A linguagem e o pensamento humano
Em nossos estudos cotidianos, sempre vemos que a evolução da espécie humana, desde a figura do homem das cavernas para o homem racional, passa pela “invenção” de vários objetos e instrumentos importantes, como a descoberta do fogo, a invenção da roda e, por ultimo, da linguagem escrita. Essa última, cujo o marco segundo alguns historiadores é a invenção da escrita cuneiforme pelos sumérios, contudo, não foi o momento no qual começamos a nos comunicar, nem registrar objetos, momentos, sentimentos e pensamentos.
Nós humanos nos comunicamos desde antes da invenção da escrita, por meio de sons, gestos e outras formas de comunicação. Basta saber que animais como macacos e baleias também se comunicam por meios que distinguimos facilmente, como gestos e ondas sônicas propagadas pela água. Antes da invenção da escrita, porém, não havia um mecanismo sistematizado para registrar a comunicação que acontecia momentaneamente entre duas pessoas. Se nossos avós nos contam uma história e não nos atentamos na hora, ou se com o tempo nos esquecemos dos detalhes, o que é contado pela fala pode ser perdido. Porém, se quem conta a história registra suas palavras por meio de símbolos que representam os fonemas da comunicação oral, aquele conhecimento estará presente para quem quiser consultá-lo, protegido do tempo e da necessidade do contato humano.
O filme “A Chegada”, do diretor Denis Villeneuve, conta a história de Louise, uma linguista que tem a tarefa de estabelecer as primeiras formas de comunicação com uma raça alienígena que acabara de chegar à Terra. Para cumprir com esse objetivo, Louise deve aprender a linguagem dos visitantes — os “heptapods” — bem como ensiná-los a própria língua. Logo, ela descobre duas informações importantes: 1) Diferentemente de todas as línguas escritas da humanidade, a escrita dos heptapods não se refere a fonemas e não tem relação com os sons que eles emitem; e 2) Eles escrevem em ortografia não-linear, que não possui direção correta, nem começo, meio e fim; é um circulo que contem todas as ideias em um construto desvinculado de uma sequência temporal (ver imagem de capa da postagem).
Dito isso, a primeira informação nos faz refletir sobre o caminho que o nosso método de comunicação escrita percorre, desde o momento que lemos uma palavra até a associarmos com a ideia a qual se refere. Perceba: quando você leitor olha para os símbolos escritos nessa tela de computador, você primeiro os associa com os sons das palavras faladas, como se estivesse ouvindo a voz de quem escreve em sua mente, para então chegar na ideia que cada conjunto de símbolos busca transmitir. Os logogramas dos heptapods, ao contrário, referem-se diretamente às ideias que buscam transmitir e não passam por uma possível “barreira” de compreensão. Basta pensar que existem diversas palavras, com escritas idênticas e significados completamente opostos, que se diferenciam por sutilezas na pronúncia de seu som (existem várias dessas no inglês). Ainda, as vezes nem o significado literal de uma frase expressa a idéia que o emissor da mensagem realmente deseja transmitir. Por exemplo, uma criança que pergunta o porquê de você deixar suas peças de colecionador dentro da caixa não quer saber sobre a conservação do produto e do seu valor, ela quer que você retire o objeto da caixa para ela poder brincar.
Já com base na segunda informação, conseguimos refletir sobre o modo como pensariam os heptapods. Basta imaginar a seguinte situação: se você fosse escrever com ambas as mãos ao mesmo tempo, começando das pontas da linha até o centro, teria de saber exatamente todas as palavras que usaria na sentença e o espaço entre elas, isso tudo correndo ao mesmo tempo em seu pensamento. Em outras palavras, seria necessária uma compreensão total e completa de todo o conjunto de idéias que se buscaria transmitir, desvinculada de uma sequência temporal entre cada idéia. Nesse sentido, inclusive, existem diversas teorias linguísticas sustentando que a linguagem utilizada pelo falante influencia no modo que ele pensa, e vice-e-versa. No caso dos heptapods, essa afirmação é verdadeira, como é revelado ao longo do filme.
De fato, o pensamento só pode ser produzido e transmitido por meio da linguagem, até em computadores, que “pensam” por meio de uma linguagem de programação. Dessa forma, talvez Hans Kelsen gostaria que pensássemos como os heptapods sobre o sistema de normas, enunciadas pela da linguagem, por meio da qual o Direito se revela.
Apesar do fato de que o Direito — por meio das leis — e a ciência do direito — por meio das obras doutrinárias — sempre terem se expressado por meio da linguagem, a análise de como o uso da linguagem afeta o modo como pensamos o Direito é relativamente recente. Kelsen foi um dos primeiros juristas a se debruçar sobre a questão da análise “metalinguística” do Direito, com todo o ônus argumentativo de apontar para um novo problema e com todas as dificuldades interpretativas, bem como os injustos juízos de valor atribuídos ao positivismo kelseniano, decorrentes desses fatores.
Nas primeiras aulas do curso de Direito, este que vos fala ainda não havia se atentado para todas essas peripécias da linguagem, nem para o modo pelo qual os mestres utilizam outras correntes para provar o ponto de sua concepção preferida, obviamente atribuindo valores negativos às outras, mesmo inconscientemente. O aluno que está nessa situação ainda não é treinado para avaliar teses jurídicas com olhos para além da própria visão do autor, que tenta convencer o leitor do argumento exposto pelo uso da linguagem. É claro, eu logo associei Kelsen erroneamente à defesa da visão clássica e caricata do formalismo jurídico, que prega a interpretação da norma exatamente como está escrita, buscando eu procurar um “bode expiatório” para provar minhas paixões de um calouro do Direito. Desde já, percebemos que a linguagem utilizada já é o primeiro obstáculo para a comunicação, já que a obra é traduzida do alemão e possui diversos conceitos abstratos e estranhos para um recém chegado.
Mas afinal, o que Hans Kelsen realmente queria dizer?
Primeiramente, é nescessário ter em mente que a análise do modo como utilizamos a linguagem para pensar o Direito é fundamental para a concepção de Kelsen. Por isso, chamamos esse momento de o "giro linguístico no Direito".
Para compreendermos a idéia defendida pelo autor, é fundamental que separemos os objetos que realmente existem no mundo, daqueles que são construtos abstratos da linguagem. Por exemplo, uma relação contratual não existe na prática, não é um objeto concreto que podemos tocar. Ela é um construto artificial da nossa cognição, que observa o que determinadas pessoas estão fazendo, como estão fazendo e qual a maneira que as ações de um desses dois atores influencia nas ações do outro. Em outras palavras, as relações são o sentido que as pessoas dão para o seu papel na sociedade e para a sua posição em relação a outra. São significados abstratos construídos pela nossa mente, que se externam por meio da linguagem. No entanto, o contrato escrito no papel e assinado pelas partes, bem como as palavras utilizadas, para regular a relação contratual é um objeto concreto que existe no mundo real.
Percebam que a linguagem, que existe no mundo concreto, na maioria das vezes se refere a construtos abstratos e, para Kelsen, os direitos subjetivos estão inclusos nessa categoria. É nesse sentido, da inexistência dos Direitos no plano concreto como objetos reais que podemos observar, que Kelsen afirma que não existe o direito natural.
Dessa forma, a norma jurídica não é somente as palavras que estão escritas no código e o significado delas de acordo com o dicionário, pois a compreensão de uma mensagem emitida pela linguagem escrita passa antes por todos os canais da comunicação, principalmente o contexto, que é dado por todas as outras normas que integram o ordenamento jurídico. É nesse sentido que Kelsen explica, na obra "Teoria Pura do Direito":
A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa. [...] Isso quer dizer, em suma, que o conteúdo de um acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida.
E segue:
“Norma” e o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. [...]
Por isso, devemos nos afastar do pensamento que associa Kelsen à uma errônea concepção de que devemos nos ater somente às frias palavras que expõem as normas jurídicas, que são uma forma de comunicação do ato de vontade dos legisladores de imporem uma conduta aos particulares. Como toda forma de comunicação, devemos utlizar todas os canais percorridos pela linguagem, que transmite a cognição, o pensamento. Ainda, devemos pensar todos os significados da mensagem como um todo independente da sequência temporal, assim como fazem os heptapods quando transmitem suas mensagens.
O direito, portanto, não está no papel impresso com com as letras que expressam normas jurídicas, está na mensagem que a linguagem, por meio daquelas palavras, busca transmitir.
REFERÊNCIAS:
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2a. ed.
Filme "A Chegada", de Denis Villeneuve. Disponível em: https://www.netflix.com/title/80117799