Introdução
Vivemos em constante transformação, presenciamos mudanças a todo momento em nossa sociedade. O mundo é, sem dúvidas, complexo e suas causas e explicações vão além da nossa capacidade cognitiva de entendimento e assimilação.
Diante da vastidão de informações com as quais temos contato durante nossa pequena existência (se comparado à idade da Terra e data dos primeiros registros humanos), criamos categorias para facilitar nossa interação com o mundo e adaptarmos às novas realidades e, através dessas categorias, é possível simplificar a realidade para torná-la inteligível — e assim surgem mapas.
O verbo “criar” acima utilizado refere-se exatamente ao seu sentido denotativo. Geramos categorias e, dessas categorias, adquirimos mapas que explicam, parcialmente, nossas realidades. Diante disso, conclui-se que o que temos hoje é construção social, pois passamos para o mundo nossas visões e elas condicionam nossas ações.
Somos contemporâneos do capitalismo, do comunismo, dos direitos humanos. Conceitos para nós tão comuns e que, sem dúvida alguma, fazem parte de nossa realidade. Mas o que pouco refletimos é que, todas essas categorias são, na verdade, realidades imaginadas, nós as criamos e as sustentamos. O papel dessas realidades imaginadas foi e é de grande importância. Através delas foi possível que criássemos impérios, nações, Estados. Nossas realidades são reais porque assim o dizemos.
O caminho para as realidades imaginadas
No livro “Sapiens – uma breve história da humanidade”, de Yuval Noah Harari (2011), o autor descreve a história da humanidade e leva à reflexão sobre toda a origem das instituições e do caminho percorrido para que chegássemos ao ponto em que estamos atualmente.
Como conseguimos progredir como seres humanos, criar redes de comércio, política, impérios e ideologias como o capitalismo e o comunismo? A resposta para isso é que, segundo o autor, há cerca de 70 mil anos, quando da chamada Revolução Cognitiva (HARARI, 2011, p.30), o ser humano experimentou novas formas de pensar e, a partir disso, houve uma verdadeira revolução no modo de comunicação, que permitiu o compartilhamento de informações sobre o mundo. Com o surgimento da linguagem o ser humano pôde falar sobre entidades concretas e abstratas.
Portanto, com a possibilidade de comunicação, tornou-se possível também o compartilhamento de mitos, crenças e ficções, o que gerou cooperação entre os humanos — que nem sempre fora uma cooperação voluntária, visto que a violência foi um meio utilizado por aqueles com maiores recursos coercitivos. Segundo Harari (2011, p. 32), a “capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens”. Essas ficções foram a base para que chegássemos ao nosso estágio atual: a modernidade.
Dessa forma, a cooperação humana em grande escala se baseia em mitos compartilhados, que culminam na criação de “realidades imaginadas” (HARARI, 2011, p.40), ou seja, estados, política, governo, pessoas jurídicas, empresas, justiça, são todos frutos da imaginação humana, coletivamente compartilhada.
Durante um longo período da história, a religião exerceu papel primordial para que houvesse tal cooperação entre os povos. A adoração a deuses, divindades, mitos sobre natureza e suas causas — categorias que foram criadas, através daquela realidade imaginada, para explicar o mundo à sua volta.
Isso nos leva a refletir: Platão criticou os artistas argumentando que estes criavam realidades invertidas: heróis, mitos e narrativas. Mas no que acreditamos senão em realidades invertidas, ou melhor, imaginadas?
Como exemplo desse ponto de vista podemos pensar nas duas ideologias opostas com as quais convivemos: para que eu acredite no capitalismo, devo deixar de acreditar no comunismo e na sua teoria de luta de classes, ditadura do proletariado e afins. Sendo assim, ao passo que todos os defensores e simpatizantes da ideologia comunista deixarem de acreditar nela, a realidade imaginada do comunismo entrará, portanto, em colapso, dado que são os seres humanos que a criaram e reproduziram durante gerações, ou seja, a sustentaram.
São essas realidades criadas por nós que condicionam nossas ações. Passamos para o mundo nossas crenças e compartilhamos entre os grupos, fazemos um recorte do mundo — as categorias —, e utilizamos para explicar nossa realidade. Sendo assim, nossas visões pessoais refletem no mundo. Para entender isso, basta voltarmos nossos olhos para o passado.
O nazismo foi uma realidade imaginada. Hoje temos repulsa e foram criados, inclusive, organismos e instituições para evitar a todo custo que episódios como esse não aconteçam novamente na história. Tal comportamento deve-se ao fato de que nossas percepções de mundo se alteram de acordo com a mudança que fazemos nas categorias.
Os nazistas usavam como base de sua ideologia a teoria da evolução de Charles Darwin (1809 - 1882) e, por isso, acreditavam que deviam proteger a humanidade da degeneração, de modo a manter a raça ariana — tida como superior — intocada e em evolução progressiva. Acreditavam, assim, na existência de diferentes raças. Esse foi um recorte que fizeram, uma crença, uma ficção que criaram e compartilharam, e, com a adesão dos indivíduos, adquiriu força. Para os adeptos do nazismo, aquela era a realidade que lhes fazia sentido, eles acreditavam nisso.
Marxismo cultural
É importante ressaltar que, na época em que o nazismo floresceu na Alemanha, o sentimento não era de repulsa. Hoje, apesar de não querermos que o passado se repita, o sentimento de superioridade de um determinado grupo humano em detrimento de outro ainda pode ser encontrado no seio de nossa sociedade, sob novas formas.
Como exemplo, podemos apresentar um termo relativamente recente que influencia indivíduos que mantêm visões afins com o conservadorismo e a ideologia da direita — também um tipo de ordem imaginada —, o “Marxismo Cultural”, que seria uma estratégia em que a esquerda deixa de buscar o poder pelo caminho das armas e passa a fazer essa disputa política no âmbito da cultura (SILVA, 2020, p. 78) Assim, por essa via, os simpatizantes da ideologia da esquerda conseguiriam destruir valores tradicionais difundidos na sociedade.
De acordo com Giddens (2008, p. 42), a mudança social ocorre por três fatores principais: o meio ambiente, a organização política e os fatores culturais — que incluem os efeitos da religião, dos sistemas de comunicação e da liderança. Desse modo, é pela manipulação desse último fator que o marxismo cultural tenta, supostamente, alterar as bases tradicionais da sociedade. É por meio do fator cultural que buscam “forçar” uma mudança social.
A superação de valores tradicionais é algo que vem gradativamente acontecendo na história humana. Sobre o ritmo acelerado de mudança social no período da modernidade, Giddens (2008, p. 44) afirma que o desenvolvimento da ciência e a secularização do pensamento foram fatores culturais que contribuíram para um caráter crítico e inovador da perspectiva moderna. Agora, a autoridade ancestral da tradição não é mais suficiente para que alguns hábitos e costumes sejam aceitáveis. Giddens (2008, p. 45) explica que o conteúdo das ideias também mudou e não apenas o modo como pensamos. Assim, tem-se ideias de liberdade, igualdade e participação democrática que serviriam para mobilizar processos de mudança política e social, incluindo revoluções. Como o autor destaca, essas ideias não provêm da tradição, pois propõem a revisão constante dos modos de vida buscando o melhoramento dos humanos. E é na proposição de ideias assim que se enxerga a ameaça do marxismo cultural.
Conservadores e simpatizantes da ultradireita, tendo como maior defensor, no Brasil, o filósofo Olavo de Carvalho (1947), argumentam que os valores tradicionais devem ser mantidos através de uma purificação da sociedade, com fins de expurgar os valores deturpados e diferentes daqueles que eles entendem como tradicionais. Portanto, no caminho pretendido por esse grupo, muitas vezes na busca pela purificação, pode-se chegar a vias extremas, sendo “combatido” o marxismo cultural até mesmo com violência. A adesão a tais ideias de purificação e volta aos valores tradicionais contribuiu para que governantes que usam esses discursos ascendessem no cenário político, onde encontraram solo fértil naqueles que sustentam essa realidade imaginada. O Bolsonarismo e Trumpismo são exemplos — não é à toa que o termo “marxismo cultural” ganhou bastante visibilidade no Brasil atualmente.
É possível vislumbrar leves semelhanças com o nazismo nesse aspecto mesmo que as estratégias desses grupos se apresentem através de novos conceitos. É bom relembrar que o nazismo não só disseminava o ideal de raça pura, mas também aplicava o mesmo critério de pureza às artes. Hitler passou a definir o que era a boa arte, a arte superior — que deveria ser um espelho de sua nação. O objetivo era fazer da Alemanha a melhor nação em força e beleza e, para atingir essa meta, até a arte deveria ser aprovada pelo Estado. Dessa maneira, era comum a repressão a artistas que faziam obras ditas como “degeneradas”.
Na época, o Modernismo revolucionou a arte trazendo uma nova perspectiva que fugia dos padrões estéticos da academia. Para o líder nazista, tratava-se de um movimento com a intenção de atacar os valores nos quais ele acreditava, destruir a beleza e fazer arte degenerada. Sua vontade de construir uma nação que alcançaria padrões de perfeição não deixava espaço para manifestações como essas, sendo consideradas uma ameaça ao futuro que o ditador pretendia construir. Dessa forma, o nazismo promoveu uma limpeza cultural sob a justificativa de que esses artistas degradavam a imagem da sociedade alemã.
Dito isso, pode-se ver certa semelhança com a aplicação do termo “marxismo cultural”, que é usado pela direita conservadora como forma de identificar e atacar uma determinada categoria de arte que não se encaixa em seus padrões. Da mesma forma que fazia o nazismo em separar a arte boa da degenerada, a categoria do marxismo cultural serve para os conservadores separarem a arte e o entretenimento "bom e saudável" daqueles que são nocivos e que pretendem destruir as bases da sociedade tradicional. É uma forma de identificar e atacar uma determinada categoria de arte que não se encaixa em seus valores e padrões.
No caso do nazismo, entretanto, a construção desse ideal de sociedade realmente foi posta em prática de forma agressiva — aqui vemos o perigo do totalitarismo, que tende a lapidar a cultura, as instituições e as práticas de uma coletividade a seu modo sem ponderar outras perspectivas.
Seguindo esse caminho de proteção das bases conservadoras da sociedade, o que se vê é a proliferação de discursos contra vários segmentos da sociedade, como homossexuais, simpatizantes da esquerda, feministas, imigrantes etc. Vemos, então, como uma categoria pode ser criada com o objetivo de destruir outras. Aqueles que acreditam na existência do marxismo cultural reúnem, num único grupo, as manifestações culturais que consideram uma ameaça ao seu estilo de vida e aos valores tradicionais da sociedade e passam a atacá-las. Assim, por exemplo, as discussões sobre orientação sexual — categoria de muito destaque recentemente — acabam suprimidas nessa visão onde a esquerda pretende implantar tais categorias nas artes, nos meios de entretenimento, nos meios de comunicação e no sistema educacional a fim de resultar numa mudança social que destrua os valores tradicionais formadores da “boa” sociedade.
Diante desses fatores, entende-se que esta categoria pode até mesmo gerar certa confusão. Analisando o caso do marxismo cultural, vê-se que a generalização aqui pode ser bem maior, visto que aqueles que acreditam nessa categoria podem simplesmente agrupar nela qualquer tipo de pensamento e expressão que destoa de suas percepções tradicionais. Sendo assim, qualquer indivíduo que pensa diferente correrá o risco de ser atacado, mesmo que sua intenção não fosse a de abalar as instituições e os valores tradicionais, como pensam os que creem nessa categoria.
Por conta disso, forma-se uma certa confusão por ser uma categoria utilizada não para tentar organizar as ideias e percepções que temos do mundo, mas sim para ser usada a favor da vontade daqueles que a criaram e a disseminam para atacar qualquer tipo de oposição.
Talvez o motivo da existência dessa categoria seja o fato de que a criação de um inimigo em comum é uma boa forma de fortalecer a cooperação de um grupo — no caso, os defensores dos valores tradicionais — e fazer com que seus indivíduos permaneçam unidos contra tal inimigo. Assim, mesmo que a ameaça do marxismo cultural não exista realmente, é importante, para aqueles que criaram essa categoria, mantê-la viva como forma de instigar os indivíduos a permanecerem unidos sustentando juntos os seus valores.
Dito isso, não há exatamente uma contribuição para uma melhor visão do mundo atual, trata-se apenas de uma teoria, uma especulação acerca de um suposto plano para desbancar o conservadorismo. O surgimento de uma nova categoria deveria servir para, por exemplo, organizar ideias ou delimitar um problema para que ele possa ser melhor discutido. Nesse caso, essa categoria delimita um problema que não se vê exatamente como uma ameaça à sociedade — a não ser àquela idealizada pelos ultraconservadores —, ela serve apenas para dividir ainda mais a sociedade em pólos conflituosos entre si.
Conclusão
Como vimos, essas categorias são criações coletivas que, a partir da adesão cada vez maior, ganham força e explicam situações que fogem a nossas capacidades e, assim como direitos humanos, por exemplo, que são vistos como fundamentos da sociedade, ideias que, como essas que defendem o fim do dito marxismo cultural, se propagam e podem nos levar a situações de autoritarismos e intolerâncias antes já vivenciadas.
É incongruente a forma como conseguimos alterar nossas estruturas sociais rapidamente e as categorias criadas para explicar ou falar sobre os problemas do mundo. Por exemplo, criamos o conceito de natural e não natural, ou tradicional e não tradicional para explicar nossos pensamentos e as ações de determinados grupos, a exemplo da homossexualidade, tida por muitos, ainda hoje, como comportamento antinatural.
Dessa forma, nós é que ditamos o que é natural na sociedade ou o que não é. Não nos apropriamos do conceito de natureza advinda da biologia, mas sim, de nossas visões e percepções de mundo através das categorias criadas para explicar o próprio mundo.
Assim como Nietzsche (1844-1900) escreveu sobre a inexistência de valores morais objetivos comparando o tema com um religioso que crê em realidades que não são realidades, sendo a moral, portanto, apenas uma interpretação de determinados fenômenos (COSTA, 2020), falta o conceito de real para aqueles que buscam formular categorias para desenvolver problemas atuais. Cremos em sentidos, em mitos compartilhados que mudam conforme o tempo e espaço.
Tudo isso nos leva à conclusão de que as categorias que criamos para explicar o mundo e, muitas vezes, dar respostas às questões que nos afligem, estão em constante transformação, de modo que não conseguimos chegar a uma resposta correta, podemos cair em equívocos, que se desenvolvem em conclusões erradas. Dessa forma, as categorias nem sempre auxiliam numa melhor compreensão do mundo, como pode se observar no caso do marxismo cultural.
Referências
COSTA, Alexandre. Nietzsche e a crítica aos valores absolutos. 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/nietzsche/. Acesso em: 24 fev. 2021.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6 ed. Tradução de Alexandra Figueiredo et al. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma Breve História da Humanidade. 29a Edição. Editora Harper, 2011.
SILVA, Michel Goulart da. Reflexões sobre o “marxismo cultural”. Boletim de Conjuntura. Ano II. Volume 1. Nº 3. Boa Vista. 2020. Disponível em: https://revista.ufrr.br/boca/article/view/MarxismoCultural/3004. Acesso em: 25 fev. 2021.