Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

A fim de que se determine se o Direito é ou não uma ciência, é preciso, primeiramente, que seja estabelecido não apenas o conceito de ciência, mas também delimitado o objeto de estudo do direito e seu real funcionamento.

Para delinear a resposta ao primeiro questionamento, deve ser avaliado o processo pelo qual o conceito de ciência passou e suas mais relevantes acepções, sendo assim levadas em consideração as teorias de alguns indivíduos como Thomas Kuhn e Karl Popper. No que concerne a segunda vertente, tendo como foco isolado o estudo do Direito, podem ser analisadas teorizações acerca dele, inclusive de autores como Hans Kelsen e Herbert Hart, cujas obras foram de extrema relevância para o meio jurídico.

Sendo analisadas as duas vertentes, pode-se estabelecer a relação que o Direito possui com a tão glorificada ciência: se é possível enquadrá-lo dentro desta ou de alguma possível vertente com base no que se pretende ao se estabelecer uma ciência. Dessa maneira, será possível analisá-lo sob uma ótica científica.

A atribuição do termo científico confere ao seu objeto certa credibilidade em função da associação que é feita com a racionalidade e a valorização desta na atualidade. Tem-se como exemplo de quando determinado fato é cientificamente comprovado, a tendência é de que seja amplamente aceito.

Alexandre Costa (2020a) nos ensina que o direito natural, enquanto invenção de pessoas religiosas, fundamenta a validade de suas normas com a noção do sagrado. Contudo, “a modernidade é laica, e essa perspectiva demandou a elaboração de uma teoria laica do direito, que buscou suas raízes no discurso científico”.

A dita ciência tem como objetivo promover uma universalização e padronização dos conhecimentos de determinada área, promovendo uma unidade do saber. Não se questiona a existência de uma ciência das áreas consideradas exatas, tomando como exemplo os campos da Química e da Física. Ao se tratar do meio jurídico, todavia, esse é um questionamento comumente realizado em virtude da relação que o campo do conhecimento possui não apenas com a realidade empírica, mas com a existência de um plano do dever ser expresso normativamente.

Conforme menciona Alexandre Costa (2020a), o iluminismo sacralizou a razão, tendo nela a razão última de todas as coisas, sob justificação da laicização do conhecimento. O mencionado professor explica que a dedução e o comentário não eram tidos como instrumentos dos cientistas, que se utilizam de outros instrumentos teóricos indutivos. Esse novo olhar, a que se chama de positivismo cientificista, parte da ideia de que toda ciência carece ter um objeto empírico e um método determinado. “Encarar o direito como um objeto empírico é vê-lo como algo a ser observado no mundo, e não a ser deduzido da própria racionalidade.” (COSTA, 2020a).

Os métodos utilizados para que se obtivessem os fins pretendidos de credibilidade e unicidade da ciência foram diversos ao longo do tempo. Dentre eles estão presentes desde os mais simples conceitos de indutivismo e dedutivismo, até teorias mais complexas como as propostas por Thomas Kuhn com suas crises paradigmáticas, por Karl Popper e a falseabilidade, além das teorizações acerca de realismo e antirrealismo (de teorias e entidades) e anarquismo científico de Feyerabend.

Autores mais antigos, ainda que já tenham tido suas ideias, em parte, refutadas, podem servir de base para a estruturação da ideia de ciência. Nesse sentido, deve-se fazer menção à superação que Kant realiza da dicotomia entre o fundamento do conhecimento a partir do sujeito de René Descartes e o fundamento do conhecimento a partir do objeto de John Locke - ambos os autores empiristas.

Kant postula a noção de correlato – o para nós –, que se caracteriza pela forma que ocorre o processo de conhecimento: a partir da relação estabelecida entre sujeito e objeto. Ainda que sua postulação acerca de um realismo de correlato apresente diversos empecilhos - como a falta de capacidade para explicar o resto dos fenômenos que se encontram para além dessa relação, percebidos como problemas de taxonomia, alfândega, antropocentrismo, bifurcação e totalidade - sua lógica pode ser aproveitada no que concerne às ciências sociais, aquelas em que tal relação entre sujeito e objeto pode ser verificada.

Ian Hacking (1983), em Representar e Intervir, aponta um realismo não mais de teorias, mas de entidades. Tal realismo científico de entidades determina que um experimento tem vida própria independentemente de sua teoria. Ele parte da ideia de que é mais difícil provar a não existência de algo ao invés do contrário. Além disso, é a prática regular dos experimentos que garante sua existência. Nesse sentido e aplicando ao direito, ele se aproxima do futuro conceito a ser postulado por Luhmann da autopoiese ao afirmar que o um modelo se mostra correto por explicar o que aconteceu em seu experimento enquanto o experimento está bom por se encaixar no modelo. Ele defende um realismo de entidades que possui os componentes ontológico e epistemológico.

Outro importante debate a ser realizado decorre das teorias de Kuhn e Popper. No ramo jurídico, Thomas Kuhn apresenta grande credibilidade e pode por vezes ser estudado sem que sequer haja menção a Popper. Em sua obra A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1994) determina que a ciência é realizada a partir de criação de paradigmas – valores compartilhados de métodos – e a posterior refutação destes por meio de crises paradigmáticas, promovendo a substituição por outro que melhor se adeque ao contexto. Para ele, portanto, a ciência não é cumulativa e não apresenta unicidade, apenas disciplinas sobrepostas.

Popper (1972), por sua vez, em A lógica da pesquisa científica traz como principal foco a possibilidade de que determinada proposição ou teoria seja falseada a fim de que se configure como ciência. Tome-se como exemplo a afirmação: amanhã pode ou não chover. Independentemente das condições climáticas, a proposição é verdadeira, de modo que não pode ser refutada ou falseada, não sendo assim um conhecimento científico. A ciência para ele é método, não uma verdade ou revelação.

Destarte toda preocupação com a necessidade de se estabelecer o que de fato é uma ciência, Chalmers (1993) em O que é ciência afinal?, tendo estudado não apenas ou autores aqui citados como inúmeros outros que produziram conteúdo acerca do tema, afirma:

Os filósofos não têm recursos que os habilitem a legislar a respeito dos critérios que precisam ser satisfeitos para que uma área do conhecimento seja considerada aceitável ou “científica”. Cada área do conhecimento pode ser analisada por aquilo que é. Ou seja, podemos investigar quais são seus objetivos – que podem ser diferentes daquilo que geralmente se consideram ser seus objetivos – ou representados como tais, e podemos investigar os meios usados para conseguir estes objetivos e o grau de sucesso conseguido. Não se segue disso que nenhuma área do conhecimento possa ser criticada. Podemos tentar qualquer área do conhecimento criticando seus objetivos, criticando a propriedade dos métodos usados para atingir esses objetivos, confrontando-a com meios alternativos e superiores de atingir os mesmos objetivos e assim por diante. Desse ponto de vista não precisamos de uma categoria geral “ciência”, em relação à qual alguma área do conhecimento pode ser aclamada como ciência ou difamada como não sendo ciência. (CHALMERS, 1993, p. 197).

O Direito se difere das demais áreas do conhecimento em função de seu objeto de análise, sendo este as normas e o ordenamento jurídico. O Direito não estuda a sociedade ainda que exista uma sociologia jurídica, para tal existem as ciências sociais, tampouco estuda a política, sendo esse o foco da ciência política. Essa divisão de objetos de análise, todavia, não denota uma dissociação entre as áreas: elas existem concomitantemente e podem ser utilizadas como diferentes óticas para análise de um mesmo fato.

Hans Kelsen foi um dos mais relevantes positivistas a exercer um esforço para determinar a que se refere o Direito e o que é produzido nessa área do conhecimento. Em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen (2009) determina que o direito tem como foco o princípio da imputação de modo que “se A é, então B deve ser”, não o princípio da causalidade em que “se A é, B é”, sendo o primeiro um indicador de validade e estando no plano do dever ser e o segundo de eficácia no plano do ser. Outro relevante aspecto é a presença da sanção, elemento exclusivo das normas jurídicas e a relação de supra-infraordenação. O maior problema em sua teoria foi a excessiva preocupação com a forma do ordenamento, não sendo considerados os conteúdos das normas.

Posteriormente, Herbert Hart (1988) formula uma nova teoria a qual critica o direito como ordem coercitiva, afirmando ser uma descrição muito simplista que esse aspecto era mais percebido no ramo do direito penal. Isso se da em face da existência de normas que atribuem competências, de maneira que ele divide as normas do ordenamento em primárias e secundárias. Ademais, ele trata de um aspecto interno das normas, por meio do qual se determina comportamentos e a um aspecto externo, voltado para a produção da ciência do direito.

Ainda que não nos encontremos em um atual contexto de positivismo jurídico como o dos autores citados, suas contribuições são muito relevantes para estruturação do Direito como é entendido na atualidade, e um contexto de pós-positivismo.

Não se desconhece que o tema aqui tratado gera inúmeros debates. Alexandre Costa (2020b) menciona que as teses de David Hume, no século XVIII, já contestava tanto os discursos científicos quanto filosóficos. Hume defendia a ideia de que o conhecimento de fatos empíricos isolados é incapaz de conduzir a afirmações objetivamente verdadeiras acerca de conjuntos de fatos. A crítica de Hume propõe, de certa forma, um obstáculo, aparentemente intransponível, para a ciência que tenha por objeto descrever o mundo como ele é.

Em que pese a falta de unanimidade, o Direito pode ser definido como uma ciência ao ser analisado sob diversas das correntes teóricas expostas neste escrito. Utilizando-se da noção de correlato, o Direito pode ser percebido como um correlato na medida em que suas normas são regras aceitas como padrão público comum de comportamento oficial pelas autoridades, bem como (geralmente) obedecidas por seus destinatários, ou seja, é entendido a partir dessa relação entre sujeito e objeto.

Segundo uma perspectiva do realismo de entidades, o direito possui os componentes ontológico e epistemológico na medida em que pode ser verificado se há relação ou não com a realidade e se há elementos que justifiquem a crença nas entidades da ciência do Direito. Sendo as normas do ordenamento jurídico o elemento principal do direito, elas são entidades comprovadas. A Constituição, por exemplo, possui seu aspecto material, sendo uma entidade verificável. Por fim, analisando o debate ideológico entre Kuhn e Popper, as teorias do direito não passam necessariamente por quebras paradigmáticas: elas incorporam novos conhecimentos, de maneira que evolui, a exemplo da evolução de um positivismo para o pós positivismo.

O Direito, em virtude da valorização da racionalidade e busca pela formação de um conhecimento universalizado, obtido por meio dos famigerados métodos científicos pode ser enquadrado no conceito de ciência. Com efeito, ele se mostra uma subdivisão desta, sendo parte das chamadas Ciências Humanas, em razão da área em que atua e produz seus efeitos.

Ademais, por ser em sua grande parte voltado ao plano do dever ser, carece ser visto como uma ciência a parte das demais ciências, tanto humanas quanto exatas. Essa distinção entre os planos, todavia, não o torna de maneira alguma menos científico, tendo em vista sua forma de produzir conhecimento, igualmente considerando o plano do ser.


REFERÊNCIAS

CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? Editora Brasiliense, 1993.

COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020a.

COSTA, Alexandre. A ascensão dos discursos científicos no séc. XIX. Arcos, 2020b.

HACKING, Ian. Representar e Intervir. Cambridge University Press, Londres: 1983.

HART, Herbert. The concept of law. Oxford, Oxford University Press, 1988.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira.

POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo, 1972.