A tensão sobre o natural vs. o artificial em termos de Direito remonta, a nosso juízo, a consolidação de perspectivas antropocêntricas. Contudo, uma análise histórica e conceitual mostra que o termo natural pode ser utilizado em diversos sentidos, podendo ter a noção de φύσις em relação contrária ao sentido de não natural. Aliás, Sócrates, via escritos platônicos, buscava dar à forma da proposta dos Sofistas um caráter que eliminava essa reflexão constitutiva em prol apenas de um caráter formal. Isso é seguido pelo seu discípulo que dedica o diálogo de mesmo nome, Sofista, a lidar com uma Teoria das Formas sobre as quais se poderia afastar o problema meramente vocabular que os debatedores gregos insistiam. Platão reclama que o problema sofista (218d-231e) está já em sua definição, mostrando ser alguém que constrói imagens falsas sobre tudo (234c 6-7). Essa questão colocada por Platão, o mostra como sabedor do problema parmediano da relação SER-DIZER-PENSAR como o mesmo e cuja resposta sofista do discurso e não dá verdade cria mais imagens falsas.
De certa forma, Platão remonta ao problema da relação discurso e ontologia[1], a qual acreditamos estar na base do problema ora em voga: seria a questão política um problema natural ou sobre o discurso? Isso se coloca em termos do problema de Antígona, quando a compreensão da profecia parece inescapável frente à natureza que constitui o destino humano. Antes a ordem constituída pelos deuses que pelos homens, os quais apenas tocariam en passant a realidade do mundo com seus decretos.
Essa questão sobre o essencial e o discursivo passou a ser compreendido dentro da perspectiva φύσις vs νόμος enquanto compreensão do que sustenta a noção de normatividade moral. Em certo sentido, a tradição não apenas ocidental, mas também oriental, refletia sobre a possibilidade de relação entre a vida social e as bases naturais da vida humana. Já nas bases do confucionismo chinês, a relação de harmonia deveria pautar as relações não apenas espirituais, mas sociais (MACHADO, R.P., 2007, p. 152-153)[2], buscando a harmonia entre o moral e o social (valores morais e justiça), as quais constituem a realidade do mundo[3].
Assim, o νόμος seria uma manifestação pelo estado de coisas presente na realidade social enquanto forma de entrelaçamento, afastando algum tipo de vida coletiva como artificial. A separação φύσις e νόμος nem sempre estivera presente entre os primeiros filósofos (CABRAL, 2013, p. 112)[4], como se depreende da famosa frase de Heráclito quanto ao ethos anthropos daimon. Essa separação se colocaria em especial a partir de Platão, no Crátilo, no pensando sobre as posições relativista quanto aos nomes das coisas e a posição mais essencialista. Ora, nem sempre o termo φύσις se referiria a uma ordem posta, podendo, como Platão faz, reconhecer a insuficiência (CABRAL, 2013, p. 115-116) da realidade física e buscar uma metafísica. Estaria mais para os pré-socráticos a compreensão da physis como natureza posta, portanto, o próprio nomos como ligação com essa natureza.
Contudo, a história do nome criou novas formas de compreender essa separação natural e artificial. Enquanto os gregos e medievais reconheciam a separação a partir da noção de essentia (eidos ou ousia) vs. ars (a techné grega), mas sem necessariamente haver uma dicotomia, porquanto o saber - scientia latina ou episteme grega - reconheceria seu vínculo entre o transitório e o fundamento, sendo que o transitório levaria ao fundamental - vale lembrar do famoso itinerário investigativo agostiniano do exterior para o interior e do interior para o superior; ou a própria dialética platônica do Parmêmides; ou ainda na teoria da abstração aristotélica -, a relação não se daria como uma necessária controvérsia, dado que, pelo menos no caso da antropologia medieval, a relação transitório é essencial poderia ser vista em termos de integralidade. Com isso, no tocante à vida prática, a relação atos políticos e vida social, como fruto de atos da vontade em sentido moral, ensejaria uma compreensão do nomos que não descuidasse da natureza humana, assim, a lex humanae seria uma expressão da lex naturalis enquanto positus de um fundamento que justifica e sustenta a própria vontade que visa a vida coletiva.
Essa ideia já estaria presente em Platão. A vida social é uma extensão da alma humana, como afirma Reale: “Se, como vimos no início, o Estado não é senão a ampliação do homem e da sua alma, às três classes sociais do Estado deverão corresponder três formas ou faculdades na alma” (2007, p. 248)[5]; e mais, "como o Estado feliz é somente aquele que cumpre ordenadamente suas funções segundo a justiça e as outras virtudes, assim a alma feliz é somente aquela que desenvolve as suas atividades ordinárias segundo a justiça e as outras virtudes, ou seja, de acordo com o que é a sua natureza verdadeira (κατὰ φύσιν)” (Ibidem, p. 251). Dessa forma, nem sempre a lei seria vista como uma forma apenas convencional, porquanto poder-se-ia pensá-la a partir de uma relação de extensão da natureza humana e vida social.
Nesse sentido, nem todo nomos seria meramente costume ou tradição, podendo ser nomos enquanto forma de ordenamento real das realidades não visíveis, dando ao caráter de lei uma forma consolidada de não convencionalismo costumeiro, mas de realização da excelência - areté - da natureza humana expressa inclusive nas leis. Na época medieval, em Tomás, a expressão lex injusta non est lex representaria essa forma de que o nomos poderia ser atrelado a uma ordem natural. Finnis (2014, P. 140-141) [6] afirma que o Aquinate estava a a dizer não sobre a lex posita, mas sobre a lei de ordenamento das realidade, pois se aquela existe enquanto realidade posta, não existiria enquanto ordenamento social.
Mesmo no Estagirita há que se reconhecer essa questão. Em que pese a relação aristotélica entre justiça natural e não-natural, a vida social é o lugar do exercício da perfeição, portanto, a mesma justiça de acordos não poderia se opor à racionalidade em geral, porquanto a relação razão prática (nous praktikos) e razão teórica ({nous teoretikos) se dá de forma conjunta (BITTAR, 1997, p. 56)[7], portanto, a razão prática não busca uma autonomia contrária à theoria, logo, submete-se ao telos humano da eudaimonia. Com isso, como afirma Bittar (1997, p. 59), ao tratar da relação da sociabilidade e da lei, "Sociedade e lei se encontram num ponto comum: a necessidade de regulamentação da conduta humana em interação”, sendo que "A lei é, aqui, a razão humana atuando para a sobrevivência do espaço social”. Isso quer dizer que a justiça convencional não se nega ao exercício da racionalidade, mas deve ser sua realização social.
A separação se demonstra mais radical quando da leitura moderna em que a busca por esvaziar uma possível natureza humana implicaria em oposição natureza e norma. Hume, no Livro III do Tratado, ao lidar com as questões referentes a ética e moral, reafirma que as virtudes, como fruto das paixões, como demonstrado no Livro II, seriam artificiais, por seguirem convenções. Claro que a oposição não se consolida já na modernidade, pois, em sentido contrário, Kant submete s práticas morais ao domínio de uma razão pura sem empiria, como proposta na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Se por um lado, haveria o costume como realidade que buscava se consolidar como fundamento das obrigações, em que se buscava um interdito via razão filosófica, como na critica naturalista de Hume e não derivação do dever a partir do ser, por outro lado, em Hegel ou Fichte e quiça em Kant a naturalização do nomos ensejou a consolidação de uma visão política de direitos naturais. Contudo, mesmo que se coloque uma posição como a kantiana, a vida coletiva política não é parte da natureza, mas artificialmente concebida via contrato, o que não afasta alguma forma convencional de organização social. O problema do Governo moderno nasce com o problema sobre o que ele se sustenta: nos conteúdos normativa morais ou no próprio acordo.
Assim, se o Governo seria uma força natural ou um artifício, não parece um problema, porquanto estaria entre os saberes práticos e não metafísicos dos antigos filósofos, sejam gregos ou medievais, sendo que para os modernos a questão passa pelo contrato em geral. Contudo, o problema se coloca sobre o que sustenta o governo. As bases do governo são intestinas? A questão do Barão de Münchhausen, como debatido por Habermas e Ratzinger na Dialética da Secularização, coloca-se com o problema da fundamentação do Estado. Haveria uma esfera extra-política e convencional que garante a consolidação do Estado? De onde ele extrai essa normatividade se de um nomos costumeiro ou na busca de um nomos fundante, se é que existe? Dessa forma, entendemos que a tensão nomos e physis pode ser compreendida a partir do problema dos fundamentos pré-políticos ou políticos do próprio Estado de Direitos, Estado esse em suas manifestações em nomos.
[1] Cordero afirma haver, em Platão, uma primazia do ontológico sobre o discurso - λεγέιν -, havendo um entrelaçamento entre entre as Formas expresso pelo logos platônico. CORDERO, Néstor Luis. Platón contra Platón: la autocrítica del Parménides y la ontología del Sofista. Buenos Aires: Biblos, 2016, p. 159.
[2] MACHADO, R.P. “A Ética Confucionista e o Espírito do Capitalismo”: narrativas sobre moral, harmonia e poupança na condenação do consumo conspícuo entre chineses ultramar. In.: Horizontes Antropológicos. .13, n. 28, p. 145-174, jul./dez., 2007.
[3] Cf. FUNG, Francis. Chinese harmony renaissance: can world ignore it? Building Socialist Harmonious Society. 2006. Disponível em: <http://www.chinaview.cn/ hxsh0627/index.htm>. Acesso em: 5 nov. 2006.
[4] CABRAL, J.F.P. A Dicotomia Nomos-Physis no Crátilo de Platão. Revista E. F.e H. da Antiguidade. Campinas, no 26, jul2009/Jun. 2013.
[5] REALE, G. Platão. São Paulo: Editora Loyola, 2007..
[6]FINNIS, J. What is the Philosophy of Law. In.: American Journal of Jurisprudence. v. 59, n. 2, pp. 133-142, 2014.
[7] BITTAR, E. C. B. A teoria aristotélica da Justiça. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 92, 53-73, 1997. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67355.