Autor: Paulo Alves de Santana Neto
Por volta do século IV a.C. até a primeira metade do século I a.C., indivíduos mais conhecidos como platônicos, desenvolviam ideias que perduram até os dias de hoje na história da humanidade e exercem bastante influência nos mais diversos comportamentos. Eles acreditavam que o mundo possuía uma ordem e que os seres que aqui habitam devem cumprir sua função na natureza. Também defendiam que essa ordem era estabelecida por uma razão superior e que cada indivíduo possui uma essência e um papel a ser desempenhado. A filosofia kantiana, também defendia o cumprimento da essência natural do ser, divergindo dos gregos em relação a crença no transcendental.
Essa crença na ordem natural e nos valores universais resiste ao tempo e é incorporada nas mais diversas formas de pensamento, como a religião. Com a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, há uma grande ruptura na estrutura de pensamento, pois, valores baseados estritamente na tradição e na crença da ordem das coisas, passam a ser questionadas à luz da ciência. Se para o pensamento religioso os valores universais, presentes nos textos sagrados, fazem parte da natureza, para o pensamento científico o mundo é o que é, e seus segredos devem ser desvendados através da experimentação, da sistematização, do método científico e do pensamento crítico. Passa a existir então uma guerra de narrativas entre a ciência e a religião, a inovação e a tradição. A explicação do Universo deixa de ser exclusividade dos grupos religiosos. E a linguagem como instrumento que nos permite enxergar o mundo, sendo, portanto, uma ferramenta de poder, incorpora novas formas de compreensão o mundo.
Essa disputa entre religião e ciência, ordem natural e impermanência, não ficou no passado, pelo contrário, está bastante viva na realidade do século XXI. A ideia platônica da crença em valores universais, no sobrenatural, na força das ideias e na ordem natural possui adeptos também no Brasil. Tal ideia aliada à grande força das redes sociais e ao cenário de crise, fortalece narrativas que buscam resgatar uma ordem anteriormente vivida, embora não se saiba dizer se um dia essa ordem já foi alcançada.
No cenário atual brasileiro, marcado por profunda crise política e econômica, a difusão de ideias que prometem tirar o país da lama e colocá-lo no prumo é feita através de discursos que romantizam o passado. Construções de tal monta são fáceis de serem propagadas, afinal, qual “cidadão de bem” não gostaria de experimentar um pedaço do céu na terra? A pergunta que se faz é: A quem esse passado autoritário e escravocrata beneficiava?
Diante desse quadro, apelar para uma pauta em defesa de valores morais é uma grande pedida para o restabelecimento da ordem outrora perdida. Para isso é necessário encontrar os culpados da balbúrdia, e estes são: o gayzismo, a “ideologia de gênero”, o aumento da violência, as drogas, o comunismo, o aborto, a corrupção, o desrespeito à figura divina, a doutrinação marxista nas universidades públicas, entre outros. Em decorrência disso, é primordial atacar essa desordem recorrendo a discursos como “menino veste azul e menina veste rosa”; “bandido bom é bandido morto”; “vamos acabar com o cocô no Brasil”; “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Todas essas falas produzem no senso comum uma percepção de que o país só está da forma que está por terem em algum instante optado por se desviar de um caminho virtuoso, se é que um dia ele existiu. “Criam uma guerra moralmente justificada, feita em nome de algo que acreditam representar o bem” (MANSO, 2020).
Tal disputa entre ciência e religião fica ainda mais evidente em tempos de COVID-19. Grupos religiosos, embora sejam defensores da vida, arriscam-na a todo momento. Confiam que Deus livrará a nação de todo mal, e por isso, rejeitam as ações humanas e científicas para combater a pandemia. Criticam medidas sanitárias que restringem algumas liberdades individuais, como o direito ao culto presencial. Criticam o lockdown mesmo quando as UTIs não possuem mais leitos. Confiam apenas naquelas autoridades que se dizem terrivelmente evangélicas, pois acreditam que a cura para esse mal as será revelada. Nesse cenário, como ficam as pessoas que não compartilham da mesma fé? Desprotegidas? Deus ainda teria o trabalho de livrar aqueles que assim não creem, afinal se o vírus é transmissível, nada impede que cristãos não possam transmitir a doença para outros cidadãos.
Para essas pessoas fundamentalistas, os problemas do Brasil guardam íntima relação com o espiritual, a imoralidade, a promiscuidade, “os Direitos Humanos”, o comunismo. A fim de combater tais absurdos é essencial um ministro do STF terrivelmente evangélico, que seja a favor da redução da maioridade penal, contra o aborto, contra a legalização das drogas... Não cessa por aí, é preciso defender a família, a liberdade de expressão, o uso da cloroquina, o armamento da população, a exterminação da esquerda, etc. Somente assim, como num passe de mágica, todos os problemas que hoje afligem o Brasil estarão resolvidos. O Brasil figurará em novo patamar no cenário mundial. A ordem estará restabelecida!
As crenças e os valores morais que carregam não servem para reger apenas o individual, mas o coletivo. Dessa forma:
Concebem um modelo ideal de família e afirmam que a delinquência juvenil é simplesmente resultado da ausência de um pai presente, que garanta a aceitação das normas da casa, da escola e da vida pública em geral. Acreditam que a carência do paterfamilias acarreta a tendência ao comportamento antissocial, consequentemente, percebem a delinquência como um problema de “falta de limites”. O delinquente rompe violentamente a lei porque não lhe ensinaram a respeitar os limites e as normas sociais; isto é, a ausência do pai é a causa principal da indisciplina. (MOLLO, 2016)
A visão estreita e monocular impede de enxergar o mundo por outra perspectiva, uma vez que restringe alternativas e foca em um único sentido, anulando quaisquer outras possibilidades. Isso gera um forte impacto nos comportamentos/relacionamentos dos indivíduos de tal forma que “um cristão, por exemplo, não percebe sua religião como uma das expressões da experiência religiosa humana, mas como um conjunto de descrições verdadeiras e de normas válidas” (COSTA, 2020). Há também o grande perigo de uma maioria política impor ideias à minoria política, acreditando poder regular os comportamentos sociais a partir da sua visão de mundo.
Não é exagero afirmar que, nesse terreno fértil, grupos religiosos encontram espaço para disseminar suas verdades, não raro, de forma preconceituosa, desrespeitando o direito de outras pessoas de professarem a fé que desejam. Eis o problema do proselitismo religioso e sua interpretação de mundo unívoca, que ao combater a pluralidade de pensamento, descambam para o excesso.
Essa busca incansável por um padrão universal em um mundo plural e com diferentes cosmovisões gera atritos desnecessários, uma vez que enquanto lutamos para impor a nossa verdade, deixamos de lutar por um mundo com menos sofrimento. Como diria Fábio Brazza, em sua música De volta ao passado: “Os filhos do futuro dizem: Não nos desapontem Somos herdeiros dos erros de ontem”. Será que essa busca por uma verdade absoluta e por valores universais que ignoram a pluralidade e a complexidade da existência humana é em alguma medida benéfica?
Os platônicos acreditavam e difundiam uma ordem natural que deveria ser descoberta e perseguida, pois assim todos encontrariam a essência da vida, o que os pré-socráticos denominavam de arqué.
Retornamos aos gregos, origem de toda essa discussão! Cabe então encerrarmos assim: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”.
Talvez a nossa compreensão de mundo esteja muito limitada pelas nossas experiências e pelas categorias generalizantes da linguagem. Talvez a inclusão de pessoas diferentes em uma categoria universal e uniforme que chamamos de ser humano dificulte a nossa compreensão do outro. Se para entender o outro ele deve ser igual a mim, então caminhamos cada vez mais para um mundo de intolerância.
Referências Bibliográficas
BRAZZA, Fábio. De volta para o passado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vn-UCicOdSo
COSTA, Alexandre. A filosofia grega. Arcos, 2020. Disponível em https://novo.arcos.org.br/a-filosofia-grega/
COSTA, Alexandre. A Filosofia e os paradoxos da linguagem. Arcos, 2020. Disponível em https://novo.arcos.org.br/a-filosofia-e-os-paradoxos-da-linguagem-2/
MANSO, Bruno Paes. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.
MOLLO, Juan Pablo. O delinquente que não existe. Salvador: Juspodivm, 2016.