Responder a indagação se o direito é uma ciência leva ao questionamento da relação entre esses dois conceitos. A resposta perpassa pela indagação do que é ciência, do que é direito e de que forma esses dois elementos se relacionam.
A ciência pode ser compreendida como uma concepção de mundo e de objetos baseada em uma metodologia calcada na busca da sistematização das estruturas fenomênicas que permita um raciocínio indutivo e falseável das proposições. Apesar da hegemonia exercida hoje pela ciência, ela corresponde a mais uma das lentes através das quais a humanidade observa os fatos. Exerce, portanto, o papel principal semelhante aquele que outrora foi desempenhado, por exemplo, pela mitologia, pela religião e pela filosofia.
Compreender a ciência como um mecanismo de descrição e observação da realidade - com a advertência de que a concepção de realidade inexoravelmente será sempre o produto de algum filtro de percepção – permite distinguir, ainda que sem separá-lo totalmente, do objeto descrito e observado. O Direito, assim, não se confunde com ciência; embora possa ser um objeto de apreciação científica. Não só pode ser, como - nós últimos séculos - tem sido.
O cientificismo vive seu auge, desde que o historicismo decorrente da crítica de David Hume abalou as estruturas do pensamento filosófico, esvaziando a sua pretensão de verdade universalizante e atemporal[1]. Nunca é demais lembrar, entretanto, que - enquanto fenômeno - o Direito já vem se manifestando com bastante antecedência ao apogeu científico.
É pouco contestável o fato que hoje o Direito é compreendido por todos que o estudam e o aplicam a partir de uma descrição normativa derivada de modelos científicos. Foi sistematizando os elementos que garantiriam um raciocínio indutivo e falseável quanto aos fatos observáveis que autores com Kelsen e Luhmann descreveram, respectivamente, o direito como uma “ordem normativa de conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regula o comportamento humano”[2], bem como como “estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente de expectativas comportamentais normativas”[3].
Destarte, a visão científica do direito, que emergiu com o positivismo, não permite confundir o modo de descrição com objeto descrito. Em criativa e didática analogia, o professor Alexandre Costa compara o exercício científico desempenhado pelo gramático e pelo cientista do direito, em suas palavras: “E por isso é tão reveladora a comparação do direito com a gramática: o papel do jurista é revelar o sistema do direito, assim como o papel do gramático é revelar o sistema da língua.”[4] Assim, a língua está para gramática, assim como o Direito está para ciência do direito.
Diante dessa constatação, parece natural concluir que o direito pode ser objeto de estudo da ciência jurídica, mas com ele não se confunde. De fato, conceitualmente e sob a perspectiva estática, os dois elementos podem ser distinguidos. Todavia, quando analisados de uma perspectiva dinâmica, especialmente da produção e transformação do direito, a separação não se mostra tão simples e intuitiva.
Na tentativa de descrever cientificamente esse conjunto normativo, esmiuçando e sistematizando os seus elementos integrantes, o jurista – não raro – promove uma verdadeira revolução no objeto de estudo. Tem-se uma atividade pretensamente descritiva, mas que se releva constitutiva quando do seu exercício. Essa, inclusive, tem sido uma das características marcantes das escolas do pensamento jurídico surgidas após o apogeu positivista.
Ressalta-se que esse não é um fenômeno exclusivo do período emergente com o positivismo, afinal - a doutrina é uma das fontes do Direito -, e ainda quando imperava a perspectiva jusnaturalista, na busca descobrir os valores universais, naturais e imutáveis, os estudiosos acabavam por criá-los. Tem, pois, que o Direto, assim como toda estrutura social, nunca deixou de ser um produto do seu tempo.
Exemplificando essa relação constitutiva, a Jurisprudência dos conceitos, escola percursora da ciência jurídica contemporânea, também denominada de pandectística[5], ao sistematizar e delimitar de forma mais precisa os conceitos jurídicos já existentes, forneceu os elementos necessários ao surgimento de novos conceitos e, consequentemente, de novas relações jurídicas e até mesmo sociais. Ao conceituar, por exemplo, prescrição e decadência, Windscheid pode desenvolver o conceito de pretensão[6], bem como fornecer as bases conceituais necessárias para que – anos depois – o professor Agnelo Amorim Filho pudesse estabelecer um critério de identificação baseado nos tipos de direito pleiteados[7]. Essas duas construções teóricas foram positivadas e hoje espraiam suas consequências em diversos campos do Direito, situação a gerar, inclusive, novos desafios a serem solucionados pelos juristas da atualidade.
Não sem razão, “Os juristas ligados à Jurisprudência dos conceitos, tais como Puchta e Jhering, consideravam ser possível, a partir da recombinação dos conceitos obtidos pela análise jurídica, construir novos conceitos”[8].
Revelada, portanto, a relação complementar existente entre a ciência do direito e o próprio direito, não há como se afirmar, com tanta certeza, a existência de uma precisa distinção entre o direito e a ciência jurídica, na medida em que o objeto descrito também é um produto da atividade científica. Retomando à analogia entre a ciência e a gramática, tem-se que o jurista, além de gramático, atua como poeta. Ora sistematizando a estrutura a linguagem, ora conferindo novos sentidos e explorando seus próprios limites.
[1] COSTA, Alexandre. A ascensão dos discursos científicos no séc. XIX. Filosofia.arcos, 2020.
[2] KELSEN, HANS. Teoria Pura do Direito. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.5
[3] LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983 . p 121
[4]COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica. Cap. 3: O positivismo normativista, item 1: (1. Desenvolvimento de uma consciência histórica)
[5] COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica. Cap. 3: O positivismo normativista, item 3: (3. A jurisprudência dos conceitos.
[6] COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica. Cap. 3: O positivismo normativista, item 3: (3. A jurisprudência dos conceitos.
[7] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais.a.86, v.744, out.1997, p.725-750.
[8] COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica. Cap. 3: O positivismo normativista, item 3: (3. A jurisprudência dos conceitos
Outras referências bibliográficas:
COSTA, Alexandre. Curso de Filosofia do Direito. Arcos, 2020. Cap. III