É natural que em toda coletividade haja alguma forma de liderança em prol da construção de um cenário minimamente organizado para que esse conjunto de pessoas possa coexistir. A despeito da fundamentação dessa liderança ter alterado sua fonte ao longo da História – e.g., ora recorrendo-se à ideia de um deus uno ou deuses, ora à própria consulta popular – fato é que esses líderes são, materialmente, oriundos dessa própria coletividade.
Nesse sentido, em uma primeira leitura, não é possível se afastar de uma noção de que governantes e governados, ao fim e ao cabo, possuem uma origem comum, de forma que suas diferenças acabam existindo em torno de sua posição em face do poder naquele momento específico. Todavia, uma análise do passado acaba por corroer essa premissa.
Ao analisarmos as sociedades primitivas, concluímos que apesar da existência de um “líder” essas sociedades não realizam distinções entre governantes e governados e que o líder em questão não exerce nenhum poder de coerção ou de imposição sobre os demais membros da sociedade.
Pierre Clastres aponta que as sociedades primitivas são sociedades contra o Estado, ou seja, nelas não falta algo, não há a carência de um Estado, pelo contrário, essas sociedades não possuem Estado pois são contrárias ao surgimento de um Estado. Para que elas mantenham sua essência a existência de um Estado é algo impossível, assim, a resistência a criação de um Estado e de uma centralização de poder é motivo para resistência.
As sociedades primitivas são incompatíveis com a concepção de um Estado, pois o surgimento de um Estado romperia com os princípios de sobrevivência dessas sociedades, haja vista se tratarem de sociedades de subsistência onde cada um exerce um papel fundamental para o funcionamento do todo e o foco é apenas o de subsistir e não de produzir.
Dessa forma, é possível relacionar diretamente o surgimento de um Estado e da necessidade de um ente organizador com a Revolução Agrícola, isto é, a partir do momento em que a subsistência não é mais a base da sociedade e o homem passa a produzir mais que o necessário, observa-se a necessidade de criação de uma instituição capaz de organizar e controlar esse excedente e essa nova sociedade que não mais vive com base nos princípios da subsistência.
Com a Revolução Agrícola os seres humanos passam a valorizar coisas diferentes das valorizadas pelos homens caçadores e coletores, antes o lazer e o descanso eram valorizados e apenas a subsistência era necessária. Não havia a necessidade de se produzir além do que era consumido ou de se trabalhar além do suficiente para garantir a sobrevivência da comunidade.
A Revolução Agrícola impacte de forma incisiva as visões de mundo e, consequentemente, as formas como os povos se organizam. Ao abandonar o nomadismos e buscar domar a natureza o homem passa a focar não mais na sobrevivência e na harmonia com a natureza, e passa a focar no poder e na produção, na força e no excesso.
Nesse aspecto, e com foco nos estudos de Pierre Clastres, o governo não seria necessariamente um organização natural, pois existem sociedades que se mantém até os dias atuais sem a existência de um Estado e sem a distinção entre governantes e governados. Diversas tribos indígenas isoladas e também comunidades aborígenes vivem ainda com foco na subsistência e na harmonia da população coma natureza que os cerca. Ainda existem povos que não foram corrompidos pela ilusão da Revolução Agrícola de que domesticar a natureza e produzir muito além do suficiente para alimentar a comunidade simboliza uma espécie de evolução.
Todavia, a Revolução Agrícola de fato mudou o curso da humanidade, haja vista sua relação com o surgimento do Estado classista dividido entre detentores do poder e obedientes ao poder que os demais detém, isto é, governantes e governados. Dessa forma, a partir do momento em que essa necessidade de organização do poder eclode, temos então a busca por diversas justificativas que justifiquem o governo e o surgimento de um Estado detentor da força como uma organização natural.
Historicamente, ao menos no Ocidente e até meados do séc. XVIII, essa separação entre governantes e governados foi calcada em fundamentos cujas repercussões indicavam para uma verdadeira supremacia daqueles que estavam no poder em face daqueles que eram, na verdade, efetivo alvo deste poder. Justificativas religiosas e de que os governos seriam frutos do fluxo natural do universo, permearam e permeiam até hoje as tentativas de criação de um embasamento que justifique que o Estado e, consequentemente, a divisão da população entre governantes e governados é algo atrelado à ordem natural das coisas.
“A ordem natural é um elemento simbólico muito anterior à filosofia. Cada cultura interpreta essa ordem natural de forma diversa. Os hindus a viam como uma ordem de obrigações impostas, que todos precisariam seguir, nomeando-a como Dharma. Na tradição chinesa, muitas vezes essa ordem é entendida de forma impessoal, como um fluxo natural ao qual devemos nos adaptar: o Tao.” (COSTA, 2020), logo a busca por uma razão que justifique a ordem natural está intimamente ligada a credibilidade da necessidade da existência de um governo.
Todavia, as ocorrências das Revoluções Americana e Francesa demonstram um quadro em que esses líderes, individuais ou coletivos, acabaram por efetivamente romper um sinalagma social em prol da manutenção e retroalimentação desse status de poder. Têm-se então uma nova tentativa de justificação para a existência da divisão dos povos entre governantes e governados, porém, tal justificativa passa a possuir um viés menos associado a uma ordem natural imaginativa e passa a buscar justificativas empíricas ou formas que amenizem essa gritante divisão.
Além disso, já no séc. XX, com o fim da II Guerra e a constatação dos horrores causados pelo fascismo e pelo nazismo, os partidos políticos passam a ser reconhecidos de forma mais sistemática pelos ordenamentos jurídicos. Esse movimento foi calcado especialmente nas premissas de uma despersonificação do poder e de uma constante tentativa de aproximação dos grupamentos socio-ideológicos com o processo político estatal. Assim, ao menos em tese, pode-se afirmar que houve uma tentativa de relativa coincidência entre os governantes e governados, ou ao menos uma tentativa de buscar uma diminuição do abismo existente entre eles nas formas de governos anteriores.
Nesse sentido, vários países europeus desenvolveram sistemas de político-representativos que buscaram aproximar a população do poder estatal e, consequentemente, diminuir um natural distanciamento existente entre governantes e governados, consolidando-se por vezes como verdadeiros nortes democráticos a serem seguidos, a exemplo do Reino Unido e da Alemanha.
Passando para a realidade da América do Sul, países como Brasil e Chile, por exemplo, após passarem por rígidos regimes ditatoriais, nos quais mais uma vez pôde-se constatar uma efetiva supremacia dos governantes para com os governados, haja vista se tratar de um modelo de sociedade em que o foco está na força e em quem detém o poder, intentaram estabelecer modelos político-representativos semelhantes aos observados na Europa Ocidental, visando uma melhora na relação do Estado Poder com o povo. No caso brasileiro, especificamente, as oligarquias locais, historicamente fortalecidas e presentes no grupo “governantes”, distanciam-se continuamente dos governados para manutenção de seu projeto pessoal de poder.
Dessa forma, conclui-se que não há se falar na existência natural de uma diferença propriamente dita entre governantes e governados, mas sim que a formatação sociopolítica atual, fruto da Revolução Agrícola, existente na coletividade e com foco no pode, pode, ao final, acabar ensejando essa diferença.
REFERÊNCIAS
Costa, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020.
Costa, Alexandre. Yuval Harari e a Armadilha da Revolução Agrícola. Arcos, 2020.
Costa, Alexandre. As origens da desigualdade política. Arcos, 2020.
Costa, Alexandre. A ordem imaginada. Arcos, 2020.
GHIDINI, Rafael. MORMUL, Najla Mehanna. Revolução agrícola neolítica e o surgimento do Estado classista: breve construção histórica. Revista de Ciências do Estado. Belo Horizonte: v. 5, n. 1, e19725. ISSN: 2525-8036.
Harari, Yuval Noah. Sapiens. Sapiens: uma breve história da humanidade.
VIEIRA, R. S. Partidos políticos brasileiros: das origens ao princípio da autonomia político-partidária. Criciúma: Unesc, 2010.