Inicialmente, a modernidade se apresentou como uma reação racionalista ao tradicionalismo pré-moderno. A concepção de que as sociedades se formavam por uma ordem natural foi substituída pela noção de sociedades artificialmente estabelecidas. Nesse contexto, surgiram as primeiras teorias do contrato social, que buscavam estabelecer bases racionais para a estrutura social (COSTA, 2020).
Esse racionalismo exacerbado passou a ser questionado após a decadência dos movimentos coloniais que marcaram o período moderno. Por meio do contato com outras formas de sociedade, percebeu-se que o racionalismo moderno era fortemente calcado em tradições europeias. Como consequência, as teorias contemporâneas despontaram no historicismo, que busca relativizar qualquer valor de ordem tradicional (COSTA, 2020).
Outra noção trazida pela modernidade que marca a contemporaneidade é a valorização da liberdade individual (COSTA, 2020). Benjamin Constant, em seu texto “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, aponta que enquanto a liberdade dos antigos, representados pelos romanos, consistia na participação política direta, abrindo-se mão de toda a individualidade em nome da autoridade, a liberdade dos modernos reside na ideia da não intervenção estatal na vida privada. Desse modo, o indivíduo moderno valoriza a sua intimidade.
No entanto, esse indivíduo encontra-se obrigado a delegar parte de sua participação política para poder desfrutar de sua vida privada. Nesse sentido, a liberdade individual dos tempos modernos também é limitada pela autoridade, pois existe a necessidade de abrir mão de várias decisões políticas que atingem interesses pessoais.
Nos países colonizados, a modernidade impôs-se de outro modo, pois as tradições européias se fizeram sentir fortemente. Na obra “Cidadania no Brasil: o longo caminho”, José Murilo de Carvalho compara a construção da cidadania no Brasil com a da Inglaterra, analisada por T. A. Marshall. Em sua comparação, o historiador aponta que, à diferença da Inglaterra, os primeiros direitos a surgir no Brasil foram os direitos sociais, fato que desafia a concepção do autor britânico de que a cidadania plena seria um fenômeno histórico necessário.
O autor defende que a cidadania está entrando em crise, inclusive nos países onde já estaria estabelecida, devido ao enfraquecimento dos Estados. Assim, o surgimento de instituições internacionais, como os blocos econômicos, atrofiaria a autoridade estatal (CARVALHO, 2002). Portanto, a autoridade que o indivíduo moderno delegou ao Estado em nome de sua liberdade, encontra-se em processo de dissolução.
A entrevista com o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han é uma reflexão sobre essa situação que vivemos atualmente. Quando a autoridade que opera sobre o indivíduo está tão diluída como a atual, abre-se espaço para um movimento autoexploratório. Portanto, a liberdade contemporânea consiste na ideia de que tudo é possível quando há esforço próprio. Como aponta o filósofo, essa visão é extremamente danosa às relações trabalhistas.
Essa invisibilização do papel de subordinação faz com que o mercado de trabalho seja cada vez menos regulado. De acordo com o sociólogo Robert K. Merton (1968), a falta de regulação trabalhista faz com que o trabalhador acredite que fracassou ou sucedeu em razão de sua sorte, pois há uma dissociação entre esforço e resultado. Portanto, os sujeitos contemporâneos têm muita dificuldade em enxergar o seu papel e os limites da estrutura social em que estão inseridos.
Na atual conjuntura, observa-se que a sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são, de fato, livres, já que elas constantemente produzem novas coerções. Sendo assim, mesmo em uma sociedade na qual o indivíduo se sente livre até mesmo para buscar tempo para o lazer, percebe-se que a dialética de senhor e de escravo (HEGEL, 2002) não se encontra em última instância, pois, na sociedade do trabalho, até o próprio senhor se transmuta em escravo do trabalho, ainda que não perceba.
Além disso, conforme preconiza Han (2015), as novas maneiras de expressão de ser sujeito estão vinculadas a uma positividade que abandona, inclusive, a negatividade essencial e o espaço para os contrastes nas relações humanas. Diante da ausência de alteridade, percebe-se que a mesmice e falta de singularidade possuem predomínio tanto em relação ao mercado quanto em relação ao próprio ser sujeito. Illouz (2011) destaca essa positividade veemente ao delinear sobre a disseminação de uma cultura terapêutica, a qual é tratada como uma maneira de instruir as relações, a fim de torná-las melhores e mais positivas, em consonância com a própria tendência de mercado.
Nesse sentido, convém mencionar que o individualismo, que permeia a lógica contemporânea, resultou em aspectos negativos tanto para a sociedade quanto para a educação, haja vista que a perspectiva do “ser” um indivíduo melhor transformou-se na lógica do “ter”, como possuir a melhor vaga de emprego, ganhar o melhor salário e ser o mais bem sucedido da família/grupo de amigos, o que implica benefício a um seleto grupos de pessoas que se tornam “melhores” e possuem mais privilégios do que outras, traduzindo uma sociedade capitalista que fomenta o “ter” em detrimento do “ser”.
Por outro lado, ressalta-se que alguns indivíduos até almejam sair dessa “teia capitalista”, no intuito de encontrar o conhecimento, de modo que é possível até se falar em uma sociedade mais aberta e que questiona o que vem pronto e acabado.
Todavia, trata-se de uma minoria, posto que os indivíduos, em sua maior parte, continuam “presos” e manipulados pela sociedade capitalista a qual manipula em massa através dos veículos de informação da grande mídia e das novas tecnologias. Isso acontece de forma direta e indireta, sendo importante destacar que algumas vezes o indivíduo nem sequer percebe tal manipulação, pois ela é implícita. Relativamente à dominação, nota-se que ela se estabelece de forma mais indireta ainda, visto que a classe dominante a impõe através da televisão, da internet, das redes sociais, das formas de vestir, de falar e de se comportar. O individualismo, portanto, revela-se presente em todos os aspectos da vida, e tem, inegavelmente, causado problemas sérios para a humanidade. (DUMONT, 1992).
Em “Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord discorre sobre a decadência da arte no modelo capitalista atual. De acordo com o autor, a monetarização de praticamente todos os aspectos da vida social teve um efeito nefasto com relação a esse meio. Os produtos destinados ao entretenimento tomaram o lugar crítico que antes era relegado à arte e se tornaram mais um meio de manipulação e massificação.
Os países subdesenvolvidos que, em sua maioria, resultaram de experiências coloniais são especialmente atingidos por essas mazelas relegadas pela modernidade. A hegemonia da cultura europeia se fez à custa da cultura local de uma série de outros povos, que foram obrigados a se adaptar a um modelo desenvolvimentista que não lhes conferiu quase nenhuma oportunidade de suceder. Portanto, a cultura desses povos foi marcada por um epistemicídio que as obrigou a se construírem a partir de movimentos de resistência (FANON, 1968).
Em suma, a modernidade foi um período de expansão para a cultura européia, que se desprendeu de algumas concepções naturalistas para dar origem ao racionalismo. No entanto, essa expansão se deu às custas da tradição de outros povos que foram apagadas em nome dos ideais coloniais e centralizadores. Seu legado é um modelo de sociedade exploratório altamente individualista que caminha para uma homogeneização automatizada.
REFERÊNCIAS:
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Porto Alegre: L&PM, 1982.
COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
DUMONT, Louis. Ensaios sobre o Individualismo: Uma perspectiva antropológica sobre a ideologia moderna. Dom Quixote, 1992.
FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1997.
GELI, Carles. Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. El País, Barcelona, 07 de fev. de 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html>. Acesso em: 16 de set. 2020.
HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Edição revisada, Vol. único. Petrópolis, Vozes, 2002. Capítulo IV- Independência e Dependência da Consciência-de-si.
ILLOUZ, E. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MERTON, Robert K. Social Theory and Social Structure. Nova Iorque: The Free Press, 1968.