Introdução

No texto O Grande Inquisidor [1] , Dostoievski expõe, através de uma anedota religiosa, contradições percebidas na humanidade. Nesta tela, aparecem duas concepções filosóficas contraditórias, representadas pela figura de Cristo e do Inquisidor: a liberdade x a submissão.

A história

Na época da Inquisição, Jesus visita a terra disfarçado de pobre e faz milagres entre as pessoas. O Inquisidor, revoltado, o reconhece e o prende. A partir de então busca defender a correção que fez na doutrina cristã:

O Inquisidor acusa Cristo de instaurar o caos na sociedade a partir do discurso de livre arbítrio. Defende a necessidade de submissão das pessoas a ideias das quais não possuem domínio. Em face de poder maior que elas, inexplicável, não resta nada a não ser se curvar:

Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias  tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum. (Dostoievski, 2011, pág.12)

As decisões de Cristo, segundo o Inquisidor, são vazias e contraditórias, pois ao invés de gerarem ordem e estabilidade, geram angústia e caos.

Jesus não desceu da cruz, mesmo podendo, para que seus seguidores pudessem o seguir de forma racional “porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso” (Dostoievski, 2011, pág.11)

Porém, não percebeu que essa liberdade foi a causa da destruição do cristianismo, já que as pessoas dependem de um poder coercitivo para as organizar espiritualmente e politicamente.

Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado...mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão de gritar que a verdade não estava em Ti; (Dostoievski, 2011, pág.10)

Cristo se mantém sempre calado frente aos ataques, olhando seu acusador com complacência. Apesar de não falar nada, seu silêncio é a defesa do livre arbítrio.

Jesus e o Inquisidor


Não obstante as lições religiosas deixadas pelo autor, observa-se no texto a caricatura de discursos políticos.

O Inquisidor, ao usar o misticismo como discurso legitimador, representa ao mesmo tempo a religiosidade medieval e a sociedade tradicional. Jesus, por outro lado, representa a angústia da liberdade, traduzida em uma religiosidade desconstruída.

O discurso de escolha defendido por Jesus gera diversas possibilidades que, segundo o Inquisidor, não são capazes de direcionar as massas. A liberdade é ideal desejável, mas impossível de ser alcançado em uma sociedade na qual milhares de pessoas precisam sobreviver em conjunto. Dessa forma, Cristo teria vindo para uns poucos escolhidos, enquanto o Inquisidor, que escolheu o lado do diabo, toma a decisão que é correta para toda a população.

Mesmo diabólico, o Inquisidor não é contra a sociedade. Pelo contrário, ele percebe que as massas abrem mão do livre arbítrio se tiverem uma garantia de sobrevivência.

Seu argumento é de que as pessoas sentem-se constantemente ameaçadas pelo incognoscível e por isso procuram firmar certezas em torno das quais possam sentir-se seguras. As ameaças constantes fazem com que seja mais proveitoso se curvar em torno de uma força protetora maior do que se aventurarem sozinhas.

Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. (Dostoievski, 2011, pág.9)

Concepção semelhante foi feita por filósofos apelidados por nós de contratualistas.

Hobbes [2], Locke [3] e Rousseau [4], a despeito de suas diferenças, constataram que o ser humano se encontra em vulnerabilidade no “estado natural" e que, portanto, abre mão do livre arbítrio e adere a uma sociedade que o protege.

O estado de natureza corresponderia a um estágio histórico no qual os seres humanos estavam livres das amarras sociais e podiam viver em plena liberdade. Contudo, sem uma força coercitiva, os homens eram constantemente ameaçados pelos seus iguais.

Os indivíduos então se uniram em sociedade, não pela solidariedade, mas pela necessidade de garantir seu bem-estar e preservação. A instituição de um Estado trouxe por consequência um soberano, que regulariza as leis e é o juiz supremo (HOBBES,1992, p.18)

Da mesma forma, o Inquisidor defende que as pessoas não podem usufruir da total liberdade, sob o risco de instauração do caos. A única saída possível para a paz social é que todos entreguem sua consciência para quem possa os direcionar.

havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores (Dostoievski, 2011,  pág.13)

E agora, José?

A ideia de que as pessoas livremente decidiram instituir uma sociedade para proteção de seus direitos já foi refutada. Hume [5] apresenta o contratualismo mais como uma especulação conveniente do que como uma realidade.

Além de não haver verificação empírica, a história mostra  que sociedade não é mantida por consentimento e igualdade, mas também pela imposição da força e autoridade. Os governos têm origens diferentes e indetermináveis. Não haveria uma única forma de passagem para a sociedade civil. (HUME,2006, p.245-250)

Mesmo assim, o contratualismo e o poder constituinte parecem ser mitologias convenientes que ajudam a manter a solidariedade social.

É fácil para as pessoas se submeterem a sociedade que tenham ajudado a fundar, apesar de que na prática a maioria da população só participa dos processos democráticos através do voto.

O Inquisidor sabia que suas ideias eram mitológicas, mas mesmo assim as usou de maneira instrumental, pela necessidade de achar um argumento para pacificar as massas. Era melhor para a população acreditar no mito e viver em paz do que eternamente ameaçada pela liberdade.

“São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes?” (Dostoievski, 2011, pág.7)

Cristo se manteve calado e não deixou a saída para essa controvérsia. Provavelmente sabia que não havia resposta e que a liberdade corresponde também a um estágio de angústia e ameaça.

Mesmo assim preferiu apostar na capacidade de o ser humano lidar com o livre arbítrio.

Jesus dá um beijo carinhoso em seu acusador e vai embora calado, deixando o Inquisidor com o coração queimando. (Dostoievski, pág.16)

Referências:

  1. Dostoievski, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. 2011
  2. HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Parte 1: liberdade e parte 2: domínio
  3. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Rio de Janeiro: Vozes, “Clássicos do Pensamento Político”, 1994.
  4. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social - princípios de Direito Político. São Paulo: Penguin Companhia, 2011. Livro 3 e 4. pág. 147-150
  5. HUME, David. Ensaios Políticos. São Paulo: Ícone, 2006 ensaio vinte e três: Do contrato Original