São várias as compreensões entorno do Direito ser ou não uma ciência. Antes de conseguir chegar a alguma conclusão, importa lembrar que a etimologia da palavra ciência advém da expressão latina scientia, que significa conhecimento. Há outras vertentes, que afirmam que ciência derivaria da palavra scindere, que significa corte, divisão.

Conquanto, pode-se dizer, então, que ciência seria a arte destinada ao corte/divisão de um objeto para melhor apreciação. Sob essa ótica, inferir o Direito enquanto ciência, torna-se fácil, visto que um operador das leis acaba por recortar o fenômeno social para emoldurá-lo no quadro normativo e, assim, melhor conhecê-lo e compreendê-lo.

Entretanto, os debates se aprofundam para muito além da etimologia, afinal a ciência requer métodos, instrumentos capazes de otimizar e fomentar o estudo, a pesquisa, a fim de extrair o maior conhecimento possível do objeto examinado.

Classificar o direito como ciência é um esforço com origem em discussões muito presentes na modernidade, que mostravam intensa disputa entre a filosofia e a ciência. Nesse contexto, a ciência se fortalecia e, pretensamente, apenas por meio dela o conhecimento racional e lógico era consistente. Nessa época, segundo Costa, Augusto Comte anunciava a “necessidade de um reconhecimento de que somente as abordagens científicas oferecem bases sólidas para o conhecimento.” (COSTA, 2020)

Compreender o direito como uma ciência não diz respeito apenas a avaliar suas bases metodológicas, sua capacidade explicativa em formas sistemáticas. Para (DURKHEIM, 2007), por exemplo, o direito é um fato social, mecanismo de controle da sociedade para promover a pacificação. Mesmo nessa perspectiva, é possível conceber a aplicação de um direito sistemático, com métodos que permitam evitar o fato social indesejado e reprimir aqueles que já aconteceram.

Igualmente interessante é citar excerto de julgado do Superior Tribunal de Justiça, em voto do ministro Napoleão Nunes Maia, que, sem afastar o caráter cientificista do direito, deixa evidente a complexidade que envolve a construção de métodos para aplicação de uma ciência social:

“(...) O direito deve ser encarado como uma ciência de experiência, na medida em que a interpretação não pode ser resumida a uma mera operação lógico-formal, ou seja, deve recair sobre a conduta do agente e não sobre a norma jurídica. Ao se dar ênfase à subjetividade e a intersubjetividade, valorizando a ação humana, aproxima-se o direito da aplicação do justo, tocado pelo critério da razoabilidade.” [...] (STJ; HC 166.523; Proc. 2010/0051465-1; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho; Julg. 09/11/2010; DJE 13/12/2010).

Em consonância com essa linha de compreensão, destaca Costa que “O direito é um fenômeno histórico, e assim deve ser encarado por todos aqueles que pretendem fazer acerca dele uma verdadeira ciência.” (COSTA, 2020)

Para Aristóteles, a ciência pode ser vista como um conhecimento demonstrativo expressado e fundamentado por um conjunto de premissas necessárias e compostas pelos elementos da observação, da experimentação e das leis. Induz, dessa maneira, a correlação entre o conceito de ciência e sabedoria ao estabelecer que:

[...] o saber e o conhecer cujo fim é o próprio saber e o próprio conhecer encontram-se sobretudo na ciência do que é maximamente cognoscível. De fato, quem deseja a ciência por si mesma deseja acima de tudo a que é ciência em máximo grau, e esta é a ciência do que é maximamente cognoscível. Ora, maximamente cognoscíveis são os primeiros princípios e as causas; de fato, por eles e a partir deles se conhecem todas as outras coisas, enquanto ao contrário, eles não se conhecem por meio das coisas que lhes estão sujeitas.1

O conhecimento científico estabelecido pelo autor propõe a condição da compreensão das causas relativas a determinado fato, também chamada de causalidade, juntamente com a necessidade de não poder haver outra possibilidade de aplicação da análise, ou seja, admite a prerrogativa de “que seja assim o que não pode ser diferente do que é”2. Assim, o sentido da causa estabelece um nexo com a causa do conhecimento científico, sendo responsável pelos resultados e conclusões encontradas.

Na obra “Teoria Pura do direito”, Hans Kelsen defende a existência de uma ciência do Direito, tendo como fortes influências o positivismo científico e a perspectiva neokantiana. Para o autor, o Direito deve ser visto sob uma ótica categórica de uma ciência autônoma, tendo como principal objeto de estudo as normas jurídicas pautadas de objetividade e especificidade. Logo, menciona que tais normas são reflexos de “atos de conduta humana e que hão de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas jurídicas, entre os fatos por elas determinados.”3

Embora a teoria criada por Kelsen tenha representado um marco no âmbito jurídico e uma contribuição relevante até os dias atuais, sua aplicação não incluía influências políticas e naturais, não admitindo que o Direito fosse visto e encarado como um fato social. Esse cenário levantou críticas no que tange, principalmente, o caráter de distanciamento da realidade que assume o direito enquanto ciência ao não conservar uma abertura em relação à constante atualização das questões relacionadas à sociedade e a justiça.

Apesar disso, Leonel Severo Rocha aponta que:

“Kelsen, ao contrário do que pensam seus críticos apressados, por filiar-se à tradição da “teoria do conhecimento”, assume como inevitável a complexidade do mundo em si. Para ele, o social (e o direito) são devido as suas heteróclitas manifestações constituídas por aspectos políticos, éticos, religiosos, psicológicos e históricos. E a esse respeito não cabe ao cientista do direito nada comentar. A função do cientista é a construção de um objeto analítico próprio e distinto destas influências. A partir desta constatação é que Kelsen vai procurar, assim como Kant, depurar essa diversidade e elaborar uma “ciência do direito”. Ou seja, na teoria pura uma coisa é o direito, outra distinta é a ciência do direito. O direito é a linguagem objeto e a ciência do direito a meta-linguagem: dois planos lingüísticos diferentes”4

Com a modernidade, vivenciamos um processo de aprendizagem que leva à crise do conceito de ciência, cabendo rememorar as provocações de Carvalho Netto e Scotti, que afirmam:

"científico é o saber que se sabe precário, que não se julga absoluto, que sabe ter de expor com plausibilidade a fundamentação de tudo o que afirma. Leis científicas, por definição, são temporárias. Serão refutadas. A refutação só prova que determinadas teses foram científicas enquanto foram críveis, plausíveis, para nós (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2012, p. 6)."

Conforme afirma PRATES (2006) há um “fetichismo” que algumas correntes positivistas têm pelo texto escrito da lei, como se o fenômeno jurídico pudesse ser reduzido e enclausurado integralmente por um “legislador onisciente”. Esquecendo-se que "em razão da nossa condição hermenêutica, os textos são vivos, pois nós somos textos, revelando que norma alguma controla inteiramente sua própria situação de aplicação, ou seja, pretender colocar a vida inteira em textos escritos é, ousaríamos dizer, um “excesso de racionalidade moderna” ou “mágoa da razão”, em uma forte pretensão iluminista".

Produzir normais gerais e abstratas não esgota o trabalho do Direito, mas é apenas o início dele, uma vez que "O problema é que as pessoas não são gerais e as situações não são abstratas”. (CARVALHO NETTO, 2003: 101-102).

Talvez o melhor caminho seja não determinar o que é ou não o direito, afinal compreendê-lo como um conjunto fechado, seria restringi-lo demais. No entanto, em que pese a necessidade de algum posicionamento sobre a questão, quem sabe, melhor seria, se enquanto futuros operadores desse macrocosmo que é o direito, nos aproximássemos da compreensão de Hart, quando o considera uma prática social baseada em costumes e crenças comuns. Ciência ou não, uma prática ele é. Fiquemos então por aqui...

Bibliografia

ARISTÓTELES, Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

[1] Metafísica I, 2, 982a 30 – 982b 3.

[2] Metafísica V, 5, 1015a 34-35.

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998 - p. 62.

[4] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 72.

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HC 166.523; Proc. 2010/0051465-1; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho; Julg. 09/11/2010; DJE 13/12/2010. Disponível em www.stj.ju.br. Consulta02/11/2020.

CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os Direitos Fundamentais e a (In) certeza do Direito – A produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.

CARVALHO NETTO, Menelick de. Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 88, p. 81 – 108, dez. 2003.

COSTA, Alexandre. A ascensão dos discursos científicos no séc. XIX. Filosofia.arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020. Cap. III, pontos 4 a 8: 4 - O surgimento da consciência histórica, ou o positivismo positivista, 5 - Direito e ciência, 6 - A crise do positivismo liberal, 7 - O retorno da justiça distributiva, 8 - O positivismo sociológico

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico, São Paulo, Martins Fontes, 2007.


PRATES, Francisco de C. O Conceito de Ciência subjacente ao projeto moderno de racionalização do Direito: a questão epistemológica da busca de segurança jurídica. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.12, maio 2006. Disponível em: <https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao012/francisco_prates.htm>
Acesso em: 06 nov. 2020.