Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.
Como bem explica Alexandre Costa1, “apresentar valores (e também relações, deveres e normas) tradicionais como naturais é uma antiga forma de atribuir legitimidade objetiva a certas estruturas convencionais”. Pertinente crítica faz esse autor ao esclarecer que a chamada ordem natural nas relações sociais, amparo argumentativo da autonomia natural dos indivíduos e dos limites ao poder político, em prol de direitos naturais inalienáveis, em verdade, não é natural, mas uma construção cultural ligada às nossas tradições.
Para Alexandre Costa2, o sucesso desse convencimento decorre do nosso viés de confirmação que frequentemente legitima como natural o que nos parece familiar, sem exigir muitas evidências, enquanto se tem como artificial aquilo que se estranha. Trata-se de uma tensão – natural versus artificial - que há muito nos acompanha. Contudo, com a instituição de governos, doses de complexidade são adicionadas nesta relação, pois o poder político, não raro, passou a ser justificado referindo-se à ordem natural.
Em sua obra Direito e Justiça, Alf Ross3 argumenta que, na esfera política, o direito natural serve de amparo para toda sorte de governo, do poder absoluto (Hobbes) à democracia (Rousseau), e a serviço de quem quis consolidar a ordem existente (Heráclito, Tomás de Aquino e outros), bem como de quem advogou pela revolução (Rousseau). Para esse autor, o direito natural está à disposição de todos. Alf Ross faz contundente crítica ao direito natural e sua justificação pela contemplação evidente. Vejamos:
A evidência como critério de verdade explica o caráter totalmente arbitrário das asserções metafísicas. Coloca-as acima de toda força de controle intersubjetivo e deixa a porta aberta para a imaginação ilimitada e o dogmatismo. [...] Um forte argumento em favor do ponto de vista de que as doutrinas jusnaturalistas são construções arbitrárias e subjetivas é que a evidência não pode ser um critério de verdade. O que queremos dizer ao chamar uma proposição de verdadeira é, obviamente, diferente do fato psicológico de que a asserção da proposição seja acompanhada por um sentimento de certeza. A afirmação de que a evidência garante a verdade de uma proposição não pode ser, por conseguinte, analiticamente verdadeira, isto é, uma definição do que significa verdade. Tem que ser tomada sinteticamente, isto é, como afirmando que o sentimento de evidência sempre ocorre associado a um tal estado de coisas que torne a proposição, verdadeira. Mas qual é a prova de, que esses dois fenômenos caminhem sempre juntos? Nenhuma. E certo que um sentimento de evidência acompanha muitas asserções verdadeiras, porém não há razão alguma para que o mesmo sentimento não esteja também associado a erros e falácias. A sólida crença na verdade de uma proposição necessita estar sempre justificada e jamais pode ser sua própria justificação. (ROSS, 2000).
A tradição, de fato, faz parte da sociedade e impacta diretamente a vida de todos. Desde a antiguidade, a tradição é utilizada pelos governantes para manter o status quo e, assim, se perpetuar no poder. A igreja católica e diversas outras religiões também se utilizam da tradição para manter sua influência na sociedade.
No contexto contemporâneo, o embate entre as posições que exigem que os governos atuem em harmonia com a tradição e aquelas que exigem que os governos sejam capazes de intervir nas tradições com o objetivo de garantir uma justiça objetiva continua vivo e faz parte do cotidiano nos diversos níveis da sociedade.
No Brasil, por exemplo, o Congresso Nacional possui, atualmente, parlamentares com perfil conservador, que tendem a manter a tradição viva, o que normalmente é defendido pelos partidos de direita e extrema-direita4.
Já o Poder Executivo tem variado sua posição ao longo das últimas décadas. Na época da Ditadura Militar, o apego às tradições era muito forte. A partir da redemocratização do país, houve uma maior intervenção nas tradições com o objetivo de garantir uma justiça objetiva, principalmente durante os mandatos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. A partir do impeachment da ex-presidente Dilma, houve uma nova guinada para o conservadorismo e, consequentemente, para a idolatria da tradição5.
Diante desse embate, o Poder Judiciário, mormente o Supremo Tribunal Federal, tem atuado como um contrapeso, pendendo para as sensibilidades contemporâneas e intervindo nas tradições. Um exemplo de destaque, diz respeito ao casamento homoafetivo, que foi um direito garantido pela Suprema Corte, mesmo diante da pressão de vários atores conservadores da sociedade, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que representou a Igreja Católica como amicus curiae na referida ação6.
Ainda nesse contexto, frise-se que o Brasil, historicamente, sempre esteve mais próximo do autoritarismo do que da liberdade7. Foi apenas em 1984 que a chamada democracia "deu o ar da graça", marcando a transição da ditadura civil-militar para a sexta República, em um processo cuja participação popular não ocorreu.
Percebe-se, assim, que a tradição de governos autoritários, caudilhistas e golpistas têm permeado a política brasileira, enraizando em grande parte da população valores travestidos de racionais e "tradicionais", mas que, em verdade, servem como pilar para a perpetuação de preconceitos e para a reprodução de flagrante distorção da ordem natural, que, de acordo com Alexandre Costa8, "é até hoje um dos pontos centrais dos nossos modelos explicativos acerca da natureza e da sociedade".
Especialmente em relação às ciências sociais, o par de conceitos "tradição/modernidade" serve como ponto de partida para diversos pressupostos e para distintas posições teóricas e metodológicas9. Para Alexandre Costa10, a modernidade compromete-se com a ideologia de que existem determinados direitos inscritos na ordem natural, os quais servem, portanto, como limites ao poder legislativo dos governos.
Não restam dúvidas de que, cada vez mais, as sociedades exigem dos governos atuais a capacidade de interferência nas bases das estruturas social, política e econômica, a fim de dar voz e visibilidade às aspirações percebidas como "não tradicionais" e, frequentemente, interpretadas como menos dignas de serem acolhidas.
O ciclo político de esquerda, na América Latina, está cada vez mais próximo do fim11. Paralelamente, presencia-se a ascensão de um novo ciclo de direita, pautado em uma releitura do conservadorismo e do liberalismo - duas famílias intelectuais extremamente tradicionais no pensamento e na política latino-americana.
No caso do Brasil, em especial, é exatamente o que é possível observar com o atual governo de Bolsonaro, que tem por principais atores do processo o apoio da burguesia local aos setores liberais e conservadores na política e no judiciário e um discurso moralista de defesa de valores religiosos e da "família tradicional".
O embate entre a manutenção da tradição e a superação desta também está muito ligado não apenas às estruturas governamentais, mas pode também ser compreendido sob um viés econômico.
Leo Huberman12, em A história da riqueza do homem entende a necessidade de superação da tradição como decorrência da alteração dos métodos de produção. Nesse sentido:
O homem progride em sua conquista da natureza; descobrem-se novos e melhores métodos de produzir e trocar mercadorias. Quando essas modificações são fundamentais e de grande alcance, surgem os conflitos sociais. As relações nascidas das velhas formas de produção estão solidificadas; os modos de vida antigos se fixaram no direito, na política, na religião, na educação. A classe que estava no poder quer conservá-lo, e entra em conflito com a classe que está em harmonia com o novo método de produção." (HUBERMAN, 2019).
A noção de tradição, portanto, possui diversas facetas, dentre as quais as sociais, políticas, econômicas e culturais desempenham um papel central. Dessa forma, para compreender o processo de manutenção ou superação das supostas tradições, é extremamente necessário que ocorra uma análise histórica e individualizada de cada povo e nação.
Não obstante, é fácil perceber em um contexto mais amplo, global, que aquilo tido como tradicional é decorrente de uma supremacia branca, masculina, ocidental e regida por valores cristãos. O que rotulamos como tradicional, não necessariamente reflete a realidade social.
Um excelente exemplo, já mencionado, é a noção de "família tradicional brasileira". Muito é feito em nome deste instituto "tradicional", sem que essa seja a realidade de grande parte da população brasileira, em que são compreendidas as mais diversas estruturas familiares.
É quando esses discursos tradicionalistas são impostos de maneira a violar direitos subjetivos que as estruturas governamentais, em especial o poder judiciário, devem atuar como forma de limitação. Tomemos como exemplo o recente caso em que grupos cristãos protestaram contra o aborto legal feito na criança de dez anos, vítima de estupro.
Não restam dúvidas que continua vivo o embate entre as posições que exigem que os governos atuem em harmonia com a tradição e aquelas que exigem que os governos sejam capazes de intervir nas tradições com o objetivo de garantir uma justiça objetiva. Só não é claro, em um contexto de estado social democrático de direito, porém com um executivo alinhado politicamente cada vez mais à esquerda, para qual dos lados pendem as sensibilidades contemporâneas.
NOTAS E REFERÊNCIAS
[1] COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos, 2020.
[2] Idem.
[3] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru, SP: EDIPRO, 2000, pp. 303-305.
[4] Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/10/congresso-nacional-mais-conservador.html. Acesso em: out. 2020.
[5] Sobre o tema ver: BRAZ, Marcelo. O golpe nas ilusões democráticas e a ascensão do conservadorismo reacionário. Revista Serviço Social & Sociedade. São Paulo, n. 128, p. 85-103, Apr. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-6628.095. Acesso em: out. 2020.
[6] Saiba mais sobre o tema em: https://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalJurisprudencia&idConteudo=193683. Acesso em: out. 2020.
[7] Disponível em: http://iela.ufsc.br/noticia/brasil-tradicao-autoritaria. Acesso em: out. 2020.
[8] COSTA, Alexandre. 2020. Op. cit.
[9] Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/viewFile/3783/1872. Acesso em: out. 2020.
[10] COSTA, Alexandre. 2020. Op. cit.
[11] Disponível em: http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/bitstream/handle/bdtse/4915/2018_silva_tradicao_pensamento_politico.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: out. 2020.
[12] HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Tradução: Waltensir Dutra; atualização e revisão técnica: Marcia Guerra. 22 ed. Rio de Janeiro: LCT, 2019.