As relações na sociedade contemporânea são marcadas por constantes “diálogos” entre aspectos tradicionais e modernos. De certo modo, esses aspectos nos situam em uma modernidade quase que tradicional, ou em uma tradicionalidade com roupagem moderna. Alguns aspectos dessas relações podem ser notados numa clássica narrativa, que será explorada a seguir.

A história se passa no século XVI, em uma praça de Sevilha — Espanha, ainda anuviada com as cinzas que se precipitavam em virtude da grande mortandade ocorrida na noite anterior, quando as fogueiras da inquisição católica haviam purgado da sociedade umas centenas de hereges, no movimento da contrarreforma, ou reforma católica. Nesse cenário, surge Jesus Cristo, não da forma como ele ainda há de vir, como descrito nos evangelhos e cartas apostólicas, “sobre as nuvens do céu com poder e muita glória”(BÍBLIA, 2002, Mt 24, 30), mas como da primeira vez que veio, da maneira como andou entre os homens durante seu ministério público de três anos e meio.

Cumpre esclarecer que o enredo descrito, evidentemente fictício — não pela matança indiscriminada dos ditos hereges e nem mesmo pela personagem emblemática, mas pela união de tudo isso —, faz parte de um capítulo de Os Irmãos Karamazov, célebre e derradeiro romance de Fiódor Dostoiévski. O capítulo intitulado “O Grande Inquisidor” retrata um diálogo entre dois irmãos: Ivã, o mais racional e inteligente, e o caçula Aliocha, religioso e pertencente a uma ordem monástica. Ivã descreve a Aliocha a narrativa do grande inquisidor como que a criar um poema.

Em sua aparição, Jesus curava os doentes de Sevilha, ressuscitava mortos e fazia brotar nos corações que o viam uma felicidade indizível. Mas não no coração do grande inquisidor. Ao ver Jesus e os milagres que realizava, o inquisidor “franze as espessas sobrancelhas” e ordena aos seus guardas que o prendam e joguem-no no calabouço. A multidão não oferece resistência, ainda que haja poucos instantes estivesse quase que disposta a proclamá-lo rei.

Aqui já se faz mister analisar a posição inerte da sociedade frente a certos discursos autoritários, tanto no passado tradicional quanto no presente tido como moderno. É bem verdade que o surgimento de diversos movimentos sociais na atualidade tem acendido o debate e dado voz a grupos e atores sociais tidos como minorias. Mas quando se olha a sociedade como um todo, ainda se percebe o silêncio, como se as muitas vozes se anulassem.

Talvez em suas casas, nas rodas de amigos na taberna ou no trabalho no campo, as pessoas tenham passado a comentar a injusta prisão do Cristo. Mas as ruas permaneceram em silêncio. O sociólogo, cientista político e escritor Sérgio Abranches, ao comentar o contraste entre a completa insatisfação popular com o então presidente Michel Temer e a perpetuação de seu governo, traz esse paradoxo como resultado de uma insatisfação popular que se mantem na esfera do privado, não ganha o espaço público e não se transforma em movimento (ABRANCHES, 2017).

A nossa história continua. É de noite, no calabouço, que se desenvolve o diálogo, ou melhor, o monólogo, entre o grande inquisidor e Jesus Cristo, que palavra alguma profere até o fim da história. E nesse monólogo se desenvolve uma narrativa cheia de perguntas e declarações que ecoam até mesmo na nossa dita modernidade, que ainda se orienta por seus “critérios transcendentais, de valores absolutos, de uma natureza humana imanente e de uma racionalidade objetiva que dependem da existência de uma ordem natural imanente” (COSTA, 2020).

Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira [sic]. (DOSTOIÉVSKI, p. 6).

Essa inquietante declaração de um prelado da igreja ao próprio Jesus Cristo, a quem esta mesma igreja afirma representar, é de causar espanto. Só não é mais espantosa em virtude de se dar em um calabouço escuro no qual o preso encontra-se por ordem dessa mesma autoridade eclesiástica que momentos atrás o proibira de falar palavra.

A narrativa se desenvolve em torno das acusações do inquisidor contra Cristo, que teria cometido um erro terrível ao não ceder às tentações a ele oferecidas no deserto pelo Diabo (cf. BÍBLIA, 2002, Mt 4, 1-11). Ao se negar a transformar as pedras em pão, teria Jesus alijado o homem do milagre. Ao se negar a jogar-se do pináculo do templo, demonstrando que era o filho de Deus, teria negado o revelar do mistério. E enfim, ao se negar a aceitar o domínio de todos os reinos da terra, que receberia ao se prostrar perante o Diabo, teria Cristo negado à humanidade a sua autoridade.

Num outro diapasão, o filósofo francês Frédéric Gros afirma que podemos perceber a tentação do pão como o assédio dos bens materiais, tendo relação com a atual esfera econômica. Já na tentação de se jogar do templo, num ato de aferição de sua própria divindade, estaria Jesus diante da possibilidade de verificar o enunciado que dizia que ele era o filho de Deus, o qual poderia ser comprovado por meio da execução da proposta do Diabo. Logo, podemos entender que essa segunda tentação se relaciona à esfera da ciência, da formulação de uma tese e da verificação empírica dessa tese, por meio da prova. A terceira tentação, mais logicamente, está relacionada à política, uma vez que o tentador oferecera a Cristo o domínio de todos os reinos da Terra (GROS, 2011).

Dessa forma, teria Jesus a chance de ter dominado o homem (i) ao oferecer-lhe o pão e os bens materiais que este busca incessantemente; (ii) ao oferecer-lhe a prova de sua divindade e franquear a vista de todos seu miraculoso resgate pelos anjos dos céus; e (iii) ao oferecer-lhe o seu santo governo com autoridade sobre todos os reinos da Terra. Mas Jesus oferecera em troca do pão, a palavra; em troca da prova, a fé; e em troca da autoridade, a liberdade de servir.

Para o grande inquisidor, Jesus teria colocado o homem em estima elevada por demais, ao julgar que a humanidade poderia ser livre a ponto de exercer uma crença responsável nele, independentemente do milagre, do mistério e da autoridade. Mas Jesus estava dizendo que o seu reino não era fundado nos bens materiais, na ciência e na necessidade da prova, e nem na autoridade política deste mundo. Em suma, Cristo não cedeu às tentações com o objetivo de libertar o homem da escravidão que essas coisas causam, buscando dele uma adoração livre e consciente.

Foi para corrigir esse grande erro, nas palavras do grande inquisidor, que a igreja católica teria trabalhado incessantemente por quinze séculos e teria alcançado pela primeira vez, desde então, por meio da santa inquisição, um estado de felicidade real para os homens.

Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas? (DOSTOIÉVSKI, p. 7).

Na atualidade, também vemos crescer na sociedade um senso de liberdade. O homem se vê cada vez mais livre e mais capaz de desfrutar dessa liberdade plenamente. No entanto, por mais modernos que nos consideremos, nossa modernidade ainda abarca em seu seio o trabalho escravo, o preconceito de raça, sexo e orientação sexual, a intolerância religiosa e a desigualdade — todos opostos da liberdade. É, mais uma vez, a modernidade tradicional. Por mais que nos designemos como livres, em essência não podemos nos sentir realmente livres.

Os homens “são, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes?”, questionou o grande inquisidor em face de sua tradicional sociedade medieval (DOSTOIÉVSKI, p. 7). Talvez, se hoje estivesse a contemplar a sociedade da modernidade, fizesse a mesma pergunta. Somos hoje “uns revoltados” com o sistema, com as instituições, com a sociedade.

Os governos, no entanto, se apresentam para sanar nossas inquietudes. Como a nossa Roma Católica, nos oferecem a feliz escravidão do milagre, do mistério e da autoridade. O pão nos está garantido, conquanto nos submetamos. No Brasil, essa garantia é inclusive fundamental, pois no nosso contrato consta explicitamente que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação [...]” (Constituição Federal, 1988. Art. 6º, caput). Sorte a nossa!

Por meio de políticas necessárias, porém ineficientes, vemos governo após governo, como que numa releitura do Panem et Circenses, a entreter o povo com seus escândalos e bandalheiras, enquanto oferece as migalhas que caem da mesa por meio dos programas sociais. Parece haver um apego excessivo à literalidade de “o pão nosso de cada dia” (BÍBLIA, 2002, Mt 6, 11), falta uma visão de longo prazo, beirando a imitação do milagre do pão no deserto, do maná, que caía da parte Deus e não podia ser guardado para o dia seguinte (cf. BÍBLIA, 2002, Ex 16, 14-21). É criada assim uma dominação econômica do Estado, que detém todos os meios, repartidos em grande medida com poucos e em menor medida com muitos.

De outro lado, ao passo que Jesus, que era Deus, não cedeu a segunda tentação de se afirmar e se confirmar como tal, não nos faltam os cristos modernos. Políticos que nos prometem a salvação, bastando para tal demonstrar nossa fé por meio do voto. Mais recentemente, no Brasil, ganhamos um verdadeiro Messias, que prometia ser o guerreiro capaz de derrotar o grande dragão vermelho, mas que vem se mostrando ser mais um lobo em pele de cordeiro, se bem que sua capa já tenha há muito caído.

Na obra de Carl Schmitt intitulada catolicismo romano e forma política, o autor, ao querer demonstrar a superioridade do político sobre o econômico, afirma que este tem a sua razão própria e uma veracidade absolutamente material, pertinente apenas às coisas, enquanto aquele seria superior e imaterial, ocupando-se de outros valores além do econômico. Por essa razão, ele afirma que o catolicismo é eminentemente político (SCHMITT, p. 14).

Atualmente, em plena pandemia da Covid-19 que assola o Brasil na maior onda de mortes e contaminações da série histórica, podemos ver a rebeldia renitente do pensamento político não apenas em relação ao pensamento econômico, mas em relação à ciência como um todo. A despeito das orientações e recomendações das autoridades médico-científicas, nossos dirigentes parecem não querer encarar que as soluções para a atual crise médico-sanitária devem ser dadas pelos médicos e sanitaristas. Vemos um governo como que a saltar uma nação inteira do pináculo do templo, esperando que um milagre nos salve e confirme a messianidade do dirigente do país.

Além do pão e dos saltos de fé que nos apresentam, nossos governos também nos oferecem a benção de sua autoridade. A igreja católica ao menos se avocava como a representante do próprio Jesus, com procuração outorgada com plenos poderes e irrevogável. Já nossos governos se baseiam no contrato social firmado entre eles e nós, a sociedade. Contrato esse de adesão, com diversas letras miúdas, que assinamos ao nascer marcando um “x” numa caixinha e clicando em “Aceitar”. Fico a pensar se esse tal contrato social passaria no crivo do moderno Direito do Consumidor.

De fato, a dominação do Estado sobre os indivíduos parece ser tal qual a dominação do senhor para com seu escravo na antiguidade. Para Hobbes, a escravidão estaria fundada no consentimento autônomo do servo, expressado por meio de um suposto contrato de consentimento. A legitimação da escravidão pelo consentimento poderia até mesmo explicar e justificar a soberania atual dos governos na autonomia individual (COSTA, 2020).

Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. (Dostoiévski, p. 7).

Como escravos de contrato passado, em nossa modernidade tradicional, estamos todos submetidos ao império do milagre, do mistério e da autoridade dos governos. Assim como o grande inquisidor do passado, nosso governo nos mantém contentados, felizes como nunca dantes. Só nos resta nos entregarmos por completo e com um beijo selarmos nosso destino. Diferentemente do ósculo de Jesus, nosso beijo deverá ser mais longo, mais intenso, incapaz de nos livrar da cela e de queimar o coração de aço de nosso grande inquisidor do século XXI, mas igualmente incapaz de dissuadi-lo de sua ideia.


Referências bibliográficas:

[1] ABRANCHES, Sérgio Henrique. O Silêncio das Ruas. Sérgio Abrantes, 2017. Disponível em: https://sergioabranches.com.br/sociedade/164-o-silencio-das-ruas. Acesso em 14/03/2021.

[2] BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.

[3] CONSTITUIÇÃO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[4] COSTA, Alexandre. Direito e Modernidade. Arcos, 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/direito-e-modernidade/#1-4-os-h-bridos-da-modernidade-e-se-jamais-tivermos-sido-modernos. Acesso em 14/03/2021.

[5] DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. Disponível em: https://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/08/dostoievski-o-grande-inquisidor.pdf. Acesso em 14/03/2021.

[6] GROS, Frédéric. A Lenda do Grande Inquisidor: A Noite das Crenças. ArtePensamento - Ensaios filosóficos e políticos, 2011. Disponível em: https://artepensamento.com.br/item/a-lenda-do-grande-inquisidor-a-noite-das-crencas/. Acesso em 16/03/2021.

[7] SCHMITT, Carl. Catolicismo romano e forma política. Tradução de Menelick Carvalho Netto. Manuscrito não publicado.