Autores: Felipe Rosa Lima e Paulo Alves de Santana Neto
É bastante comum diante de insatisfações quanto à condução em torno da política ou mesmo em meio a decisões questionáveis numa pandemia ouvir parte da sociedade fazer referência ao poder do povo. Atualmente, criticar a decretação de fechamento de estabelecimentos comerciais, a restrição de circulação de pessoas, a determinação de que tipos de atividades são ou não essenciais, nos coloca diante do seguinte questionamento: até que ponto o povo exerce o poder soberano num estado tido por democrático de direito, consoante o disposto no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal?
Para responder à pergunta, recorremos a Montesquieu, que propôs a ideia dos poderes harmônicos e independentes (executivo, judiciário e legislativo) como solução para os desmandos do poder absolutista.
Habermas (1997) contribui no entendimento do funcionamento do Estado Democrático de Direito. O autor descreve como o poder se institucionaliza e como este pode ser apropriado numa concepção procedimentalista de democracia. Analisando a tensão entre facticidade e a validade do direito, Habermas elucida a formação do poder gerado comunicativamente em poder político. A divisão de Montesquieu, nesse sentido, divide o poder político isolando o Estado de outras forças da sociedade. Ainda que funcione no plano normativo, ou seja, no critério de validade do exercício desse poder, a divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário ignora importantes pontos factuais. O primeiro é a origem desses poderes no agir comunicativo, que rompe com a circularidade entre "o poder do Estado existe porque é do Estado". O poder político é institucionalizado no Estado, mas o Estado não gera a si mesmo. Os poderes legislativo, executivo e judiciário são uma forma de institucionalizar o poder político, que é anterior ao Estado, mas se institucionaliza nele. O segundo ponto factual que não corresponde a essa divisão é a presença de outros poderes atuando sobre a sociedade e sobre o Estado. Essa atuação acontece na instrumentalização do sistema econômico e do sistema político sem uma racionalização correspondente. Ou seja, a influência que o dinheiro, a burocracia e os grupos de interesse fortes podem exercer no funcionamento dos poderes do Estado, independente de sua divisão em legislativo, judiciário e executivo.
Ainda assim, a proposição dessa divisão dá suporte ao sistema de freios e contrapesos, que permite a um poder vigiar o outro sem, contudo, um sobressair-se ao outro, embora em alguns momentos haja um desequilíbrio dessa balança. Por essa perspectiva é possível enxergar nas entrelinhas que as instituições passam a ocupar papel relevante na discussão.
Numa concepção deliberativa de democracia (Habermas, 1997), a construção de uma sociedade democrática está relacionada à qualidade dessa discussão e como ela é institucionalizada continuamente. Na situação em que o poder político é institucionalizado em poderes legislativo, executivo e judiciário, a sua procedimentalização precisa garantir que as instituições funcionem de acordo com o entendimento sobre o qual foram criadas.Elas instrumentalizam o sistema político.
Apesar disso, nenhuma delas, individualmente, pode assumir posição de protagonista, afinal, num estado democrático de direito o poder não é ocupado por um só, mas sim, passa a ser responsabilidade de todos.
O fluxo em que o poder comunicativo, difuso na sociedade civil, se institucionaliza como poder político, administrativo e normativo, também passa a ser de responsabilidade para manutenção da democracia, na sua concepção procedimental.
O art. 14, caput, da CF, afirma que a soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto. Nesse ponto, nota-se que há a transferência do poder para a figura dos políticos (legislativo e executivo).
A transferência do poder é a institucionalização desse poder. O poder comunicativo se reveste de uma forma jurídica e pode ser exercido pela via normativa ou administrativa.
A articulação da soberania do povo com a soberania do Estado, para a Hobbes, é feita através da ideia de indivíduos isolados (como no voto) que não dispõem de poder suficiente, ao mesmo tempo que do seu poder deriva o poder do governante. A capacidade de autodeterminação do indivíduo surge no contratualismo como autonomia da vontade individual, somente afetada pela própria vontade livre do indivíduo ou por imperativos de sua consciência, também entendida individualmente. A projeção dessas características para a organização social introduz a soberania como realidade política juridicamente constituída. A concepção corporativa da sociedade prepara o terreno para que a realidade social (e histórica) seja substituída por uma realidade jurídica e a soberania assume o peso de constatação ou necessidade, ao invés de projeto ou solução política.
Na visão de Bodin, a soberania configura-se como um poder perpétuo e absoluto. No entanto, a democracia, ainda que não seja perpétua e absoluta, busca sua longevidade e seu aperfeiçoamento ao estabelecer um fluxo racional do poder entre sociedade e Estado, tendo suas raízes nos poderes próprios da reprodução material e imaterial da sociedade.
A ideia de governo “do povo, pelo povo e para o povo” implícita nas Constituições de diversos Estados democráticos mundo afora toma por base a construção de Rousseau de que para uma sociedade ter um convívio harmônico é necessário que o povo eleja seus representantes, os quais representarão a “vontade geral” do conjunto dos seus membros.
Segundo Habermas (1997) o nível discursivo do debate público constitui a variável mais importante para a política deliberativa e este não é garantido apenas pela procedimentalização democrática, como no voto e no processo legislativo. A formação da vontade pública ocorre junto à formação da opinião pública, em esferas formais e informais. Um exemplo concreto, apesar de distópico, é a influência de fake news no debate público, nas conversas informais, nos aplicativos de mensagens, e, por fim, na definição de eleições no mundo à fora. Esse processo de formação da "vontade geral" não acontece fora dessa arena política.
Isso nos permite chegar à conclusão que numa democracia nenhum poder é soberano. A soberania compõe um dos três elementos para que se constitua um Estado, juntamente como os demais (povo e território) e é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Se não for do povo, a soberania não garante a democracia. No Estado Democrático de Direito a soberania se estabelece como possibilidade do povo dizer o seu direito e realizá-lo. Em outras palavras, um direito que possa ser válido e factual.
Referências Bibliográficas
BODIN, Jean. 1992. On sovereignty: four chapters from Six Books of the Commonwealth. Cambridge: Cambridge University Press.
COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: da la antigüedad a nuestros dias, Madrid: Trotta, 2001, p. 75
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.