O surgimento do Governo: é natural que nas sociedades humanas exista uma distinção entre governantes e governados?

Para responder a essa questão, é necessário primeiro definir a que estamos nos referindo quando falamos em algo ser natural. Conforme apontado por Costa (2020d), a ordem natural como elemento simbólico perpassa toda a filosofia de matriz grega e as concepções iluministas, constitucionalistas e liberalistas. Por trás da ideia de ordem natural está a crença de que existe uma verdade fundamental oculta que deveria guiar a ordem social em contraposição ao que seria mantido por tradição. A missão da filosofia do direito seria, portanto, desvelar essa ordem natural e tentar ajustar as condutas humanas a ela, mas, como fazê-lo?

O paradigma no qual vivemos hoje é fortemente influenciado pelas ciências produzidas nos centros acadêmicos, motivo pelo qual é compreensível que nos voltemos à biologia, psicologia, arqueologia e antropologia para tentar responder à questão. Neste sentido, é importante destacar que, por mais que essas ciências se proponham a ser uma empreitada isenta, neutra, impessoal, o conhecimento que elas produzem está atrelado ao paradigma de seu tempo. Mais que isso, o mesmo é limitado pela própria incapacidade de se estabelecer uma objetividade absoluta na ciência, conforme destacam Maturana e Varela (2001). Isso não significa que utilizarmos os conhecimentos da ciência em nossa busca são em vão, mas apenas que o faremos dentro de uma objetividade relativa, não-absoluta, “entre-parênteses”, como afirmariam os autores.

Em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari (2015) tenta traçar a linha evolutiva que levou à humanidade a ter se organizado da forma como o fez. Nele, o autor defende que a partir da revolução cognitiva de nossa espécie, nós passamos a utilizar uma linguagem abstrata que se refere não apenas a entidades concretas, mas também a entidades abstratas. Seria a capacidade de falar sobre coisas que não existem e, com isso, criar ordens ficcionais imaginadas, o que teria possibilitado o surgimento de estruturas sociais arbitrárias.

Essas estruturas teriam ganho maiores proporções à medida que se deu a revolução agrícola. Com relação a ela, o autor argumenta que o domínio da agricultura não levou a uma melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Pelo contrário, do ponto de vista individual, o agricultor teria uma vida muito mais penosa que a de um caçador-coletor, tendo que trabalhar por mais horas para conseguir alimento de pior valor nutritivo. Para ele, a vantagem conferida pela revolução agrícola se daria do ponto de vista da espécie. Em termos globais, os humanos seriam capazes de produzir alimentos em maior quantidade por unidade territorial o que teria possibilitado nosso aumento populacional. O indivíduo, contudo, não seria mais feliz. Por que então haveria ele de se sujeitar ao sistema agrícola? Justamente por acreditar na ordem imaginada estabelecida.

Kent Flannery e Joyce Marcus tentaram responder à questão do surgimento da desigualdade social estudando a arqueologia política das sociedades pré-colombianas no México. Para os autores, as sociedades de caçadores-coletores eram predominantemente igualitárias, tendo a desigualdade surgido à medida em que foram se tornando maiores e mais complexas, se dividindo em clãs e estabelecendo ritos estratificadores.‌‌A observação de outras sociedades de caçadores-coletores permitiu a identificação de dois tipos de igualdade: igualitarismo fraco, “existente nas sociedades em que não há diferenças de riqueza, poder e status, mas que também não têm estruturas sociais voltadas especificamente a manter essa igualdade”; e igualitarismo forte, “existente nas sociedades em que a igualdade é acoplada a uma série de normas que institucionalizam essa igualdade” (COSTA, 2020c).

Esse segundo tipo de igualdade tem relação com a ideia defendida por Pierre Clastres de que as sociedades arcaicas, nas quais não há a institucionalização da distinção entre governantes e governados, teriam assim se organizado intencionalmente e não por uma inabilidade de o fazê-lo. Nesse processo, teriam feito um esforço para impedir a concentração de poder e o estabelecimento do Estado. Essa é uma crítica à visão etnocêntrica de que a formação de um Estado seria, em uma escala evolutiva, um estágio mais avançado de desenvolvimento social. Para sustentar seu argumento, Clastres cita problemas de sociedades com Estado como a alienação e exploração do trabalho e a estratificação social. No cerne do problema estariam o poder e o respeito ao poder. Em sociedade primitivas, argumenta o autor, a figura do Chefe em nada se assemelha à do déspota, não dispondo ele de poder de coerção. A história desses povos seria mesmo uma luta contra a concentração de poder, em última análise uma luta contra o Estado (CASTRO, 2020a).

Analisando a posição dos autores, caminhamos para um posicionamento de que não seria natural o surgimento de um Estado com governantes e governados. Os humanos não teriam uma tendência inata a evoluir de sociedades majoritariamente igualitárias baseadas na caça e coleta, para sociedades de maior densidade demográfica, baseadas na agricultura e numa estrutura social desigual, comandada por uma elite. Isso apenas ocorreria em virtude do estabelecimento de uma crença numa ordem natural fictícia inventada.

Por outro lado, é possível argumentar de forma diversa. Até aqui, predominou a visão de que os construtos humanos são, de alguma forma, não naturais. A ideia de colocar o homem fora da natureza é muito comum em nossa sociedade e se encontra explícita em muitas de nossas produções culturais. No paraíso cristão, por exemplo, a natureza é criada em função do homem estando este destacado dela. Se, contudo, entendemos que o universo simbólico humano é ele mesmo expressão de nossa natureza, o termo natural ganha outro significado, sendo talvez reduzido a algo mais instrumental como designar uma condição social que gere maior estabilidade e bem estar.

Hierarquias sociais são muito comuns na natureza e, particularmente, entre outros primatas. Pode-se argumentar que a questão do estabelecimento do Estado, com governantes e governados seja uma questão de grau e não de natureza. Haveria uma tendência a se estabelecer hierarquias entre humanos, mas tendo em vista nossa capacidade de organização em torno de um universo simbólico (o que não o torna menos real, apenas um real de natureza distinta) o potencial para que surja alto nível de desigualdade seria também aumentado. Neste sentido, seria perfeitamente natural o surgimento do Estado. Isso não quer dizer que seu não surgimento também não o seja, apenas que a questão inicial careceria de adequação.

Referências:

COSTA, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020a.

COSTA, Alexandre. Yuval Harari e a Armadilha da Revolução Agrícola. Arcos, 2020b.

COSTA, Alexandre. As origens da desigualdade política. Arcos, 2020c.

COSTA, Alexandre. A ordem imaginada. Arcos, 2020d.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 2015.

MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução: Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001, 288p.