A ideia de soberania enquanto conceito político nasce junto com o Estado Moderno, já que é fator essencial para a unificação da administração e o desenvolvimento da noção de nação. Historicamente, uma de suas primeiras manifestações se deu quando da assinatura do Tratado de Vestfália, assinado em 1648 após a Guerra dos Trinta Anos, no qual ficou determinado, dentre outros pontos, o direito à liberdade de religião. Conforme o Estado foi se desenvolvendo e ocorreu a unificação do poder sob a figura do Rei, consequência da crise do feudalismo, a noção de soberania começou a se consolidar.

A soberania nada mais é que a manifestação do poder de um país e está atrelada à sua capacidade de defender fronteiras, manter a paz interna e afastar interferências externas em assuntos particulares daquele país. Quando um poder é soberano, isto significa que não há outro superior a ele. Ela pode ser considerada pelos seus aspectos interno e externo.

O primeiro corresponde à todas as forças dentro de um país que disputam a autoridade, ameaçando a atuação daquele governo vigente. Na realidade brasileira, o crime organizado e as milícias são exemplos de ameaças à soberania interna do país. Além deles, pode-se observar um exemplo claro do combate a este tipo de ameaça no artigo 5º, inciso XVII, o qual garante a liberdade de associação para fins lícitos, mas veda aquela para fins paramilitares.

Já a soberania externa corresponde à atuação de um país frente ao cenário internacional de forma autônoma e que se faça respeitar pelos poderes também soberanos dos outros países. A soberania de uma nação não lhe dá a liberdade de sobrepujar a dos demais, uma vez que este conceito vem para tentar garantir uma convivência pacífica e orientada pelo respeito entre as nações. Assim, quando um Estado se impõe sobre o outro de forma autoritária, seja por meio de força militar, organizações terroristas ou mesmo quando, “em nome da liberdade”, interfere naquela democracia, ele está representando uma ameaça direta à soberania daquele país.

No Brasil, a soberania sempre esteve incluída implícita ou explicitamente em todos os textos constitucionais. Na atual Constituição Federal de 1988, ela é apresentada logo no artigo 1º, inciso I, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;

Mesmo frente a todos os mecanismos constitucionais elaborados para garantir a soberania popular, ainda presenciamos diariamente tomadas de decisões que não parecem condizer com a tal “vontade do povo”. Voltando à visão dos clássicos da teoria constitucional, o revolucionário SIÈYES afirma que:

“A nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei”.

Entretanto, como mensurar essa vontade popular frente a sociedades extremamente complexas quanto às contemporâneas? Como unificar um desejo de um povo, se esse povo é composto por indivíduos tão díspares, que possuem interesses, às vezes, até opostos? A questão em voga, então, é qual a veracidade da então nomeada “vontade do povo”, e qual vontade é essa que foi selecionada como a mais importante e digna de validação?

Em uma nação, não somente temos um emaranhado de ideias divergentes, como há diversos instrumentos criados com o intuito de manipular as ideias alheias.  Atualmente, são inúmeros os mecanismos existentes para o convencimento do próximo. Inicialmente elaborados com propósitos comerciais, as propagandas e as insinuações de ideias políticas se tornaram uma realidade.

A fragilidade das vontades de um indivíduo no presente contexto contemporâneo é claramente demonstrada pela alta das chamadas fake news.  A disseminação de fake news, hoje mais do que nunca, é um fenômeno que anda movimentando verdadeiras massas ideológicas ao redor do mundo, influenciando diversas pessoas e levando-as a acreditar em algo que nem verdadeiro é.  A manipulação através do oferecimento de informações é tal que grandes grupos de pessoas se encontram verdadeiramente alienadas a ideias que não condizem nem com o seu próprio bem.

Um exemplo disso são as mulheres que pregam contra o feminismo. Ou negros que defendem inexistir o racismo. Assim, seja por influências externas, seja por concepções próprias, a alegação de uma vontade una de um povo é utópica. O aspecto moldável das convicções, portanto, enfraquece toda a base fundamentadora do chamado Poder Constituinte Originário, que é tido como via direta do desenvolvimento da “vontade do povo” no topo do nosso ordenamento jurídico, a Constituição Federal.

Nota-se que o discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, o discurso constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir a sua origem. Portanto, ao concluir que inexiste uma vontade integral do povo, o desafio é buscar um Poder Constituinte que expresse a vontade de parcelas expressivas do povo nacional.

Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da Constituição, assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão da sociedade civil organizada.

Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível que as manifestações do jogo de forças sociais sejam legitimamente exercidas. É fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica seja minado ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.

Entretanto, não é a situação fática observada no Brasil. Por se tratar de uma democracia representativa têm-se representantes do povo que discutem, dentro da esfera do legislativo, e aprovam leis em nome do povo. Esse tipo de sistema, a primeira vista, demonstra-se bastante democrático, porém o que realmente ocorre é a representação de seus eleitores e não do numero total do povo, principalmente ao analisar o sufrágio universal na escolha do chefe do executivo.

Tocqueville demonstra as falhas da democracia americana ao criticar o dogma internalizado da soberania popular. Para o autor, os países americanos aceitam a democracia de forma tão irracional que os levam a aceitar inclusive a tirania da maioria. Este fenômeno é percebido ao analisar a estrutura da tomada de decisões dos três poderes que buscam agradar a maioria, que se difere do povo soberano. O povo soberano é todo aquele que vive em uma nação, enquanto a maioria é 50% + 1 do povo soberano e é esta mesma maioria que detêm objetivamente o poder. (TOCQUEVILLE, 1988)

A maioria elege seus representantes no poder legislativo, os quais devem legislar de acordo com a maioria, ignorando a outra parcela da população. No poder executivo o fenômeno se repete. A decisão de 50%+1 da população se sobressai em favor dos 49% restantes, portanto o chefe do executivo eleito comanda o país em nome da maior parcela da população, o que não é sinônimo de povo. Assim sendo, observa-se que as minorias populares ficam sem representação dentro dos poderes, causando assim uma repressão das minorias sociais denominado a tirania da maioria. (TOCQUEVILLE, 1988)

Deste modo, sob a ótica da tirania da maioria, mesmo dentro da democracia não é possível observar uma efetiva soberania do povo fora do poder constituinte originário, principalmente em um país cada vez mais desacreditado da politica, onde a capital brasileira é estereotipada como a casa dos corruptos. Em 2018, as eleições para presidente da república tiveram um resultado de 55,18% contra 44,87% no segundo turno; seguindo a lógica de Tocqueville, como um presidente rejeitado por mais de 40% da população pode decidir sobre o futuro de 100% da população brasileira? Nas eleições estaduais não foi diferente, estados como São Paulo, Rio grande do sul e Amapá também tiveram resultados parecidos com o 50% VS 40%.

Todavia, no artigo 14 da constituição federal o constituinte de 1988 assegurou formas diretas de participação popular no processo decisório brasileiro pelo sufrágio universal mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular, mas será que é suficiente para garantir uma efetiva soberania popular?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat) organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986, pp. 141-142.

KELSEN, Hans. Teoria Geral da Normas (Allgemeine Theorie der Normen), tradução e revisão de José Florentino Duarte, Editora Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, RS, 1986.

DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução, Rio de Janeiro, Editora Rio sociedade cultural Ltda., 1978.

PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno, Volume 1, 6 edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1983.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Segunda Parte - IV, V, VII, VIII.

SOBERANIA: saiba tudo sobre o conceito. Politize!, 2019. Disponível em https://www.politize.com.br/soberania/ . Acesso em 03 de abril de 2021.

Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 03 de abril de 2021.