O dicionário Aurélio define o verbete ciência como: “conjunto metódico de conhecimentos obtidos mediante a observação e experiência.” A definição oriunda do dicionário é perfeita para uma ciência como química, por exemplo. Os elementos existentes na natureza são representados por uma tabela inventada, que reproduz de forma gráfica conhecimento sobre os elementos químicos até agora (sim, até agora, não há impedimento que algum meteorito traga “novos” elementos vindos dos confins do universo) observados e provenientes da experiência ao longo de milênios.
E o direito? Será que o direito pode ser uma ciência jurídica. Aparentemente, sim. O direito quando estudado apresenta-se como conjunto metódico de conhecimentos obtidos mediante a observação e experiência“. As codificações seriam a tabela periódica da química? Provavelmente, sim. Há uma estruturação nesse direito escrito de muita observação e experiência da humanidade, ou melhor, da sociedade que ele rege. Assim como a matemática é uma ferramenta para química, várias outras ciências (políticas e sociais, por exemplo) instrumentalizam e ajudam a explicar os fenômenos jurídicos.
Apenas a escrita e o assentamento do pensamento em um meio físico não faz do direito uma ciência. Se fosse assim, o código de Hamurabi e as leis de Eshinuna já poderiam ser uma das primeiras representações do direito como ciência.
Para a tentativa de responder à pergunta se Direito é ciência, é salutar uma aproximação pelo positivismo.
Sófocles, na obra Antígona, já apresentou a oposição entre as leis divinas e as leis da cidade (escritas). Na história, Jocasta confronta o seu tio Creonte para poder enterrar o seu irmão. As leis da cidade eram peremptórias em dizer que quem se levantasse contra o “status quo” não teria direito a um jazigo, túmulo ou sepultamento. O seu cadáver pereceria na boca de aves carniceiras e mamíferos vorazes por uma carcaça em decomposição. Ela dizia que o corpo de Polinice deveria ter um tratamento digno, pois era o que a tradição pregava. Creonte defendia as leis, pois um insurgente não poderia ter um sepultamento digno. A lei é dura, mas é a lei.. A obra é importante para essa discussão entre o direito natural e o direito dos homens, pois Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, menciona em sua obra Retórica. Ou seja, a história de Jocasta, Creonte e Polinice contada por Sófocles mexeu com o grande filósofo.
Antígona contribui para a tentativa de determinar se o direito é ciência na medida que no Século V a.c. já se travava uma batalha entre o direito natural - a tradição - e o direito escrito e determinado pelos homens. Mas será que há diferença entre eles? Será que antes de Mendeleev criar a tabela periódica os elementos químicos não existiam. E os que foram agregados após a tabela pioneira, não existiam de alguma forma sem que as pessoas soubessem. Pode-se pensar que o direito escrito é a manifestação do direito natural nas mãos de quem tem o poder de escrevê-lo. E o que isso tem a ver com ciência? TUDO! Quando começamos a estruturar os elementos químicos de uma forma que traduza o conhecimento obtido por meio da experiência e da observação, estamos fazendo ciência. Por outro lado, quando começamos a estruturar as leis (base do direito) em códigos, estamos fazendo ciência. Mesmo que os mais poderosos, em um primeiro momento, levem vantagem na escrita das codificações. Na matemática, a força política de Isaac Newton fez o seu cálculo diferencial e integral se sobressair, em relação desenvolvido concomitantemente por Leibniz. Mas o trabalho de Leibniz não foi em vão. É essa tradução do material vindo da sociedade ou da natureza em que as pessoas acreditam que faz do direito uma ciência.
Mas, pode-se dizer que o direito como ciência é pura? NÃO! E nesse tocante que o direito se afasta das ciências em um olhar não apurado, pois ele é cheio de meandros. Tércio Sampaio Ferraz Jr diz:
“o direito é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana (...). Introduzir-se no estudo do direito é, pois, entronizar-se num mundo fantástico de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão, pois o direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como instrumento para propósitos ocultos ou inconfessáveis (...). Isto exige, pois, precisão e rigor científico, mas também abertura para o humano, para a história, para o social, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como uma obra sempre por acabar.”
Longas palavras transcritas, porém profundas. Que merecem a leitura atenta de qualquer pretenso jurista. Não é porque o direito por vezes não atinge o seu fim aos olhos do vivente, que o seu conjunto metódico de conhecimento deixa de existir.
O direito é uma ferramenta, tal qual a matemática, para a busca de justiça e paz social. Uma ferramenta científica inebriada de conhecimentos obtidos por meio de observação e experiência.
Continuando a nossa jornada pelo positivismo, os doutrinadores desta escola vislumbraram a capacidade científica do direito e resolveram injetar o rigor dos métodos das ciências exatas nele. Adotaram uma postura de abandonar a procura por uma justificativa metafísica da validade das normas positivas por entenderem se tratar de uma questão filosófica, adotando um discurso científico. O expoente desse é o austríaco Hans Kelsen, principalmente com a sua obra Teoria Pura do Direito.
Por fim, as Ciências Jurídicas traduzem o conhecimento “natural” obtido mediante observação e experiência (vivência) em uma estrutura inteligível (ou deveria fazer) para o resto da sociedade, com auxílio de diversas outras ciências, por exemplo a filosofia. Além de traduzir, cria normas para contemplar os avanços da sociedade, ou seja, tenta captar e trabalhar inclusive com o conhecimento que ainda está por vir, como por exemplo a vacinação. Nem houve o voto definitivo da ciência sobre a segurança da vacina que protegerá a população da Covid-19, e as discussões sobre quem tomará, quando e se será obrigatória ou não já avançam na seara jurídica e nas demais esferas de conhecimento, por exemplo, a política.
Referências
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário: o dicionário da língua portuguesa. 8ª ed. Curitiba: Positivo. 2010.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 9ª ed. São Paulo: Atlas. 2016. p. 1.
SÓFOCLES. Antígone.< http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/antigone.html> Acesso em: 5 out. 2020.