A velocidade da informação encontra-se em patamares nunca antes vistos em nossa sociedade. As mídias sociais permitiram que cada usuário seja autor e receptor de uma quantidade incontável de conteúdo.

Inicialmente, estudiosos encaravam esse fato com um tom otimista, uma vez que em uma época anterior à internet (pouco tempo atrás), a informação tinha um alcance limitado, o que implicava uma população alienada e refém do que os grandes meios de comunicação (especialmente a televisão) diziam ser a verdade dos fatos. Esse pensamento parecia ser bastante razoável à época, uma vez que, se a grande mídia detém o monopólio da informação, é evidente que somente aquilo que ela decida transmitir chegue ao conhecimento da sociedade.

Tal fato não se apresenta como um problema se os veículos detentores do monopólio da informação possuírem o compromisso de levar ao público todos os fatos apurados e não somente aqueles mais convenientes. Entretanto, em regimes ditatoriais, ou ainda, em regimes que têm grande influência sobre a mídia, o controle da informação é fundamental para sua manutenção. E é justamente aqui que entra o otimismo de estudiosos sobre o tema, uma vez que a internet abriu caminho para uma sociedade mais independente. Nessa perspectiva, Manuel Castells (2017) pontua que:

“Como os meios de comunicação de massa são amplamente controlados por governos e empresas de mídia, na sociedade em rede a autonomia de comunicação é basicamente construída nas redes da internet e nas plataformas de comunicação sem fio.” (p. 24) (nosso grifo)

E ainda:

“A autonomia da comunicação é a essência dos movimentos sociais, ao permitir que o movimento se forme e possibilitar que ele se relacione com a sociedade em geral, para além do controle dos detentores do poder sobre o poder da comunicação” (p. 26)

Percebe-se que, de certa forma, era esperado que “a autonomia” vislumbrada na sociedade em rede contribuísse para uma emancipação do indivíduo em relação aos grandes veículos de informação. Infelizmente, após alguns anos de uso e crescente relevância das mídias sociais na vida das pessoas, a autonomia dos usuários da rede levou também a uma ampla relativização das notícias e informações de modo geral, o que acarretou numa onda de fake news nunca antes vista.

Esse fenômeno contribuiu (e ainda contribui), dentre outros tantos fatores, para a existência da era da “pós-verdade”. A autonomia que as mídias sociais trouxeram de fato deu maior independência dos indivíduos em relação à grande mídia, mas também permitiu que, uma vez sendo cada usuário um potencial autor/transmissor de notícias, as pessoas pudessem escolher as informações mais convenientes, ou aquelas que mais atendem a suas concepções preconcebidas . É nesse sentido que se vê comumente nos dias de hoje ampla adesão a movimentos conservadores de convicções absurdas, como movimentos antivacina, terraplanistas, negacionistas científicos etc.

Na era da internet é possível que se encontre facilmente qualquer conteúdo, defendendo qualquer posicionamento, sem qualquer embasamento. A pós-verdade coloca no mesmo patamar a opinião e os pensamentos científicos. Por  isso, as pessoas podem “escolher” no que acreditar. Já em 2007, o empreendedor Andrew Keen alertava que apesar de a internet ter democratizado o acesso à informação ela também estava tornando nebuloso o limite entre fato e opinião.

Além disso, engana-se quem crê que o fenômeno da pós-verdade fica apenas no plano da crença pessoal. Vimos nos últimos anos diversos acontecimentos com impactos significativos no plano material. A eleição dos Estados Unidos da América, por exemplo, foi definida com estratégias de bombardeamento de fake news. Em documentário exibido na Netflix (The Great Hack - “privacidade hackeada”), Steve Bannon, ex-estrategista da campanha presidencial de Donald Trump, admite a contratação da empresa Cambridge Analytica para a alteração dos rumos da corrida presidencial por meio da ampla divulgação personalizada de informações (pouco importando se falsas ou não). Analisando como a “corrosão da linguagem está diminuindo o valor da verdade” no governo Trump, Michiko Kakutani, em seu livro “A morte da verdade”, assevera que:

“Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões.” (p. 12).

Uma outra forma de observar a questão da pós-verdade é sob a perspectiva da categorização. Como argumentam alguns filósofos, a linguagem faz a mediação do conhecimento sobre o mundo e o pensamento das pessoas. Nesse  processo de mediação da linguagem, a categorização, há uma inevitável perda de informação, pois a linguagem deve servir à  cognição humana, porém a capacidade dela é limitada. Esse processo de categorização, portanto, passa por uma seleção e um enquadramento de informações que, de certa forma, é selecionado e categorizado pelo intérprete da linguagem, de acordo com a sua conveniência.

Dessa forma,  o “científico” pode incorporar significados coerentes com a convicção ideológica do intérprete, como, por exemplo, imbuindo o significado do termo teoria da conspiração. Assim, a categoria passa a ter uma conotação completamente diversa do normalmente empregado. Entre outras palavras, a quantidade sem precedentes de informação possibilita uma gama variada de interpretação e categorização da língua, e, aliado ao fato de as pessoas possuem preferências e agendas próprias, possibilita uma intepretação do mundo bastante peculiar, ainda que essa seja altamente improvável.

Além da abundância da informação, a própria forma que a tecnologia vem aumentando a eficiência operacional também traz influências consideráveis na categorização da linguagem. A uberização fez com que o acionamento dos serviços ocorra através de uma interação com o aparelho celular, - não mais através de acenos na rua ou de ligações telefônicas -, a qual possibilita, no limite, obter serviços de transporte sem que haja um contato visual ou conversa com o prestador de serviço.

Dessa forma, o termo serviço fica cada vez mais distante da noção de algo que é prestado por um ser humano, e cada vez mais dotado de um significado mais mecânico, frio e simplificado. Da mesma maneira, o termo “prestador de serviço” fica cada vez mais desprovido de significado associado a uma figura humana. A desumanização da linguagem resulta na possibilidade de interpretação menos empática sobre a realidade do mundo, diminuindo a culpa ou remorso nos raciocínios, o que pode gerar resultados bastante danosos aos outros.

O emprego de informações convenientes e a desumanização na linguagem empregada para qualificar os “outros” possibilita uma folga na capacidade cognitiva para empregar para si uma significação da linguagem com carga emocional, complexificada e humanizada. O que falta de empatia para os outros é voltado com todo o carinho para si. Portanto, a grande autonomia de informação e eficiência operacional proporcionadas pela tecnologia, apesar de possibilitar uma emancipação e maior independência das pessoas sobre a informação, também possibilita a apropriação linguística provida de uma racionalidade bastante enviesada, simplificada e pouco empática em relação aos outros.

Não há, em princípio, formas óbvias ou simples de resolver essa situação. Não se pode esperar o alargamento da capacidade cognitiva do ser humano, nem se imagina que a autonomia da informação possa ser suspensa. Nesse contexto, a tendência é a busca contínua pela maior eficiência na produtividade humana, contudo isso não significa que todos esses fatores não possam resultar numa simplificação adequada e bem sustentada da linguagem, nem que toda a folga emocional e cognitiva seja voltada para somente para si. A situação possibilita o surgimento de grupos de pós-verdades, mas também equipa outros com instrumentos linguísticos que possam induzir mais pessoas para uma interpretação mais coerente e racional das informações disponibilizados nessa era contemporânea.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.

PRIVACIDADE hackeada. Diretores: Karim Amer, Jehane Noujaim. Estados Unidos: The Othrs, 2019

KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Editora Intrinseca, 2018.

KAKUTANI, Michiko. The Cult of the Amateur, The New York Times, 29 de junho de 2007. Disponível em: https://www.nytimes.com/2007/06/29/books/29book.html