Autores: Jezebel de Melo Eiras, Nikolly Milani Simões Silva e Roberto Augusto Brito Alves.

Uma norma deve sempre ser interpretada por aquele responsável por sua aplicação. A ideia, portanto, de que o Direito não se resume a uma série de normas criadas por pessoas anteriormente designadas e definidas como guias da convivência social é sempre a mais passível de adoção.

O Direito, de acordo com Hans Kelsen, é um conjunto de normas com o objetivo de regular o comportamento dos homens que convivem socialmente. A ciência jurídica, se conecta às normas e designa a elas seu caráter de ato jurídico ou antijurídico (KELSEN, 1999, p. 4).

Hans Kelsen diz que as normas fundamentais são o pilar que sustenta a validade das normas que pertencem a uma mesma ordem. As normas dependem, para sua efetiva vigência, de sua validade e efetividade.

A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que, por o seu conteúdo ser havido como imediatamente evidente, seja pressuposta como a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas - como o particular do geral - normas de conduta humana através de uma operação lógica. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação . São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva (KELSEN, 1999, p. 139).

Para Hans Kelsen, as normas positivas devem levar em consideração fatores como o tempo, espaço e atos humanos. Assim, tornam-se objeto da ciência real do Direito, a ser exemplificado através dos diversos julgados armazenados ao longo dos anos por diferentes tribunais, o que comprova a teoria de que o direito não é o texto normativo propriamente dito, mas sim a sua interpretação e aplicação.

Visto o fato do costume ser constituído por atos de conduta humana, também as normas produzidas pelo costume são estabelecidas por atos de conduta humana e, portanto, normas postas, isto é, normas positivas, tal como as normas que são o sentido subjetivo de atos legislativos. Através do costume tanto podem ser produzidas normas morais como normas jurídicas. As normas jurídicas são normas produzidas pelo costume se a Constituição da comunidade assume o costume - um costume qualificado - como fato criador de Direito (KELSEN, 1999, p. 7).

Contudo, é importante destacar o contexto ao qual Kelsen se insere e, principalmente, naquilo que concentra parte de sua crítica em relação ao direito e a sua forma de interpretação. Neste sentido de correlação entre o direito e a sua interpretação, Kelsen se opõe as teorias até então presentes no século XX que iriam afirmar ser possível a criação de um método de interpretação que pudesse trazer a racionalização nas tomadas de decisão.

Especificamente neste ponto, Hans Kelsen se opõe a até então visão trazida por essa corrente interpretativa e aposta no denominado decisionismo. Ao debruçar em seus estudos, Kelsen buscava encontrar no direito uma ciência, isto é, um direito rígido, preciso, neutro e que atendesse à exigência de verificabilidade. No entanto, de modo resumido, Kelsen chega a conclusão de que a decisão passa também por um ato de vontade. O autor ainda afirma que toda atividade valorativa seria política

Por isso, o autor trata de modo categórico o fato de que toda atividade valorativa seria típica da política, não havendo, portanto critério de cientificidade.

O pensamento de Kelsen é importante para compreender a continuidade do debate que se fez sobre a teoria da argumentação para se chegar ao neoconstitucionalismo, e a parte, as influências trazidas pelos autores que nos levam a melhor compreensão acerca da tomada de decisões no Brasil. Não obstante, o objeto principal não se trata tão somente acerca das teorias interpretativas e argumentativas, mas sim a consideração que se obtém ao encarar o que é o Direito.

Ao tratar acerca do Direito e o que de fato o definiria, é imprescindível voltar aos escritos de Roberto Lyra Filho, em sua obra “O que é o Direito?”, muitas vezes apresentada ainda no início da graduação e que traz importantes ponderações que acabam por se perder no decorrer do curso em troca de um parâmetro altamente normativista e de pouca reflexão.

A perspectiva dentro de um padrão de normas atingiu um nível que já não se pensa o direito se não como um modelo que abarca um conjunto normativo, onde a busca pela manutenção do status quo cria verdadeiras barreiras sobre os “confiáveis” e “não confiáveis”, como bem delimita Lyra Filho. Dentro do grupo dos não-confiávies estaria, inclusive, pessoas que propõem a reestruturação social, ainda que de modo pacífico.

Neste sentido, a história demonstra que, por muitas vezes, os defensores cegos do direito como sendo um conjunto de normas, na verdade o distorceu e tentou através dele criar adversários e inimigos ao avanço civilizatório. Para isso, basta lembrar-se do movimento dos direitos civis dos negros e latinos nos Estados Unidos. Na mesma medida e assustadoramente mais recente, basta lembrar-se dos argumentos trazidos pelos críticos e oposicionistas a política de cotas na UnB, sob o argumento de que a medida afirmativa era inconstitucional e feriria diretamente o princípio da igualdade presente na Constituição Brasileira. Não apenas isso, há registros em lançamento do livro de Demétrio Magnoli, que hoje discursa e participa de rodas de debate acerca de igualdade, onde o jornalista e seu público não apenas ataca diretamente o Movimento Negro, como os acusa de ser a Ku Kux Klan do Brasil.

Neste sentido, surge a dúvida: seria o direito um desdobramento tão somente da lei? Se assim fossem sinônimos, poderíamos entender que, o direito, em sua essência, poderia ser injusto, o que também demonstra uma contradição em termos. Não apenas isso, todo e qualquer esforço mínimo de desobediência civil, ainda que pacífica, estaria condenada ao rigor da lei, sob o olhar, coberto ou não, de Thêmis.

Neste sentido, Lyra Filho é brilhante ao pontuar que “O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas.”

O constitucionalismo, já consagrado na maioria dos países, consagra um modelo padrão tendo a constituição o poder-dever de unir  o direito e a política, para isso devendo, dentro da lógica do constitucionalismo, conter os direitos fundamentais, a limitação do poder do governo e a adesão ao Estado de Direito.

Embora não vislumbre problemas quanto à uma Constituição, é importante a reflexão do que, assim como quem constitui o que constitui a constituição. Ainda que pareça um enorme pleonasmo, há nos últimos anos uma enorme insurgência ao próprio modelo de Constituição e a definição do Direito como sendo, praticamente, um sinônimo das leis. Não obstante, não é difícil encontrar o direito, inclusive, fora de uma lógica normativista. Além disso, há no direito uma verdade a ser atingida?

É nesse sentido que diversos neoconstitucionalistas tentam, através de seus estudos, buscar uma solução hermenêutica que traga conformidade ao direito. Alexy irá dizer que entre os princípios e a política são valores da mesma ordem. O autor irá trabalhar com a aplicação do direito principiológico onde se deve atingir a adequação, necessidade e balanceamento capaz de ser razoável tirar o mínimo possível em busca da justiça, sem que haja perdas graves.

Ainda na linha da teoria argumentativa, Dworkin faz uma distinção entre princípios e regras e, para ele, dentro dos casos sensíveis, deve-se levar em consideração a eficácia, necessidade e proporcionalidade. Dentro dessa cadeia, a medida proposta deve ter aptidão para atingir o valor que pretende se resguardar, a necessidade visa a percepção de, para além de estar apta, aquele deve ser o meio necessário para atingir a finalidade e, por último, sendo eficaz e necessária, os valores são postos em uma ponderação para que assim seja tomada uma decisão de juízo moral, isto é, o que é de maior importância naquele momento.

Trazendo a teoria argumentativa para a situação brasileira, é possível verificar uma recepção da teoria de Robert Alexy pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que com ressalvas e críticas. O fato é que diante do hibridismo encontrado, assim como uma intensa discussão voltada acerca da legitimidade, não se pode olvidar dos mais diversos temas sensíveis contemporâneos.

Dentro desse panorama, muito se questiona se o direito como conjunto de normas teria o alcance para responder às demandas atuais. Fato é que, como bem pontuado por Bisol, o abismo entre o mundo e a linguagem do direito na prática cotidiana pode haver um descompasso para tratar acerca das sensibilidades necessárias para um constructo adequado. Com isso, os limites impostos levam a dúvida inicial sobre o que seria o direito. Assim, considerar o direito como conjunto de normas é ignorar uma série de ramificações e construções que se dão no direito, mas que não se limitam a decodificação das normas, inclusive ao direito que é construído em ruas, assentamentos, comunidades.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. 6ª Ed. 1999. São Paulo: Martins Fontes. Disponível em: <https://portalconservador.com/livros/Hans-Kelsen-Teoria-Pura-do-Direito.pdf>.

FILHO, Roberto Lyra. O que é o Direito?. 1ª Ed. 1982. São Paulo: Editora Brasiliense. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17330/material/Texto%208-%20p.%2007-30.pdf

TV Câmara. Raça Humana: bastidores das cotas raciais na UnB [2010]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fCcyxahMDBk.