Autor: Paulo Alves de Santana Neto

 A última eleição presidencial, no Brasil, ficou marcada por um fenômeno, muito provável de se repetir em 2022: a difusão das fake news. O amplo acesso às redes sociais aliado à baixa educação da população brasileira intensifica esse fato que atinge também pessoas com níveis de educação em grau mais elevado. Num cenário como esse, em que as notícias se espalham com tamanha rapidez, a busca pela verdade não raro acaba exercendo papel secundário, ficando relativizada. Como consequência da perda de referência, resta a opção de duvidar de tudo, afinal, as informações que chegam até nós podem ter sido manipuladas.
Esse ceticismo transforma-se num escudo, pois se nem tudo que está ao nosso redor é verdade ou se existem várias verdades, posso escolher a que melhor se adéqua a minha realidade.



 No Brasil, a desconfiança com a classe política não é de hoje. As promessas dos candidatos em tempos de eleição não resistem aos primeiros meses de mandato. E a esperança depositada em candidatos que representam a mudança, logo é transformada em desilusão e os interesses dos políticos distanciam-se dos da população. Nesse sentido, as pessoas não se sentem representadas pela classe política.

 Essa dissonância entre governantes e governados não é nenhuma novidade do século XXI, tanto que Carl Schmitt já observava em sua época a divergência manifesta entre a vontade do povo e a ação do governante. Isso colocava em xeque a soberania popular, problema este que deveria ser discutido na Teoria Constitucional, haja vista a ausência de identidade entre esses dois polos. Como forma de solucionar essa situação, Schmitt defende uma democracia em que o governante consiga concentrar carisma, porém, seja firme o bastante para impor as regras que deveriam ser seguidas. Dessa forma, conseguiria unificar o país e governar o povo sem grandes percalços. Nessa linha de pensamento, para criar essa conexão entre o governante e o povo adotou-se a crença de que aqueles que compartilhavam das mesmas ideias seriam os amigos (em novilíngua , os cidadãos de bem), e o contrário desses seriam os inimigos da nação (desse lado ficam os comunistas, petistas, gayzistas, até mesmo os artistas).

 Analisando-se alguns padrões da jovem democracia brasileira percebe-se que, de tempos em tempos, alguns problemas são criados ou ganham maior notoriedade e a solução de tais problemas é fundamental na disputa eleitoral e nos rumos políticos do país.

 Em 1994, o grande mal da nação era a inflação, para solucioná-la nada melhor que eleger o ex-Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, que atuou na criação do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso. Seu governo trouxe estabilidade econômica para o país e, por isso, foi reeleito em 1998. Nos anos que seguiram, o desemprego tornou-se o grande mal da nação. Nesse contexto, em 2002, ninguém melhor do que um ex-sindicalista, que conhece o chão de fábrica, para trazer empregos aos jovens que compõe a população economicamente ativa. Reeleito em 2006, Lula deixou o governo com índice de aprovação em torno de 87%, e sua sucessora, Dilma Rousseff continuou a agenda em nome da classe trabalhadora. Contudo, nesse período, problemas de corrupção envolvendo o governo agitam os noticiários dia após dia, e desencadeiam na famosa Operação Lava Jato, que ganhou destaque em nome do combate à corrupção durante a gestão petista.

 Nesse cenário, a inimiga da nação passa a ser a corrupção e, mais uma vez, a escolha do candidato à presidência, tem por base a solução desse mal. Para atacar a mazela da corrupção, o povo brasileiro escolhe, em 2018, um ex-capitão do Exército, Jair Messias Bolsonaro.

 O que houve de comum em todos esses anos, além do problema a ser tratado, foi a notória esperança, mesmo que muitas vezes frustrada, na política.

 Por volta do século XVI, Etienne de La Boétie (1530-1563) , em seu Discurso da Servidão Voluntária, afirmava que não havia príncipes, mas tão somente servos voluntários. Tal pensamento explicava a existência do poder e dos soberanos. Não havia virtù ou fortuna, tudo isso era mera invenção. Tudo se resumia à sujeição, à obediência, que representavam ao mesmo tempo uma escolha e uma concessão.



 No Brasil, diante dos vazamentos da denominada “Vaza Jato”, ficou demonstrado como uma operação que a princípio surgiu como salvação para os problemas de corrupção que afetavam o país no momento (não que fosse algo jamais visto em nossa República), acabou alterando o cenário político em 2018. Pode-se até mesmo afirmar que tal operação foi crucial para a ascenção do atual governo, uma vez que as pesquisas apontavam o candidato, na época, condenado, Luiz Inácio Lula da Silva, como vencedor das eleições daquele ano. Preso ficou impedido de concorrer na disputa presidencial.

 A obra Relações Obscenas, uma coletânea com diversos artigos de profissionais de diferentes áreas do conhecimento, nos ajuda a compreender como o Judiciário violou seu próprio sistema e conseguiu interferir diretamente no resultado de uma eleição:

"Todavia, contrariando a melhor doutrina e os pactos internacionais de direitos civis e políticos dos quais o Brasil é signatário, as decisões mais recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e, pior, contrariando ainda uma expressa decisão do Comitê Internacional de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que determinou que se garantisse o exercício pleno dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na campanha eleitoral à Presidência da República, ainda que preso, tanto o Tribunal Superior Eleitoral como o Supremo Tribunal Federal  negaram o direito de Lula ser candidato, e, em consequência, o direito soberano da população brasileira de escolher livremente o seu representante" (ARAÚJO, 2019, p. 359)

"O golpe não teria acontecido sem a politização do Judiciário. Ninguém guardou ou defendeu efetivamente a Constituição. Direitos individuais sagrados foram e são profanados. Foi, na realidade, em grande medida, um golpe jurídico – que articula capitalismo selvagem de rapina e enfraquecimento das garantias democráticas. As perspectivas são de um capitalismo selvagem do saque à riqueza nacional, com um Estado repressivo e policial. Sua execução, no entanto, foi obra de mestres do engodo e da hipocrisia. O ataque à democracia e às garantias constitucionais se deu em nome da justiça e da moralidade" (SOUZA, 2016, p. 131) 

 Portanto, percebe-se que a ideia de criar um inimigo, nesse caso a corrupção, traz alguns resultados para os governos eletivos. No caso da participação do poder judiciário e a subversão do seu papel na Lava Jato, colocou em xeque a legitimidade de todo o processo eleitoral ocorrido em 2018, pois foi capaz de alterar as regras do jogo político, conforme ficou demonstrado. E, diante desses fatos, é importante lembrar que o poder judiciário não é escolhido pelo voto popular.

 Sendo assim, estaria a vontade popular sendo respeitada, ou após 30 anos da promulgação da nossa Constituição Cidadã ainda não temos garantidos nem ao menos do direito de voto?

 Carl Schmitt se opõe à democracia parlamentar pelo fato de que a representatividade fica comprometida. Abre-se espaço para um jogo de cartas marcadas em que o interesse público se torna algo cada vez mais distante. Portanto, entusiasmar as massas é essencial para fazê-las acreditar que alguém que carrega consigo o sentimento do povo, destemido, carismático e que concentre as decisões importantes sobre si é a solução mais adequada para sair de um sistema defeituoso em sua origem.

 No Brasil, os exemplos são diversos para que esse sentimento seja despertado na população. Temos a bancada armamentista, ruralista, evangélica, médica, da educação, LGBT etc. Hodiernamente, pode-se dizer que as três primeiras vêm sendo favorecidas em suas pautas, não por outro motivo, em 2018 vários sites de notícias apresentaram o atual Congresso como sendo o mais conservador desse 1964. Diante disso, o que se percebe é que no sistema de democracia parlamentar criam-se oligarquias que fazem o tensionamento pelo poder e o povo passa a exercer o papel de mero espectador, o que aumenta as suas frustrações. A sociedade brasileira, em cada processo eleitoral, busca sua figura messiânica, aquela capaz de ser a voz do povo na condução da nação.

 Contudo, o presente momento, embora muitos acreditem estarmos travando uma batalha espiritual ou mesmo terrena contra os “ditadores de toga”, a “esquerdalha”, a ONU, a Nova Ordem Mundial, dentre outros inimigos; põe em dúvida a eficácia da solução apontada pelo filósofo. Afinal, que retorno há para a população quando temos um Ministro do Meio Ambiente a favor do desmatamento? Que parcela da população é beneficiada com um banqueiro como Ministro da Economia? Diante de tais perguntas, será mesmo que escolher um líder populista que traduza os desejos do povo é a melhor escolha a se fazer?

 A falta de transparência, as coalizões, as disputas de poder no parlamento, tudo isso está longe de trazer qualquer indício de aproximação com os anseios do povo brasileiro. Entretanto, o perigo do discurso único e moralmente correto, visando a uma homogeneidade de pensamento é que ao mesmo tempo que unifica, exclui o debate de ideias e obsta a criação de novas possibilidades. De certa forma, assim, dá-se início a um flerte com um estado totalitário, o que pode trazer resultados desastrosos, e sem dúvida, bem maiores que os de um regime parlamentar.

 Portanto, diante de tudo isso que foi exposto, ao que parece, embora a ideia de unificação nacional de Carl Schmitt, a priori, pareça uma boa saída para termos uma identificação maior entre governantes e governados, no fim das contas, mostra ser uma ideia que falseia a realidade dos fatos. O que não deu certo na Alemanha, ao que tudo indica, também não funcionará no Brasil, tomara que com menos prejuízos! E o ceticismo quanto aos governos eletivos, ah, esse continua!

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Gabriela Shizue Soares de. Um sistema de justiça corrompido, a vontade popular usurpada e a democracia em risco no Brasil. In: FILHO, W.R; NASSIF, M. I; FILHO, H. C.M; GONÇALVES, M (Coords.). Relações Obscenas. 1ª ed. São Paulo Tirant lo Blanch. 2019.

BUENO, Roberto. Carl Schmitt e a crítica à democracia liberal. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 16, n. 24. 2012.

DE LA BOÉTIE, E. (1577) Discurso da servidão voluntária – São Paulo: Brasiliênse, 1999. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2018/01/31/lula-ganharia-as-eleicoes-se-puder-ser-candidato-segundo-pesquisa.htm. Acesso em 19 de abril de 2021.

ORWELL, George. 1984. São Paulo. Companhia das Letras. 2009.

SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016.