De início, torna-se necessário compreender, brevemente, as acepções acerca do que seria “sociedade”, “governantes” e “governados”, haja vista que são conceitos imprescindíveis para responder o seguinte questionamento: “É natural que nas sociedades humanas exista uma distinção entre governantes e governados?”.

Flannery e Marcus, bem como Acemoglu e Robinson concordam que a origem dos governos depende muito mais da organização interna das próprias sociedades do que de sua demografia ou da interferência da sua carga genética. Segundo eles, não haveria nada de natural na sedimentação da sociedade em pessoas superiores ou inferiores, muito menos na distinção entre governantes por natureza e governados por natureza. (COSTA, 2020b). Assim, de pronto, é notório que não é natural a distinção entre governantes e governados, todavia, é proeminente mencionar que ambos os seguimentos possuem sua devida importância para a manutenção de uma sociedade organizada e coesa, conforme se demostrará a seguir.

Nesse sentido, sem adentrar no mérito das definições, entende-se como “sociedade” uma agrupação de seres-vivos sociáveis. No caso do homo-sapiens, sempre prevaleceu a existência de leis humanas em relação a esse grupo, ou seja, tratam-se de nações, onde as leis jurídicas, isto é, os registros, se sobrepõem às leis naturais que não são do homem, mas às quais ele é subordinado como mero ser vivo, assim como os demais. (MALINOWSKI, 1926).

Nessa seara, utilizando-se como exemplo uma colmeia de abelhas, percebe-se que a maioria das espécies vive em grupos que formam suas respectivas sociedades, cuja finalidade biológica é garantir a existência de cada um de seus indivíduos. Logo, pode-se dizer que atualmente as sociedades humanas são as nações, cujas células, na realidade, são as cidades, onde de fato vivem as famílias, pouco interessando as formas como se apresentam, de modo que uma pessoa, por mais isolada que se mostre, sempre fará parte de alguma família, seja ela consanguínea ou não, e o grande conjunto de famílias formam as cidades. Por conseguinte, a nação é tipicamente humana e os indivíduos da “mesma espécie” têm conotação mais espiritual do que material, tendo em vista que, por exemplo, nada diferencia o francês do angolano, exceto a cor e/ou o sentimento de nacionalidade de ambos, que é algo espiritual. (BATISTA, 2015).

Dessa forma, é possível dizer que as “leis dos homens” surgiram com o homem primitivo, denominado “agrícola”, bem como com o surgimento das religiões, uma vez que anteriormente apenas existiam as leis da natureza. Logo, nessa análise, a sociedade considerada humana teria início histórico em Adão e Eva, surgidos por volta de 10 mil anos atrás. (BATISTA, 2015). Em decorrência disso, até então, a humanidade se portou como qualquer outra espécie, cuja lei é viver e procriar, sendo que isso acontecia vivendo em grupos ou tribos, que de forma comunitária se transformou aos poucos em “sociedades”. Todavia, a sociedade humana como nação surgiu na Idade Média por volta do século XIV, de maneira que a forma de “agregação” evoluiu com as próprias espécies, entretanto, somente o ser humano dispõe desse tipo de organização social baseada em regras, direitos, preceitos morais, isto é, apenas o ser humano seria capaz de raciocinar normativamente. (ALMEIDA, 2011).

Assim, algo típico das sociedades, que pode ser constatado a partir de estudos, é a existência de algum tipo de liderança. Por exemplo, em uma floresta há árvores de uma mesma espécie em vários estágios de desenvolvimento, mas nenhuma forma de liderança pode ser observada entre elas, assim como é pouco presumível que ocorra isso entre os vírus e bactérias. Com isso, é congruente mencionar que a presença de liderança demonstra a evolução da própria vida na Terra em outras espécies, especialmente entre os seres humanos. A sociedade apresenta, então, a questão comportamental e também o sistema de liderança. À vista disso, a necessidade de liderança decorre do fator de “mobilidade”, que não se observa nas plantas, por exemplo. (BATISTA, 2015). Até porque, as “sociedades” almejavam que a cultura e as normas sociais estabelecidas mediante os pactos prevenissem o caos que pode surgir do convívio natural entre indivíduos distintos, que, por vezes, possuem vontades diferentes. (COUTINHO, 1999).

Desse modo, a liderança seria como a existência do “cérebro da sociedade” nas espécies tidas como mais desenvolvidas. Nessa lógica, observa-se que os organismos, compostos de outras tessituras traduzem a ideia de que sociedade é, de fato, um organismo composto de vários outros, e, se for possível atribuir a mesma uma inteligência, é pertinente o entendimento clássico que a considera como um organismo vivo. (MALINOWSKI, 1926).

Ante o exposto, em se tratando especificamente da compreensão política de hoje, observa-se que a sociedade civil faz parte da dicotomia sociedade/Estado. Logo, para se delimitar o significado de sociedade civil, deve-se fazer o mesmo em relação ao Estado; em outras palavras, com a noção restritiva do Estado como órgão de poder coativo, concorrem as ideias que deram origem ao mundo burguês: a indicação de que os direitos individuais são autônomos do Estado, posto que o homem seria naturalmente bom e não careceria do poder coativo do Estado para perceber o desenvolvimento das coisas. (BOBBIO, 2007).

Por outro lado, nas teorias sistêmicas da sociedade global, a sociedade civil habita o espaço destinado às demandas conduzidas ao sistema político, que possui a obrigação de replicá-las. Nessa conformidade, quanto mais as demandas sociais não são respondidas pelas instituições responsáveis, mais essa sociedade será ingovernável. (BOBBIO, 2007).

As instituições representam, assim, o poder legitimo, isto é, o poder cujas decisões são aceitas e cumpridas. Dessa maneira, quando ocorre uma crise governamental, a manutenção do sistema político deve ser auferida na sociedade civil, setor esse em que podem ser identificadas novas fontes de legitimação. (BOBBIO, 2007).

Em conformidade com o pensamento de Barbosa (2004), na sociedade civil inclui-se também o fenômeno da opinião pública, entendida como a pública expressão de consenso e dissenso com respeito às instituições sem opinião pública, de forma que a sociedade civil está destinada a desaparecer sem essa exteriorização do ponto de vista dos “governados”. Esse fator pode ser ratificado, por exemplo, em um Estado totalitário, onde não há espaço para opinião pública, mas tão somente para a opinião do Estado.

Em face do exposto, a “sociedade, o governo/estado e governados” são complementares, posto que para um bom funcionamento das estruturas públicas e das estruturas privadas, é imprescindível que essas três conformações estejam bem organizadas entre si.

Diante dos fatores já delineados, é importante destacar o queria seria considerado “natural” nas sociedades humanas. Antecedente à própria filosofia do direito, a ordem natural pode ser compreendida como componente simbólico, que transmuta de significado em cada meio social. Na história romana, por exemplo, a lei foi altamente inspirada na ordem natural dos gregos, a qual estabelecia diretrizes que definiam os papéis de cada cidadão. Assim sendo, como panorama da filosofia do direito, a ordem natural influiu não somente no pensamento grego, como se fez presente em todo o renascimento e em todas as percepções da modernidade, perpassando pelo iluminismo, pelo liberalismo e pelo constitucionalismo. (COSTA, 2020a).

De acordo com Cardoso (2002), a existência de leis naturais universalmente aceitas, intrínsecas à natureza humana, bem como a crença em uma ordem natural autorreguladora, instintiva e harmoniosa são componentes cruciais para a justificação da própria ordem econômica do mercado.

Vale salientar que a moral, a religião e o direito exercem função crucial na manutenção da ordem natural elucubrada, pois esses elementos orientam as próprias aspirações humanas (COSTA, 2020a). Nessa lógica, a ordem natural permite “distinguir o normal do patológico, o saudável do enfermo, o louco do sensato, o motor que funciona bem do motor que funciona mal, o bom pai do mau pai, a lei justa da lei injusta” (SACHERI, 2014, p. 46).

Sob outro viés, pode-se ilustrar o caso das comunidades morais, que, diferentemente da conjuntura civilizatória pós-moderna, reconhecem o “natural” como o compartilhamento de características pessoais que tornam o indivíduo emocionalmente ligado ao grupo no qual se insere. Nessa perspectiva, ressalta-se que as línguas, as bandeiras e as indumentárias são alguns dos sinalizadores empregados na identificação de quem pertence ou não a dada comunidade. A psicologia moral, inclusive, já evidenciou que esses marcadores são utilizados para decidir, por exemplo, quem merece consideração moral, quem merece confiança e até mesmo quem deve ser receado como oponente. (ALMEIDA, 2011, p. 103).

À vista disso, convém elucidar as investigações do antropólogo Pierre Clastres, que, a partir de sua experiência na observação dos povos indígenas brasileiros, demonstrou a inovadora tese de que as sociedades arcaicas não eram conformações inaptas a criar Estados (que expressam a institucionalização da diferença entre governantes e governados), pois, na verdade, tais sociedades possuíam meios especificamente projetados para o impedimento da concentração de poder, que era entendido como subversivo ao próprio equilíbrio dos grupos arcaicos, já que eles são abalizadas em um igualitarismo incompatível com a existência de um governo. Em outros termos, dentro dessas comunidades podem existir papéis de liderança, devido ao prestígio a certos indivíduos, mas essa liderança não se enleia com a concepção de governante com poderes de chefia estatal. (COSTA, 2020c).

Na sociedade primitiva, vale frisar que o trabalho refere-se a uma esfera autônoma e definida, ou seja, a partir do momento que ele se torna alienado, sendo estatuído e gerenciado por aqueles que vão se beneficiar dos frutos desse labor, verifica-se que a sociedade deixa de ser primitiva. Nesses moldes, quando uma sociedade passa a ser dividida entre dominantes e dominados ou entre senhores e súditos, instaura-se o movimento da civilização ocidental, cujo imperativo é o desenvolvimento socioeconômico sob a sombra protetora do Estado. (COSTA, 2020c).

Nesse sentido, a figura do “selvagem” encaixa-se nesse contexto como o ser que possui uma impetuosa reverência pela tradição e pelo costume, já que se submete automaticamente às ordens do meio em que vive. Assim, ele as respeita de forma “involuntária”, “servil” e “naturalmente”, sendo associado a uma “inércia mental”, que é refletida por conta do “penetrante sentimento de grupo”, pelo temor da opinião pública, ou mesmo pelo temor de um possível castigo sobrenatural. (MALINOWSKI, 2003, p. 15).

Desse modo, Costa (2020c) assente que as sociedades primitivas não comportam a ideia de um Estado, pois ele seria impraticável. Os denominados “selvagens” procuram preservar a ordem social primitiva, e, por isso, obstam a unificação do poder e a formação de um possível poder político central, individual e separado. De acordo com Clastres (2003, p. 151), o senso comum, por outro lado, possui dificuldade para categorizar até mesmo as sociedades indígenas brasileiras, pois elas, por definição, também não comportam a ideia de um Estado.

Como preconiza Nilsson (2008, p.26), a pouca instrução sobre a diversidade cultural das sociedades ameríndias no Brasil e sobre a multiplicidade de momentos históricos experimentados, incitam a sociedade civil e a imprensa a formarem certos preconceitos na rotulação dessas populações, sendo muitas vezes calcados a partir de interesses políticos e econômicos. Sendo assim, se um grupo possui membros qualificados, como é o caso da forte estruturação indígena existente no leste de Roraima, em Lavrados, que conta entre seus membros com advogados indígenas, ocorre, inevitavelmente, uma tentativa de desqualificação de sua história nativa.

A etnia Yanomami, em contrapartida, é compreendida como “primitiva” no discurso local, o que torna complicada a interpretação de seu atual momento histórico de organização política, já que se consolidou uma associação representativa bastante engajada, a chamada Hutukara Associação Yanomami (HAY). Destaca-se que existe uma heterogeneidade interna relevante, pois há variadas formas linguísticas e culturais, apesar de notória similitude entre seus vários grupos. A organização política, nesse meio, sempre favoreceu a comunidade, como é o caso do coletivo grupo de famílias, que se unem ou se fracionam em decorrência dos consensos granjeados. (NILSSON, 2008, p. 26-27). Esse aspecto transparece a relevância da complacência no meio social indígena (KELLY, 2005).

Notabiliza-se que os Yanomami representam um dos mais expressivos povos indígenas relativamente isolados da América do Sul, vivem há muitos anos nas montanhas e florestas do norte do Brasil e sul da Venezuela, mas permanecem em constante embate contra a apropriação econômica indevida das riquezas e recursos naturais de seu território, sendo fiéis defensores dos valores ambientais, o que se comprova no modo como vivem e como utilizam a floresta. (NILSSON, 2008, p. 41).

Os Yanomami enfrentam a ameaça da destruição de sua terra por conta da forte presença de garimpeiros ilegais, lutam pelo anteparo de sua terra e combatem ainda o genocídio na região. Dessa maneira, averígua-se que a organização política de sociedades sem estado é indispensável devido às ameaças infligidas por membros da sociedade nacional e tem como respaldo os direitos resguardados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (NILSSON, 2008, p.40).

Observa-se, paralelamente, que a pós-modernidade reflete o mundo globalizado que, embora tenha empreendido significativo desenvolvimento social, com amplo avanço tecnológico, fluxos de capitais e aumento da qualidade de vida, ainda subsiste com intensa desigualdade social e inseguranças coletivas, por exemplo. (SOARES; CRUZ, 2013, p. 30). Além disso, em consonância com Lyotard (1998), para os governantes dos Estados a vida se resume ao incessante aumento do poder, em que a legitimação em termos de verdade científica e de justiça social seria baseada na ideia de potencialização das performances do sistema de funcionamento estatal.

Portanto, como já demonstrado, a existência de governantes e governados não se mostra como natural do ser humano e, tampouco, trata-se de consequência imanente à densidade demográfica ou à elevação da produção, mas se mostra como um ajustamento que fundamenta a formação de sociedades mais habilitadas a dispor dos recursos disponíveis em seu meio social para o progresso econômico e até mesmo para o poder bélico. (COSTA, 2020b).

Nesse diapasão, na realidade brasileira, é evidente que a centralização do poder decisório repercute na distinção entre governantes e governados e, partindo da premissa de que nas sociedades humanas não haja essa distinção de forma natural, percebe-se que seria pertinente a disposição organizada dos recursos disponíveis e uma efetiva proteção legal das populações menos hegemônicas.

Analogamente, constata-se que a conjectura contemporânea brasileira, que propiciou uma adaptação social mais célere e também mais efetiva das variadas formas culturais existentes, deve salvaguardar o papel contramajoritário dos direitos fundamentais dos cidadãos. Compreende-se, por fim, que a verdadeira consecução da ordem, da justiça e do direito pode também ser obtida se os recursos disponíveis no território forem utilizados de maneira mais assertiva, pois isso conduziria, por sua vez, a um desenvolvimento mais satisfatório e equilibrado do próprio Estado e da relação entre governantes e governados.

Referências bibliográficas:

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