Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Para o filósofo Paul Silbert1 o conceito de direito como um conjunto de normas – e não de direitos subjetivos, conceitos ou mesmo de deveres – fez-se tão dominante acerca da compreensão do direito que não é tarefa fácil mensurar a real dimensão do normativismo para essa concepção. Para esse autor, “aquilo que é evidente não chama nossa atenção”.

Na visão de André Franco Montoro2, existem diversas acepções de direito. E diferentes posições não necessariamente são contraditórias, tendo em conta que representam diferentes percepções sobre aspectos diferentes de um mesmo objeto. Contudo, não raro, revelam a orientação doutrinária e filosófica de cada autor e seu momento histórico. Para Montoro, o direito pode ser considerado como norma, como ciência, como faculdade, como fato social ou como justo, o que revelaria um caráter analógico do conceito de direito. Uns autores irão preferir o uso do vocábulo direito para indicar o direito-norma – Planiol e Kelsen – enquanto outros preferem enxergar o direito-faculdade (Cóssio), o direito-fato social (Lévy-Bruhl), o direito-ciência (Holmes) ou o direito-justo (Villey, Engisch), sendo este último visto por seus defensores como o significado fundamental do direito.

Segundo proposição do professor Miguel Reale3, o direito pode ser visto segundo uma tridimensionalidade, correlacionando três fatores interdependentes – fato, valor e norma - que fazem do direito uma estrutura social axiológico-normativa. Para Reale, tais elementos não existem separados uns dos outros, mas coexistem numa unidade concreta, atuando como elos de um processo, reconhecendo o direito como realidade histórico-cultural, de modo que o direito resulta de uma interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram.

Norberto Bobbio4 afirma que “o que comumente chamamos de direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos do que de certas normas”, o que deslocaria o problema da definição de direito para a definição de ordenamento normativo e, consequentemente, de diferenciação entre os diversos ordenamentos, não o de definição de um tipo de norma. Na lição de Bobbio, o termo direito, em sua mais comum acepção - direito objetivo - indicaria um tipo de sistema normativo, não um tipo de norma. Assim, a expressão direito refere-se a um dado tipo de ordenamento.

Todavia, é verdade que um breve olhar sobre muitos dos manuais de direito recorrem ao conceito de direito apenas como conjunto de normas, algo parecido, em verdade, com as compilações de normas que vemos ocorrer no Código de Hamurabi, com o objetivo de sistematizar as normas em vigor. Paul Silbert5 alerta que a norma jurídica não é simplesmente o texto, é significado. Tal razão se dá pelo fato de que o senso comum parece tratar com equivalência norma e texto, como se leis fossem normas. Para esse filósofo, em verdade, as leis são um conjunto de textos que, uma vez interpretados, podem revelar as normas subjacentes aos significados que lhe são atribuídos.

Essa possível confusão, para Silbert, acaba por distorcer a obra de Kelsen – Teoria pura do direito – vista como fundamento para a aplicação literal das leis, como uma espécie de estandarte de um legalismo distante de sua real perspectiva que era a de evidenciar o caráter linguístico-interpretativo do direito. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr.6, a “possibilidade de ver o direito como conjunto de normas repousa sua correta apreensão”. Para Ferraz Jr., a posição de Kelsen destaca a importância da norma como conceito central para a identificação do direito.

Paul Silbert7, ao interpretar que a norma jurídica não diz respeito tão somente ao texto normativo, está indo de acordo com o que postula Kelsen na Teoria pura do direito. O jurista austríaco conceitua a norma como “o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém"8. Dessa forma, incorre em erro quem vislumbra a norma como o próprio ato de vontade cujo sentido ela constitui e não como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem.

Quanto a essa distinção, Kelsen elucida:

Os atos que têm por sentido uma norma podem ser realizados de diferentes maneiras. Através de um gesto: assim, com um determinado movimento de mão, o sinaleiro ordena que paremos, com outro, que avancemos. Através de outros símbolos: assim uma luz vermelha significa para o automobilista a ordem de parar, uma luz verde significa que deve avançar. Através da palavra falada ou escrita: uma ordem pode ser dada no modo gramatical do imperativo, v. g.: Cala-te! Mas também o pode ser sob a forma de uma proposição: Eu ordeno-te que te cales. Sob esta forma podem também ser concedidas autorizações ou conferidos poderes. Há enunciados sobre o ato cujo sentido é o comando, a permissão, a atribuição de um poder ou competência. O sentido dessas proposições, porém, não é o de um enunciado sobre um fato da ordem do ser, mas uma norma da ordem do dever-ser, quer dizer, uma ordem, uma permissão, uma atribuição de competência.9

Esse excerto confere as bases para que realizemos uma distinção clara entre o enunciado de uma lei e a norma de fato, na lógica de Kelsen. Estes não se confundem: a norma não é meramente o texto legal, mas a interpretação do seu ato de vontade. É justamente nessa compreensão equivocada que reside a crítica de Silbert: a obra que buscou evidenciar o caráter linguístico-interpretativo do direito, ou seja, a sua hermenêutica, terminou sendo entendida como defensora da aplicação literal das leis.

Nesse sentido, a aplicação literal ou puramente gramatical das leis faz com que o operador do direito feche os olhos para a realidade social à sua volta, o que implica que o texto legal seja permeado por uma efetividade formal, sem, no entanto, lograr êxito na construção de uma sociedade mais democrática e heterogênea.

É primordial que o jurista tenha em mente que o processo legislativo é perpassado por uma construção simbólica e, dessa forma, com o intuito de aproximar-se o máximo possível da realidade social na qual está inserido, construa a norma jurídica, a qual não será, em regra, sinônimo da leitura literal da lei.

A hermenêutica jurídica, portanto, consiste em um dos sustentáculos do processo de criação de uma norma, o qual deverá contribuir para uma fundamentação política mais próxima da realidade, por meio de um olhar jurídico reorientado e atento aos fenômenos sociais existentes10.

A esse respeito, Kelsen - como explica Alexandre Costa11 - afirma que "a aplicação do direito é uma atividade sempre criativa", rompendo a distinção tradicional entre a atividade legislativa e a atividade jurisdicional. A partir dessa concepção, os juízes também passam a ser criadores de normas jurídicas, respeitando a moldura estabelecida pelo sistema normativo, a fim de regular os casos concretos a que são submetidos e aproximar-se da realidade social à qual pertencem.

Ainda de acordo com a exposição de Alexandre Costa12, esse é justamente o ponto de maior divergência entre a teoria hermenêutica kelsiana e as demais teorias hermenêuticas tradicionais, uma vez que, para o jurista austríaco, os juízes desempenham um papel inerentemente criativo e político, o qual extrapola uma tarefa meramente "intelectiva, mediante métodos pré-determinados".

Kelsen, portanto, afasta-se da teoria de que seria possível encontrar, a partir da norma, uma única solução correta para cada caso concreto, buscando, dessa forma, desempenhar uma análise científica do direito. As soluções jurídicas, portanto, não poderiam "ser extraídas dedutivamente das normas que compõem um ordenamento", visto que toda norma é composta por um certo campo de indeterminação, não sendo possível que a norma possa "vincular em todas as direções o ato através do qual é aplicada".

O exercício criativo do direito, conforme aponta o professor Alexandre Costa13, sempre foi concebido como um risco para a sociedade. Ocorre, porém, que leis muito originais também podem estabelecer situações inaceitáveis.

Atualmente, não é incomum observarmos hipóteses em que o magistrado possui atuação criativa. Inclusive, o judiciário entende pela necessidade do juiz criar o direito para o caso concreto, desde que devidamente fundamentado.

Tal fato pode ser fortemente evidenciado durante o ano de 2020, onde se discutiu a respeito da possibilidade de o magistrado intervir no fechamento de cidades, escolas e demais. Apesar de em muitos casos a criação do juiz ser positiva, em outros pode ser alvo de relevantes conflitos, como por exemplo, quando o juiz passa a intervir em políticas públicas ou quando este atua como legislador positivo.

Ademais, em 1960, Kelsen reconhece o fracasso do seu projeto, uma vez que os textos permitem inúmeras interpretações, é impossível estabelecer um limite ao processo interpretativo. O texto, segundo a concepção de Kelsen, seria uma garantia da execução do direito, mas ele se esqueceu da importância do convencimento. O elemento que Kelsen acrescenta é o aspecto da vigência. O elemento do poder é o elemento da imposição coercitiva, o poder que o Estado tem de fazer e observar a sua lei. A teoria pura fracassa no fato de que ela não pode regular tudo. A ciência vale pelo seu poder de convencimento, o direito vale pelo poder de juízo.

Além disso, a divisão dos poderes não é um problema para Kelsen, mas é para o Estado social. A proposta kelseniana da teoria pura do direito propõe um âmbito semântico, que é uma gramática própria do direito. Kelsen faz uma crítica aos autores iniciais da Teoria Geral do Estado porque deseja um enfoque puramente normativo. Para Kelsen, o Estado é uma ordem jurídica personificada formada pelo poder (execução e observância de normas), povo (âmbito pessoal de incidência normativa) e território (âmbito espacial de incidência normativa).

Nesse sentido, o normativismo legalista proposto por Kelsen, em verdade, nos remete a uma leitura das normas e, consequentemente, do direito mais aberta do que o foi entendido pela ampla maioria, a qual defende que o posicionamento deste autor é pelo positivismo estrito, desconsiderando totalmente o giro linguístico hermenêutico de sua obra, conforme explicitado anteriormente.

Destarte, Kelsen, ao falar da moldura de decisões possíveis de um juiz frente a um caso concreto, deixa claro que a norma jurídica, o comando estatal direcionado a determinada pessoa ou grupo de pessoas em um determinado território, é criada no caso concreto - e apenas no caso concreto.

As Leis, de forma geral, são signos, os quais carecem de interpretação para terem uma aplicabilidade. Sem o comando da autoridade, à exceção das leis de eficácia plena e aplicabilidade imediata, são molduras para a decisão do juiz frente aos hard cases. E são nestes casos que se faz o Direito e, em última análise, a Justitia - ainda que seja na opinião do órgão julgador.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    SILBERT, Paul. Trialetic theory of morals. Ontario: Highlander, 1986.

[2]    MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. São Paulo: RT, 1999, pp. 29-59.

[3]    REALE, Miguel. Lições Preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 64-65.

[4]    BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014, pp. 42-45.

[5]    SILBERT, Paul. Op. cit.

[6]    FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 71.

[7]    SILBERT, Paul. Op. cit.

[8]    KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.4.

[9]    Idem. p. 5.

[10]    MENDES, Ronaldo Pimenta et al. O Direito para além da reprodução: do simbólico poder legal a construção da norma jurídica. Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-139/o-direito-para-alem-da-reproducao-do-simbolico-poder-legal-a-construcao-da-norma-juridica/. Acesso em: nov. 2020.

[11]    COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica, Cap. V (Neopositivismo), item 2: Teoria Pura do Direito. Arcos, 2020.

[12]    idem.

[13]    Costa, Alexandre; Diniz, Ricardo Spindola. Direito, Desconstrução e Linguagem/Um mínimo de liberdade. Em: Coelho, Saulo; Diniz, Ricardo; Coelho, Diva. Florianópolis: Tirant lo blanc, 2018.