Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.

A história da humanidade é marcada por rupturas: quedas de impérios e governos, mudanças radicais de regime, grandes revoluções, etc. Contudo, enquanto essas rupturas são claramente percebidas em questões políticas e econômicas, pode-se notar que no campo social certas relações permanecem intactas, demonstrando a força e o caráter de perenidade que têm a tradição, os costumes e a cultura.

Quando olhamos para a história da humanidade, é comum dar mais evidência aos grandes marcos e eventos, de forma a traçar uma trajetória linear, a partir de um discurso de progresso de como a sociedade foi de um ponto para outro diametralmente oposto.  Ocorre que essa forma de recontar a história acaba trazendo uma percepção errada da rapidez com que as coisas realmente mudam.

Vejam por exemplo a história da escravidão no Brasil. Após centenas de anos de institucionalização de tratamento desumano e da naturalização da ideia de inferioridade de um grupo de pessoas em decorrência da cor de sua pele, de forma tão agravada que sequer eram tratados como pessoas, mas sim posses, seria possível que a promulgação de uma lei alterasse esse quadro de completa violação de direitos humanos?

A Lei Áurea pôs fim ao respaldo estatal àquele tipo de prática, mas em que medida isso é suficiente para realmente por fim em um comportamento já enraizado na sociedade? Vemos que, mesmo passando-se mais de 130 anos da abolição, ainda são perceptíveis as consequências dessa realidade histórica. A discriminação, pobreza e marginalização que afetam os negros no Brasil de hoje são um reflexo direto de um país que normalizou o preconceito contra esse grupo e não construiu as bases necessárias para a mudança dos costumes e tradições sociais da época.

Abordando temática similar da perspectiva histórica, o historiador Arno Mayer na obra “A força da Tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914)”, apesar de reconhecer o dinamismo das forças modernas que ganharam força com os cataclismas de 1789 e 1848, argumenta que, ao contrário do que os historiadores tendem a enfatizar, diversos elementos dos antigos regimes europeus sobreviveram a essas “grandes rupturas” (GOMES, 2006)

Como no exemplo mencionado acima, tem-se que a percepção da história por meio das noções de grandes rupturas, acaba por esconder a permanência de tradições já enraizadas nessas sociedades. Nas palavras de Mayer, “Isso não significa negar a importância crescente das forças modernas que solaparam e desafiaram a antiga ordem. Mas significa sustentar que até 1914 as forças de inércia e resistência contiveram e refrearam essa nova sociedade dinâmica e expansiva no interior dos anciens régimes que dominavam o cenário histórico europeu.” (MAYER, 1990, p. 15-16).

Notável, portanto, a tensão entre tradição e norma. Nesse contexto, para que exista uma relação harmônica entre os dois, não se pode ignorar a força que tem a tradição no âmbito de um Estado.

Essa afirmativa pode ser bem trabalhada a partir da relação entre tradição e governo desenvolvida no pensamento político chinês clássico. Na sociedade chinesa, há uma distinção clara entre as obrigações impostas pela tradição (Li), as quais estão ligadas ao reconhecimento de uma ordem natural e papéis sociais determinados que devem ser desempenhados por cada indivíduo, e as obrigações impostas pelos governantes (Fa), que deveriam tratar de regras de preservação da sociedade através de um caráter repressivo e regulação da burocracia, restringindo-se de regular campos tradicionais (como família ou negócios) (COSTA, 2020).

Nesse contexto, o governante que quisesse se manter no poder não poderia deixar de observar as tradições, principalmente com difusão dos ensinamentos confucionistas, que centrava a organização da sociedade na valorização do Li. (COSTA, 2020)

E não é apenas na sociedade clássica chinesa em que o governante deve se atentar à força das tradições para harmonizar as expectativas do povo. A atenção aqui mencionada não é apenas no sentido de manter e respeitar certas tradições, mas sim de saber como atuar frente a elas e o momento de alterá-las quando necessário. A harmonia entre essas duas forças (tradição e inovação) parece, todavia, possuir um frágil ponto de equilíbrio. No caso da dinastia Qin, foi justamente esse desequilíbrio que levou a sua derrubada.

Se já era complexo governar e impor leis que por vezes contrariam a tradição nas sociedades antigas, cuja característica da baixa densidade demográfica e menor dimensão do território permitia que o governante partisse, em geral, de um ponto comum, isto é, que apresenta um certo consenso acerca do que é tradicional ou natural, parece agora ser praticamente impensável governar nos Estados modernos. Isso porque, com os movimentos de globalização, internacionalização e imigração, as sociedades deixaram de ter apenas uma tradição, passando a ser formadas por uma multiplicidade delas.

Em um país de dimensões continentais  e extremamente miscigenado, que apresenta realidades completamente diferentes, como o Brasil, é difícil crer que exista uma tradição única, um consenso tradicional que una o povo por meio de ideais e costumes similares.

Veja-se que muito antes dos portugueses, os indígenas já ocupavam o território que hoje entendemos como Brasil, cada tribo com sua cultura e característica singular. Com a chegada dos portugueses, e posteriormente alemães, holandeses, e outros imigrantes europeus, novos costumes, tradições e culturas adentraram no território, o que causou um choque com a cultura indígena. Esse choque culminou com a predominância do pensamento europeu, sendo as tribos indígenas em sua grande maioria dizimadas e seus membros catequizados. Da mesma forma, diversas tradições e costumes também foram incorporadas da cultura africana.

Diante dessa multiplicidade de realidades e miscigenação, a Constituição de 1988 inovou ao reconhecer a existência de diferentes tradições e culturas que formam o povo brasileiro, evidenciando uma identidade plural e prezando pela liberdade cultural. Esses princípios de pluralidade e igualdade que são elogiáveis no papel e no campo abstrato encontram, na realidade fática, latente dificuldade  de aplicação e harmonização.

Isso porque, os conflitos entre as tradições observados na história brasileira não sumiram e, não só continuam vivos, como também, principalmente na última década, têm ganhado contornos ainda mais polarizados. Não se pode deixar de considerar ainda os choques das tradições com as próprias normas impostas pelo governo.

Para exemplificar esse choque entre tradição e legislação, apresenta-se a problemática de compatibilizar certas tradições indígenas com os direitos fundamentais e humanos do sistema jurídico nacional.

Sabe-se que a Constituição assegurou aos indígenas, em complemento às garantias conferidas a todos no art. 5º, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231). Como observou Luiz Felipe Bruno Lobo (1996, p. 66) “com a promulgação da Magna Carta de 1988 o direito consuetudinário indígena viu-se reconhecido em sua plenitude, porque, como elemento integrante da cultura e da organização social das comunidades tribais, é parte indispensável, está protegido e garantida sua aplicação.”

Não obstante, a liberdade cultural outorgada às tribos indígenas, porém, tem causado polêmica entre antropólogos, juristas e missionários em torno da prática do que denominaram “infanticídio indígena”. No ordenamento jurídico brasileiro, o infanticídio é uma modalidade de homicídio disposta no Código Penal, configurando ato atentatório contra a vida.

Ocorre que, em algumas tribos indígenas do Brasil, o “infanticídio é uma prática imposta pela cultura aos seus membros, que levam crianças à morte por variadas razões, tais como, a deficiência física ou mental, o nascimento de gêmeos ou de mães solteiras, ou de bebês com o sexo não desejado, o fato da criança nascer em período que a mãe está amamentando outro filho, ou por qualquer outro motivo que a respectiva tribo entender que acarretará maldição para si.” (ARAÚJO, 2017, p. 86)

Nota-se aqui um claro conflito, que inclusive remonta às reflexões contidas nas tragédias gregas, principalmente o dilema de Antígona “entre obedecer aos mandamentos da tradição religiosa e obedecer às ordens impostas pelo rei” (COSTA, 2020). O que vemos aqui é de um lado a existência de ato atentatório contra a vida, assim considerado e punido pelo Estado de Direito, e de outro a tradição e cultura milenar de um povo asseguradas pelo direito à diversidade cultural.

Não se pretende aqui entrar no mérito acerca de qual seria a melhor solução a ser adotada, apenas apontar um conflito latente entre tradição e norma, e que não tem uma resposta simples. Buscou-se com esse exemplo sair da perspectiva binomial de bom e mal, mostrando que o justo em certos casos é relativo.

É justamente o que pretendeu esclarecer o romancista Milan Kundera ao analisar a tragédia grega de Antígona, no que pondera sobre o relativismo das verdades humanas: “Freeing the great human conflicts from the naive interpretation of a battle between good and evil, understanding them in the light of tragedy, was an enormous feat of mind; it brought forward the unavoidable relativism of human truths” (KUNDERA, 2003).

A verdade é, portanto, relativa porque não partimos de um mesmo contexto para defini-la. O que entendemos como verdade parte de uma base de crenças, tradições, costumes e interações sociais que diferem de indivíduo para indivíduo.

A seguinte frase de Friedrich Nietzche retrata muito bem essa última reflexão, vejamos: “Quase no berço já nos dão pesados valores e palavras: “bem” e “mal” – é como se chama esse dote. Por causa dele nos perdoam que vivamos. E nós – carregamos fielmente o que nos dão em dote, em duros ombros e por ásperas montanhas!” (NIETZSCHE, 2011).

Extrai-se desse trecho a ideia de tradição como algo que nos é imposto desde o nascimento e que não vai ser necessariamente a verdade de todos, mas apenas de um grupo determinado, em alguma época específica e em um contexto característico. “Tais costumes trazem em si uma espécie de manual de conduta que procura não permitir que homens de outros tempos e de outra mentalidade, isto é, do hoje (tempo), ou ainda, do agora (instante), possam experimentar livremente outras maneiras de viver, novas possibilidades.” (CORREIA, 2016)

Evidencia-se que esse problema toma proporções ainda maiores quando se percebe que há predominância de uma tradição sobre as outras, e por vezes a imposição de certos dogmas tradicionais para os demais indivíduos da sociedade. No Brasil, é possível notar uma dominação da tradição patriarcal/cristã/branca que pode ser percebida durante toda a história brasileira e que impacta diretamente as relações sociais de hoje em dia, apesar de a Constituição Federal consagrar os ideais de igualdade, pluralidade e laicidade do Estado como pilares cruciais.

Tem-se, nesse sentido, um interesse das classes dominantes em manter a “tradição”, uma vez que é partir da detenção de um poder moral e tradicional que justifica seus próprios privilégios frente às realidades consideradas contrárias a seus valores. Essa resistência em superar certos valores que já não são mais aceitáveis na sociedade moderna torna ainda mais difícil não só a harmonização entre tradição e governo, como também da tradição e justiça.

Volta-se então à reflexão inicial. Como então pode o Estado compatibilizar essas verdades relativas? Harmonizar tradições completamente distintas em um só território? Aplicar leis que por vezes são contrárias a tradição de algum grupo com forte influência política e econômica?

Os gregos tentaram responder essa pergunta por uma terceira via, a partir de um exercício racional de lidar com as complexidades de articular a ordem natural - dos deuses - e a ordem política - dos governantes. Na filosofia grega clássica, a ordem imanente do mundo seria acessível por meio do logos, ou seja, por meio de nossas faculdades intelectuais. E é a partir dela que os filósofos seriam capazes de diferenciar as tradições que efetivamente deveriam ser respeitadas e as que deveriam ser abandonadas, em uma contraposição com a Physis – ordem natural iminente (COSTA, 2020).

Tem-se assim a ideia de que nem tudo que foi conservado deve ser mantido, devendo ser realizado um juízo em cima daquelas tradições. Como explicita Nicola Abbagnano “A antítese dessa valorização da tradição é a concepção segundo a qual: 1º nem todos os resultados, nem os melhores produtos da atividade humana foram infalivelmente conservados e incrementados ao longo do desenvolvimento histórico; 2º o que esse desenvolvimento conservou nem isso tem garantia de verdade ou valor” (ABBAGNANO, 2007).

Nos últimos anos, todavia, foi possível perceber uma polarização cada vez maior em torno da clássica tensão entre tradição e inovação e um afastamento da massa do centro, ou seja, a histórica parcela situada entre os dois "extremos". A política de hoje tem que lidar com a ascensão de governos conservadores e o apego aos valores tradicionais – muitos deles ligados à religião – em contraposição a movimentos populares em crescimento como o  movimento negro, feminista, LGBTQIA+ etc, pedindo pela quebra de paradigmas e preconceitos difundidos sob o nome de "tradição".

Diante do exposto, percebe-se que o embate entre tradição e inovação não só continua vivo, como ganha proporções cada vez mais marcantes. Viu-se que a tradição é algo tão enraizado na sociedade que passa a ser um comportamento naturalizado. Isso não significa, todavia, que é imutável. A herança de certos valores e costumes não deve ser engessada, sendo necessário por vezes superar certas tradições, com o governo atuando na linha de frente dessa quebra de paradigmas, mesmo que, por interesse próprio, alguns ainda busquem mantê-las.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ARAÚJO, Ana Paula Valentim. O infanticídio indígena e a postura do estado brasileiro. Revista arquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol. 5, n.10, jan-abr, 2017

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CORREIA, Valterlan Tomaz. Da vaidade a tradição: pela quebra de paradigma e aceitação do contraditório. In. Socializando · ISSN 2358-5161 · ano 3 · nº1 · Jul · p. 50-56 · 2016

COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos, 2020.

GOMES, Tiago de Melo. A Força da Tradição: a persistência do antigo regime historiográfico na obra de March Bloch. In. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 22, nº 36: p.443-459, Jul/Dez 2006

KUNDERA, Milan. The theatre of memory. In. The Guardian, 17 mai. 2003. Translated from the French by Linda Asher. First published in the May edition of Le Monde Diplomatique. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2003/may/17/featuresreviews.guardianreview34

LOBO. Luiz Felipe Bruno. Direito Indigenista Brasileiro. São Paulo: LTR, 1996

MAYER, Arno J. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1990

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhias das Letras, 2011.