcionará para si a melhor experiência ao fazer a “leitura” do quadro. Por mais similares que possam ser, cada visão terá nuances próprias que resultarão em sentidos particulares.

Partindo da premissa de que esse é um estudo que tem como fulcro o direito, qual seria a relação entre o quadro de Magritte e a norma jurídica objeto de estudo de Hans Kelsen? A resposta é retilínea: ambos apresentaram a linguagem como paradigma. Aliás, não apenas isso. Os dois propuseram uma ruptura com a forma em que a arte e o direito estavam sendo conduzidos, ou “lidos”, até então. Se, por um lado, no campo das artes, Magritte rompe com a leitura unívoca restrita à imagem; por outro, no âmbito do direito, Kelsen irrompe com a visão mecanicista de aplicação da lei.

Essa mudança acompanhou o giro linguístico (movimento filosófico) que resultou na condução da linguagem como centro dos estudos desenvolvidos pelas mais diferentes ciências, tendo alcançado também o direito. Como COSTA (2020) afirma, “todo conhecimento humano é uma explicação linguística e, portanto, os limites do nosso conhecimento são os limites da nossa linguagem” . Nessa seara, tanto Magritte como Kelsen eclodem com os padrões de sua área e de seu tempo ao apresentarem novas formas de pensar, respectivamente, a arte e o direito, reconhecendo a linguagem como o instrumento mais hábil a transgredir com os parâmetros até então estabelecidos.

Nesse ponto, é necessário trazer à baila os estudos realizados por Ferdinand Saussure. Considerado o pai da linguística moderna, é dele a distinção de signo, significante e significado. Além de “langue” e “parole”, como vivências individuais e coletivas dentro da sociedade. Em breve e reducionista alusão às concepções trazidas pelo autor, teríamos a imagem acústica como o (significante) e o conceito (significado). Aquele é a forma, este outro, o conteúdo. A junção de ambos é o signo.

Elucidando, utilizemo-nos da palavra árvore/tree/arbre/árbol, apresentadas nos idiomas português, inglês, francês e espanhol. A combinação de signos (em qualquer das línguas) remete o falante a uma imagem mental do que vem a ser esse conjunto de sons que ouve. Essa imagem da palavra formada em seu cérebro é o que Saussure convencionou chamar de significante. Por outro lado, cada indivíduo vai pensar nesse conjunto de sons que em sua própria língua forma a palavra “árvore” de acordo com sua singular experiência, conforme o que cada um compreende como “árvore”. Cada pessoa irá conceber para si o conteúdo de acordo com as árvores que, de alguma forma conhece. Tem-se, aí, pois o significado. Dentro desse mesmo espectro, assim poderíamos representar:

http://signo-significado-e-significante.html

É essa tríade, signo, significante e significado, que compõe a experiência linguística de determinado povo. É por meio de tais relações que a comunicação é estabelecida. O discurso (que também alcança os conceitos de langue e parole, nos ditames saussurianos) é produzido por meio de uma construção alicerçada nesses três níveis de combinações.

Seguindo esse raciocínio, é possível admitir que o pressuposto conceitual de norma apresentando por Kelsen em sua obra “Teoria Pura do Direito” compreende a tríade proposta pela Linguística de Saussure. Nessa seara, Kelsen identifica norma como o significado do texto. Segundo ele,

O fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui um ato jurídico (lícito ou ilícito), processando-se no espaço e no tempo, é, por isso mesmo, um evento sensorialmente perceptível, uma parcela da natureza, determinada, como tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento do sistema da natureza, não constitui objeto de um conhecimento especificamente jurídico - não é, pura e simplesmente, algo jurídico. O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui.

O que se percebe, transferindo-se a dicotomia proposta por Saussure para o conceito de norma exteriorizado por Kelsen, é que temos a norma como o significado do texto. Tal norma não se firma de forma individualizada, como um signo a ser vocalizado. É, sobretudo, uma expressão a ser reconstruída pelo jurista. A esse cabe exteriorizar o sentido, o significado do texto legal. Conforme assevera o filósofo Paul Silbert, “o conceito de norma em Kelsen é bastante preciso: trata-se do sentido objetivo de um ato de vontade”. Harmoniza-se, portanto, o signo normativo com o significado, gerado esse último pela interpretação que o jurista dá ao dispositivo. Há, pois um vínculo direto entre norma como  significante e significado, sendo esse moldado pelas variações conceituais e interpretativas dos operadores do direito, dentro dos mais variados cenários. De forma que, para Kelsen,  a norma não se constitui como um fim em si mesmo, não se exterioriza por meio de um sentido inerente e imutável. Pelo contrário, desvela-se pelo viés interpretativo que materializa sua acepção jurídica consoante o manejo intelectual do jurisconsulto.

Nessa toada, percebe-se que  há um alinhamento entre os conceitos firmados por Kelsen e por Saussure. Importa salientar que, diante dessa conexão de pensamentos em torno da linguagem, mostra-se inoportuna, conforme preconiza SILBERT (1986), a apresentação do jurista “como um defensor da aplicação literal das leis, como estandarte de um legalismo que era muito distante da sua perspectiva”. Constata-se que Kelsen foi, em realidade, um precursor da aplicabilidade interpretativa para as normas do direito.

Referências bibliográficas

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CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020. Em: http://www.arcos.org.br/artigos/curso-de-filosofia-do-direito/iii-etica-e-direito-filosofia-moderna/10-o-giro-linguistico. Consulta em 13/04/2021.

CUNHA, Raquel Basílio. A relação significante e significado em Saussure. ReVEL. Edição especial n. 2, 2008. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 12/15).

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad de A. Chelini , José P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix; USP, 1969.

SILBERT, Paul. Trialetic theory of morals. Ontario: Highlander, 1986.

https:laart.art.br/arte-surrealista. Consulta em 13/04/2021.