Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.
Principalmente com o advento do positivismo, há um forte debate no campo jurídico acerca da definição da existência de uma ciência jurídica no sentido estrito do termo ciência. Ou seja, seria o direito um ramo do conhecimento passível de aplicar o método científico ou não?
Eduardo Bittar descreve a ciência como uma espécie de conhecimento, disposto de forma sistemática e em um compêndio de postulados metodológicos. Ele parte de uma pretensão fundamental da construção de um saber que é tomado como adequado e certo.
Dessa maneira, ele é dotado de validade universal e eficácia definitiva, ou seja, sua aplicação não conhece fronteiras no que diz respeito a território, tampouco sua validade conhece limites ou desuso em relação ao tempo.
É sustentável a perspectiva de ser a ciência um campo que possua uma pretensão fundamental de construir um produto final palpável, algo que transcenda a relação experimental regional (BITTAR, 2008). Nessa linha, a vertente mais difundida do conceito de ciência é aquela baseada no método científico, que envolve: caracterização daquilo observado, questionamento, hipótese, predição e experimentação.
Todo esse debate acerca da existência ou não de uma ciência do direito ganhou relevo após o sucesso das ciências naturais, especialmente no século XIX. O conhecimento científico passou a ser visto como a única forma segura e confiável de se conhecer a realidade. Isso porque, houve uma crise muito grande em torno do discurso filosófico, especialmente com as novas ideias defendidas por David Hume.
Depois de Hume, a ordem natural do mundo pareceu inacessível tanto para a filosofia quanto para a ciência. Nem o empirismo dos cientistas parecia capaz de explicar objetivamente a empiria, nem o racionalismo dos filósofos parecia capaz de explicar objetivamente os fundamentos valorativos do mundo. As críticas de Hume perturbaram tanto os filósofos como os cientistas, mas o impacto dessa crítica foi muito diferente nesses dois campos (COSTA, 2020).
Conforme didaticamente exposto por Alexandre Costa, as ideias de Hume tiveram o efeito de um terremoto na filosofia e de uma marola na ciência. Isso porque o sucesso prático e tecnológico da ciência afasta a necessidade de uma justificação filosófica de seu discurso.
Nessa linha de valorização do conhecimento científico, surgiu uma vertente filosófica que pretendia implantar o bem sucedido método científico, nos ramos de conhecimento sociais como a sociologia e o próprio direito. Essa vertente chama-se positivismo e foi desenvolvida em grande medida por Augusto Comte, no século XIX.
Comte defendia que seria possível estudar empiricamente a sociedade, dando ordem ao caos a partir de fundamentos da razão. Propôs então um modelo racional de observação e interpretação dos fatos. Tem-se, então uma valorização do método científico em detrimento das teorias naturais do século anterior. Tal método era visto quase como um dogma, apto a ser aplicado indistintamente a todos os ramos do conhecimento.
Nesse contexto, é interessante observar a teoria formulada por Thomas Kuhn, que toma as ciências exatas como ponto de partida. O autor estabelece uma analogia dos problemas que surgem no mundo com um quebra-cabeça. É justamente a ascensão de um novo paradigma, isto é, de um novo consenso científico, que irá resolver o quebra cabeça, colocará fim no problema que levou aquela comunidade científica a um estado de crise.
Todavia, mesmo na teoria de Kuhn parece haver um elemento subjetivo que leva ao paradigma, fugindo assim da noção puramente empírica que se convencionou associar com o positivismo. Kuhn estabelece uma relação direta entre comunidade e paradigma, de forma que parecem, mutuamente, informar um ao outro: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham de um paradigma” (KUNH, 1998, pp. 219).
Nesse contexto de valorização do método e da ciência, surgiu também o positivismo jurídico, cujos principais expoentes foram Kelsen e Hebert Hart.
O próprio nome da obra de Kelsen já traduz bem a sua pretensão de analisar cientificamente o direito. Em sua célebre obra teoria pura do direito, Kelsen dissocia os planos do ser e do dever ser, sendo este último o plano a ser estudo pela ciência do Direito. Esse rigor científico-metodológico, que é próprio das ciências naturais, foi trazido para o direito. (KELSEN, 2009)
Ocorre que em razão de seu próprio objeto, o método científico revela-se insuficiente para descrever o fenômeno jurídico. Isso porque o direito é eminentemente uma prática social interpretativa, de forma que há uma confusão entre o sujeito que pretende ser cientista do direito e o próprio objeto estuda. Explica-se: como o direito é uma prática social interpretativa, o próprio cientista do direito faz parte do objeto estudado e suas interpretações acerca do fenômeno jurídico tem o condão de modificar o direito e, portanto, modificar o objeto da ciência do direito. Dessa forma, não há o necessário distanciamento entre o sujeito (cientista) e o objeto (direito). Seria como se o físico ao estudar a física tivesse o poder de tirar conclusões e interpretações que modificassem as leis da natureza e, logo, modificaria a própria física (objeto estudado).
Nessa linha é a precisa lição de Granger:
Uma investigação realizada pelo homem, ao ter como objeto a si mesmo, torna-se mais suscetível às vontades e aos interesses do sujeito que investiga, pois ele está suscetível, como qualquer ser humano, aos valores e intenções de uma dada época ou de um contexto histórico determinado. (GRANGER, 1994)
Assim, há uma incompatibilidade entre o método científico e o direito. Em sendo o direito uma prática social interpretativo contingente, o conhecimento jurídico carece de falseabilidade, um elemento fundamental para um conhecimento ser considerado científico. (POPPER, 1972).
Além disso, o direito se operacionaliza por meio da linguagem. Os textos legais e as demais fontes imediatas do direito nada mais são do que enunciados e justo por isso, são dotadas de vagueza e necessitam que a extração de seu conteúdo seja mediada por um intérprete. Nesse sentido, o texto legal não se confunde com a norma, que deve ser sempre interpretada.
Diante desse cenário, nota-se uma total subjetividade e contingência do direito, na medida em que ele não é nada em si mesmo, mas sim uma construção hermenêutica comunicativa. Em razão disso, se diz que não vale nada o advogado lançar em suas peças sofisticados argumentos doutrinários se o juiz não os compreender. Ao contrário, nas ciências naturais, se um cientista souber as leis que regem a natureza ele conseguirá aplicar seu conhecimento na prática independentemente de qualquer fator comunicativo que envolvam outro ser humano.
Isso não quer dizer contudo, que a ciência, mesmo natural e exata, consiga achar explicação para todos os fenômenos. O filme “O homem que viu o infinito” retrata bem esse conflito. O longa-metragem conta a história do indiano Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan (1887-1920), cientista que contribuiu para vários avanços na matemática, apesar de não contar com nenhum tipo de formação. O jovem matemático não se amoldava às práticas tradicionais da área, muitas vezes chegando a um resultado sem passar por todas as etapas metódicas para provar que os demais cientistas preconizavam como essenciais para a formulação de um saber científico. Em contraposição à técnica, o jovem atribuia suas descobertas uma força maior, se apoiando em valores religiosos para embasar suas descobertas.
Contudo, apesar de ser possível apontar esse dilema no âmbito das ciências naturais, ainda é consolidado que são aquelas observadas da natureza, isto é, existem independentemente do ser humano, ao passo que o direito tem justamente como elemento básico a comunicação entre seres humanos, na linha do que propõe Luhmann. Portanto, constata-se uma diferença radical entre esses dois campos do saber humano. O que, por óbvio, demandam métodos de análise diferentes, sendo descabida a tentativa de aplicar o método científico no direito.
O próprio Kelsen tentou escapar dessa limitação, delimitando como seu objeto de estudo a norma jurídica. Ocorre que analisar o fenômeno do direito somente a partir de uma norma jurídica positivada é reduzir demasiadamente o escopo de análise. Isso porque o direito é uma prática hermenêutica e argumentativa, na medida em que a norma em si não é autoaplicável, sendo sempre necessária uma intermediação argumentativa do intérprete. Portanto, nota-se que o direito não se adequa satisfatoriamente ao método científico. Seja porque há uma confusão entre cientista e o objeto estudado, seja porque o direito é uma praticamente hermenêutica e argumentativa, sendo, assim, contingente e impossível de ser falseado.
Referências Bibliográficas
COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020a.
COSTA, Alexandre. A ascensão dos discursos científicos no séc. XIX. Arcos, 2020b.
GRANGER, Gilles-Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1994.
HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
HUME, David. Tratado da natureza humana. 2 ª ed. São Paulo. UNESP, 2009.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1998, p. 125-257
LIMA, Fernando Rister de Sousa. Sociologia do direito: o Direito e o Processo à Luz da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Curitiba: Juruá, 2009
POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo, 1972.