1. Desenvolvimento de uma sensibilidade reflexiva

Por maior que seja o distanciamento atual entre o senso comum e a filosofia contemporânea, essa distância não diminuiu a relevância dos discursos filosóficos. A principal importância me parece ser a de que a filosofia pode nos ajudar a compreender melhor as tensões políticas contemporâneas e as suas raízes, bem como abrir espaços interessantes para a construção de novos modelos simbólicos, que consigam organizar melhor as nossas práticas sociais. Mas não se trata de um caminho direto, pois as estruturas de nossa compreensão são complexas, nossos mapas conceituais são sobrepostos, nossos contatos com o mundo empírico são indiretos, os significados de cada termo são fugidios e as perspectivas são tão variadas que a melhor metáfora para a filosofia não é a de uma pirâmide, mas um labirinto.

Pensar não é sair da caverna nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas, a claridade vacilante de uma chama pela luz do verdadeiro Sol. É entrar no Labirinto, mais exatamente fazer ser e aparecer um Labirinto ao passo que se poderia ter ficado 'estendido entre as flores, voltado para o céu'. E, perder-se em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente, girar no fundo de um beco cujo acesso se fechou atrás de nossos passos - até que essa rotação, inexplicavelmente, abra, na parede, fendas por onde se pode passar. (Castoriadis 1992, 10)

Por tudo isso, convém reconhecer que o estudo da filosofia é menos a transmissão de um conjunto de conhecimentos do que um processo pelo qual analisamos as nossas certezas, em busca de compreender como se estruturam os nossos modelos de compreensão do mundo.

A filosofia pode ser um conjunto de discursos, mas aprendi com Luis Alberto Warat que a educação para a filosofia precisa ser um desenvolvimento da sensibilidade. O estudo da filosofia deveria nos tornar sensíveis ao modo com articulamos nossas explicações acerca do mundo: às categorias utilizadas, à densidade dos argumentos, às armadilhas retóricas, aos valores implícitos, ao modo insidioso como as nossas preferências ideológicas condicionam nossas avaliações. Seguindo a velha estratégia socrática, os filósofos tendem a começar suas análises por meio do que Derrida veio a chamar de desconstrução: não se trata de destruir, mas de compreender o modo como nossas crenças foram construídas, para que elas possam ser transformadas.

A capacidade dos discursos filosóficos de promover essa transformação é limitada. Warat, por muitos anos, promoveu uma desconstrução dos discursos dogmáticos, denunciando os mitos entremeados nas teorias pseudo-científicas que organizam a interpretação do direito. Ele me disse que, em certo ponto, entendeu que os juristas têm uma habilidade retórica e linguística muito desenvolvida o que torna muito difícil acessar a sua sensibilidade por essa via, visto que eles são extremamente capazes de (re)construir narrativas que justifiquem suas visões de mundo. Quando aprendem novas teorias filosóficas, os juristas não alteram a sua sensibilidade, mas passam a justificar a sua forma de ver o mundo com os instrumentos que lhe foram dados pela nova linguagem. Lampedusianamente, mudam os discursos para que as estruturas permaneçam inalteradas.

Na busca de instrumentos mais eficazes para promover uma renovação nas práticas jurídicas, Warat explorou as conexões do direito com a psicanálise, do direito com a arte e do potencial transformador da mediação. Entendo que ele buscou nessas várias estratégias uma forma de contribuir para a formação de juristas sensíveis, capazes de compreender os conflitos para além das lides e de contribuir para uma transformação produtiva das relações sociais envolvidas submetidas a um processo jurídico de solução de controvérsias. No seu último ciclo produtivo, que acompanhei de perto entre 2001 e 2008, Warat defendia que só a experiência nos modifica, e que a multiplicação de discursos sobre a experiência vivida tende a limitar o seu poder transformador.

A incorporação dessa ideia não precisa ser feita por uma passagem completa dos livros aos eventos, pois é possível construir os cursos de filosofia como experiências a serem vividas. Existem informações a serem transmitidas, basicamente sobre história da filosofia, mas a maneira como abordamos esse conhecimento pode representar uma experiência (trans)formadora. É preciso aprender sobre os filósofos e suas ideias contrapostas, sobre com as ideias são influenciadas por seus contextos históricos e políticos, mas creio que o curso de filosofia deve propiciar o desenvolvimento de uma sensibilidade para a dúvida e para as variadas formas de organizar um sistema simbólico que dê sentido a nossa experiência.

Trataremos de história da filosofia, discutiremos várias teorias, mas sempre com a consciência de que existe um risco muito grande de que esse tipo de estudo nos conduza a uma erudição vazia: um conhecimento acerca da filosofia que não estimula uma postura reflexiva. Para minimizar esse risco, é preciso que estejamos atentos para evitar as armadilhas de um conhecimento mecânico, que acumule informações ao invés de conectá-las em uma rede: é o esforço hermenêutico para estabelecer ligações entre as informações novas as antigas, formando sistemas mais complexos de significação, que nos força a reinterpretar constantemente nossos próprios quadros conceituais.

Nossa aposta é a de que, quanto mais rico for o conjunto das novas informações, quanto maiores as necessidades de o estudante precisar de um esforço hermenêutico para estabelecer conexões significativas entre elas, maior a possibilidade de que cada um dos alunos possa utilizar os vários modelos filosóficos como uma espécie de espelho, no qual consiga ressignificar parte dos seus próprios conjuntos de crenças e de valores, de tal forma que a experiência deste curso seja (trans)formadora e não a penas informativa.

2. A irrelevância da filosofia metafísica

Apesar de defender a importância do ensino de filosofia do direito (que outra coisa esperar de um professor dessa matéria?), creio que certas abordagens filosóficas deveriam estar na estante de antiguidades que estudamos apenas por interesse histórico, como a mitologia grega, a filosofia natural e a astrologia. Ninguém estuda a física aristotélica para aprender algo sobre o mundo, embora possa ser interessante para entender como pensavam os gregos. O estudo das mitologias antigas pode ser muito interessante para pensarmos no modo como os humanos constroem suas subjetividades.

O teólogo Schleiermacher fez uma distinção interessante quando indicou que os antigos estudavam os textos canônicos buscando compreender a verdade que eles portavam. Um católico tende a ler a Bíblia buscando encontrar verdades subjacentes ao texto, e não como uma expressão de certos autores. Mas é justamente assim que os modernos encaram os textos literários e mesmo históricos: como expressões de um autor. Interessa-nos entender o que o autor quis dizer, mas não supomos que a compreensão da Aristóteles, de Cícero, de Dante ou do Padre Vieira seja capaz de nos mostrar verdades sobre o mundo.

Estudar a filosofia antiga como uma forma de compreender os modos como os antigos percebiam o mundo é algo muito proveitoso, especialmente porque o estudo de culturas diversas nos ensina muito sobre a contingência da nossa própria cultura. No caso da filosofia, esse tipo de abordagem é essencial, pois somente a compreensão histórica de como os modelos explicativos se desenvolvem pode nos oferecer um horizonte adequado a que compreendamos os limites e as potencialidades das culturas em que estamos imersos.

Além disso, algumas das estruturas simbólicas com as quais construímos nossos modelos de compreensão são muito antigas. A nossa cultura atual não é um sistema unificado, mas um conjunto de elementos que herdamos de vários momentos históricos e que compõem um mosaico complexo.

Ainda é presente em nosso senso comum a antiquíssima ideia de que o mundo tem uma ordem natural, que não é evidente, mas que pode ser conhecida por meio da razão, da experiência ou da revelação. Temos grande apreço por parte de nossos valores tradicionais, enquanto outra parte nos parece de um preconceito obscurantista. A maioria das pessoas tem uma visão religiosa do mundo, admitindo a existência de entes sobrenaturais dotados de intencionalidade. Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas está também disposta a reconhecer que a cultura tem uma dimensão histórica, que não apenas realiza uma ordem predefinida, mas cria novas estruturas. A radical consciência histórica da pós-modernidade, que admite a historicidade das próprias condições de verdade, coabita com pretensões de fundamentação objetiva da igualdade entre homens e mulheres e da vedação da escravidão.

Podemos enfrentar essa multiplicidade de fragmentos de várias formas. Podemos adotar a perspectiva metafísica, que enxerga nessa multiplicidade uma sobreposição de ilusões e simulacros, tendo em vista que existe por trás disso tudo uma ordem natural que pode ser conhecida racionalmente. Podemos adotar uma perspectiva tradicional, que entende que a verdadeira ordem está além da cognição humana, mas pode ser conhecida por certas revelações. Podemos adotar uma perspectiva positivista, que nega qualquer tipo de transcendência. Podemos misturar várias dessas posições, gerando modelos paradoxais e por isso mesmo aceitáveis por nossos valores paradoxais.

Essas possibilidades todas existem, e creio que um curso de filosofia do direito deveria ressaltar a existência dessa multiplicidade de discursos e dos limites e potencialidades de cada um. Porém, boa parte das perspectivas filosóficas tentam indicar qual é o modelo correto, ou no mínimo contribuir para que as pessoas possam diferenciar a verdade do simulacro. A espalhada ideia de que a filosofia é um estudo capaz de nos mostrar os primeiros princípios fez com que os filósofos contemporâneos tenham reconhecido explicitamente a inutilidade da Filosofia.

Os neopositivistas, em geral, consideram aquilo que se chama tipicamente de filosofia não deve ser considerada uma busca de verdades complexas e profundas, mas um grande mal-entendido: uma busca incessante de tentar responder perguntas mal formuladas, por meio de categorias imprecisas, que não tem como nos levar a lugar algum. O ceticismo mais drástico quanto a essa filosofia clássica foi manifestado por Wittgenstein, o neopositivista arquetípico: sobre aquilo que não se pode falar cientificamente, deve-se ficar calado. Pode-se fazer poesia, claro, e todas as outras artes, mas não se deve confundir a linguagem expressiva das artes com a linguagem científica que fala do mundo com objetividade e clareza.

Nenhum filósofo influenciado pelo giro linguístico pode afirmar, como Miguel Reale, que o problema fundamental da filosofia é descobrir os valores. Reale propôs uma teoria tridimensional do direito, que deveria ser compreendido como uma certa combinação entre fatos, valores e normas. Mais especificamente, o direito seria uma articulação normativa entre fatos e valores, cabendo à sociologia o estudo do direito como fato, à filosofia o estudo do direito como valor, e à ciência jurídica o estudo do direito como norma. Essa é uma divisão que identifica a filosofia com a metafísica, algo que foi feito amplamente até o século XIX, mas que se tornou uma divisão inadequada no século XX, quando tantos filósofos se insurgiram contra o legado grego e apresentaram a filosofia com uma disciplina que tratava da linguagem, e não das coisas em si.

Confesso que, se eu entrasse em uma aula de filosofia de um professor que estivesse interessado em me mostrar os valores corretos, ou as metodologias adequadas para descobrir distinguir a verdade do simulacro, meu primeiro ímpeto seria o de trancar imediatamente a matéria. Estudar a filosofia como faziam os gregos, como um caminho para descobrir os princípios, é algo profundamente distante da consciência histórica da filosofia contemporânea. Assim, se alguma utilidade tem o estudo da filosofia, essa utilidade não está em uma retomada do ideal grego de busca da verdade, mas no esclarecimento da estrutura linguística de nossos universos simbólicos, e do modo como podemos articular categorias para conferir sentido à nossa experiência.

3. Aprimoramento retórico

Embora o objetivo fundamental deste curso de filosofia do direito seja estimular nos estudantes o cultivo das dúvidas filosóficas e a autocompreensão sobre as estruturas e limites de suas visões de mundo, trata-se de um estudo que também tem uma relevância utilitária para a prática jurídica.

O primeiro ponto de utilidade prática é que a erudição filosófica é um marcador simbólico de poder, na medida em que significa uma distinção. Existe uma erudição mínima que possibilita aos juristas compreender as referências filosóficas contidas nas decisões judiciais. Felizmente, o discurso jurídico contemporâneo é menos rebuscado do que costumava ser, com uma valorização crescente da clareza, da simplicidade e da concisão. Além disso, cada vez mais o direito se reproduz por meio de referências a precedentes judiciais, o que torna dispensáveis as citações doutrinárias que eram inevitáveis na argumentação jurídica do século passado. Entretanto, nas decisões de casos difíceis, que envolvem construções argumentativas mais elaboradas, ou nos casos em que os juízes buscam modificar linhas jurisprudenciais estáveis, são comuns as referências doutrinárias e filosóficas, usadas como argumento retórico. O mínimo que se espera de um jurista é a capacidade passiva de compreender essas citações, mas espera-se de um jurista bem formado que tenha a capacidade ativa de produzir e de contestar argumentos desse tipo.

Inclusive, não é raro que as referências filosóficas sejam usadas de maneira inconsistente, por juristas que não as compreenderam bem, mas que se limitam a reproduzir alguns lugares comuns. A capacidade de mostrar a fragilidade desse tipo de argumentação pode ter um peso retórico relevante em várias situações, pois uma referência filosófica incorreta pode gerar situações ridículas como quando promotores de justiça acusaram o ex-presidente Lula de praticar condutas que envergonhariam “Marx e Hegel”, em uma evidente confusão entre Hegel e Engels. Embora esse fosse um argumento absolutamente secundário na petição, a tentativa frustrada de usar a erudição para construir uma figura retórica tornou-se nacionalmente conhecida como signo de uma falsa erudição.

Para além de subsidiar a formulação de argumentos em situações complexas, o conhecimento dos discursos filosóficos possibilita ao jurista conhecer estratégicas argumentativas interessantes para a prática do direito. A filosofia é um discurso frequentemente usado para dissolver as crenças hegemônicas e, muitas vezes, o trabalho dos juristas justamente é o de promover decisões contrárias ao senso comum. O desenvolvimento de um conhecimento filosófico envolve o exercício de habilidade retórica, de uma capacidade de construir argumentos convincentes que pode oferecer aos juristas um repertório argumentativo mais rico do que aquele disponível nos exemplos da dogmática.

4. Referencial teórico para a pesquisa

Se os juristas dogmáticos podem se contentar com uma erudição filosófica mínima, um conhecimento razoável de filosofia do direito é indispensável para qualquer pessoa que tenha pretensão de ingressar na academia jurídica, como pesquisadores ou professores.

Dentro da academia, diversamente do que ocorre na prática judicial ou advocatícia, mesmo as questões dogmáticas precisam ser tratadas com densidade teórica. Diferente de uma sentença ou de um parecer, uma monografia é um trabalho que não pode ser apenas uma opinião pessoal, pois ela precisa esclarecer devidamente os seus pontos de partida e as perspectivas utilizadas, elementos que somente se tornam claros para quem desenvolveu uma reflexão filosófica.

Um dos pontos mais típicos da filosofia contemporânea é o reconhecimento de que não existem verdades universais e imutáveis a serem descobertas e que, portanto, toda visão de mundo adota uma determinada perspectiva. Sob que perspectiva você enxerga o direito? Quais são os pressupostos em que se assentam os conceitos que você usa? Quais são os pontos que você não podem comprovar, mas ainda assim continuam acreditando neles? De que maneira o seu modo de ver o mundo condiciona aquilo que você chama de realidade e, portanto, a sua maneira de interpretar as normas e de decidir questões jurídicas?

O modo como você responde a essas perguntas define o seu marco teórico, que é justamente a perspectiva a partir da qual se constrói um discurso acadêmico. E este curso de filosofia também busca a auxiliar cada um de vocês a identificar as linhas filosóficas com que têm mais afinidade, para que com isso você possa ter uma consciência mais reflexiva acerca dos elementos estruturam os seus discursos sobre o direito e que, com isso, definem o horizonte da sua prática.

5. A filosofia no Exame de Ordem

Por fim, o estudo da filosofia do direito tem uma função utilitária clara para os advogados, visto que essa matéria passou a integrar o programa do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil desde 2013. Tem sido recorrente a ocorrência de 2 questões sobre história da filosofia do direito, em meio às 80 questões da prova, o que significa que acertá-las confere ao examinando 5% dos pontos necessários para a aprovação. Embora pareça pouco, trata-se de uma matéria com peso semelhante ao de várias outras disciplinas dogmáticas, já que a amplitude do programa impede que sejam alocadas muitas questões para cada ramo do direito. Inobstante, a possibilidade de cobrar apenas dois tópicos exige dos examinadores que fiquem circunscritos aos conceitos filosóficos mais conhecidos.

A prova tem seguido um padrão: logo após as questões sobre o estatuto da ordem, são feitas duas questões que trazem pequenos trechos de filósofos renomados e depois fazem uma pergunta sobre as suas concepções. Nos últimos anos, foram abordados trechos de Aristóteles, Bobbio, Dworkin, Hart, Ihering, Kant, Kelsen, Locke, Montesquieu, McCormick, Stuart Mill e Platão. A alternativa correta normalmente vem ao lado de uma alternativa plausível e de duas afirmações desconectadas do texto apresentado, o que mostra cuidado na elaboração dos itens, que têm um nível de dificuldade mediano e não se focam em um aprendizado puramente mnemônico.

São todas questões acerca de história da filosofia, que não medem a capacidade analítica e crítica dos candidatos, mas o seu conhecimento acerca de algumas das principais correntes filosóficas, especialmente o utilitarismo e o neopositivismo. Apesar dessa limitação, parece-me difícil fazer melhor em uma prova com a estrutura do Exame de Ordem e devemos reconhecer que essa abordagem é bem alinhada com o fato de a maior parte do conteúdo de filosofia do direito é mesmo de história da filosofia.

Por isso, apesar de não ser o objetivo fundamental deste curso a preparação para uma prova (e sim para o exercício filosófico nas atividades dogmáticas e acadêmicas), a escolha dos temas a serem avaliados é permeada pelo reconhecimento de que é conveniente que os estudantes conheçam os filósofos e as correntes que tendem a ser abordados no Exame de Ordem e teremos dois Módulos voltados a um estudo direcionado à preparação dos estudantes para esse tipo de prova.