Definir o que é o Direito é essencial para situá-lo na ordem do saber, a fim de determinar quais são os seus elementos essenciais e de distingui-lo de outros objetos e categorias afins. Entretanto, conforme aponta Pérez Lunõ (1997), permanecem válidas as considerações de Kant sobre a dificuldade intrínseca que enfrentam os juristas para conferir uma definição ao Direito. Além disso, Lunõ (1997), citando um exemplo dado por Hart, evidencia que é provável que um médico ou um químico encontrem a mesma dificuldade que um jurista caso lhes exigisse sua definição da medicina ou da química, sendo possível que suas respostas fossem diversas, tendo em vista que há diferentes pontos de vista acerca do fenômeno em análise.
Portanto, a complicação para definir o Direito é, em parte, um problema de diversidade de perspectivas de enfoque. Desse modo, Lunõ (1997) afirma que as diferentes definições que se tem dado ao Direito ao longo da história revelam as distintas formas de conceber a ordem social, seu fundamento e finalidades. Com isso, é possível atestar que a variedade de definições que se pode dar a uma realidade determinada depende de uma mudança na própria realidade do objeto em definição. Nesse sentido, a complexa realidade que denominamos "Direito" sempre esteve sujeita a sensíveis mutações ao longo do tempo, o que também dificulta a adoção de uma definição unitária para esse instituto. Portanto, a dificuldade de definir o Direito é, ao lado do problema dos diferentes pontos de vista existentes, também uma consequência da sua permanente mutabilidade.
Para o positivismo jurídico, o Direito se identifica com as normas ou sistemas normativos, enquanto regras postas por quem detenha o poder em uma determinada sociedade e que trata de impô-las a essa coletividade. Por essa perspectiva, uma norma é jurídica somente se cumprir os requisitos formais e procedimentais previstos no próprio sistema normativo para a produção de normas.
Além disso, para a linha positivista, o Direito pode ser compreendido como a determinação de certos comportamentos como obrigatórios – ou não – que permite o entendimento do significado do fenômeno jurídico. Logo, entender o Direito seria, antes de mais nada, a compreensão do conteúdo obrigatório de suas normas. Nesse sentido, “onde há direito, aí a conduta humana torna-se em certo sentido não facultativa, obrigatória” (HART, 2001, p. 92).
Ao mesmo tempo em que Hart destaca a importância de caracterizar o que é uma obrigação, isto é, em que contexto as condutas são ou não obrigatórias, ele vincula diretamente a obrigação à existência de uma regra. Isso quer dizer que, em certo sentido, onde existir uma obrigação haverá uma regra a estabelecê-la (ainda que, ao contrário, nem toda regra prescreva, necessariamente, uma obrigação). Desse modo, pode-se afirmar que:
Existe um mundo inteiro de questões onde a obrigação e o dever estão verdadeiramente em casa: este mundo é o direito, já que ambas as expressões resultam quase sempre apropriadas para toda proibição em virtude das normas de um sistema jurídico em vigor (HART, 1964, p. 171).
Segundo Norberto Bobbio, é preciso também abordar o Direito pela perspectiva mais ampla do ordenamento jurídico, conforme descreve:
[…] na realidade, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si (e estas relações serão em grande parte objeto de nossa análise). Esse contexto de normas costuma ser chamado de “ordenamento”. E será bom observarmos, desde já, que a palavra “direito”, entre seus vários sentidos, tem também o de “ordenamento jurídico”, por exemplo, nas expressões “Direito romano”, “Direito canônico”, “Direito italiano” etc. (BOBBIO, 1995, p. 19)
Portanto, Bobbio (1995) considera que uma norma, isto é, uma imposição de obrigações, se torna eficaz a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução. Assim, abordar o que é uma ordem jurídica seria analisar essa organização. Desse modo, o conceito de ordenamento jurídico seria o contexto de produção normativa e englobaria, portanto, não apenas as regras jurídicas por si, mas também as técnicas de produção e de integração das normas jurídicas de diferentes áreas do Direito.
Por outro lado, de acordo com Kelsen, o Direito é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Porém, do ponto de vista jurídico, não basta o mero acontecimento de atos que se realizam no espaço e no tempo, sensorialmente perceptíveis, ou de uma manifestação externa de conduta humana. O que transforma esses fatos do mundo exterior em um ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade (a qual situa-se no plano do “ser”), mas sim o sentido objetivo que está ligado a esse ato, ou seja, a significação que ele possui do ponto de vista do Direito. O fato recebe esse particular sentido jurídico por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, isto é, que lhe empresta a significação jurídica de forma que o ato possa ser interpretado segundo esta norma. Nesse sentido, Kelsen considera que a norma funciona como um esquema de interpretação (COSTA, 2020).
Portanto, a interpretação jurídica para Kelsen é o processo de determinação do sentido da norma. Ela pode ser classificada em interpretação-conhecimento – que consiste em conhecer ou descrever o significado de uma determinada expressão – e em interpretação-decisão – que corresponde a uma atribuição de sentido à determinada expressão, com preferência sobre outros significados (GUASTINI, 1999).
Embora a interpretação jurídica realizada pelo juiz resulte em um ato de criação, há limites a essa atividade criativa, encontrados na própria linguagem prescritiva do direito e antes do processo interpretativo. Assim, é possível considerar que uma das formas de se demarcar o âmbito da discricionariedade judicial é a vagueza e a ambiguidade dos textos, as quais permitem a atividade criativa da interpretação-decisão do juiz para aplicar o Direito (GUASTINI, 1997).
Importa destacar que Kelsen defende que a característica principal da norma a ser interpretada é a de decorrer de um ato de vontade, já que afirma que:
O dever ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo (KELSEN, 1986, p. 3).
Portanto, a norma deve prever condutas definidas dotadas de generalidade para um indivíduo ou uma categoria de indivíduos, conforme alega abaixo:
O que é devido numa norma – ou ordenado num imperativo – é uma conduta definida. Esta pode ser uma conduta única, individualmente certa, conduta de uma ou de várias pessoas individualmente; pode, por sua vez, de antemão, ser um número indeterminado de ações ou omissões de uma pessoa individualmente certa ou de uma determinada categoria de pessoas. (KELSEN, 1986, p. 11).
Importa destacar que, no momento em que os fatos do mundo externo são postos no mundo jurídico a partir da produção da norma, surgem um conglomerado de conceitos que se referem aos seus objetos a priori. Desse modo, cabe ressaltar a manifestação de Kant sobre a incorporação de objetos a conceitos a priori do entendimento:
[São conceitos] cuja validade objetiva, por consequência, não pode ser demonstrada a posteriori, pois isso seria deixar completamente de lado a sua dignidade; mas tem de poder expor, simultaneamente, segundo características gerais, mas suficientes, as condições pelas quais podem ser dados objetos de acordo com esses conceitos (KANT, 2001, p. 179).
Nesse sentido, as regras jurídicas fornecem, através de suas expressões linguísticas, os conceitos pelos quais se reconhecerão no mundo os fatos que lhes são compatíveis. Assim, segundo Hegel, é nessa capacidade de reconhecimento dos fatos que se encontram em seu alcance que reside a positividade do direito, ou seja, é no atributo de transcender o universal e de incidir sobre o individual que o positivismo encontra sua imediata aplicação (MIRANDA, 2016), de modo que:
Além da aplicação ao particular, a realidade positiva do direito ainda tem em si aplicabilidade aos casos individuais. [...] Nesta cunha que o universal introduz no particular e até no individual, isto é, para sua aplicação imediata, é onde se encontra a pura positividade da lei (HEGEL, 1997, p. 190, § 214).
A interpretação da norma jurídica, portanto, deve ter em conta esse aspecto inseparável do Direito: o de prescrever condutas concretas por meio de comandos abstratamente postos (MIRANDA, 2016).
Com isso, há um equívoco quando o senso comum trata as normas como se fossem textos, isto é, como se as leis fossem normas. Kelsen define que, sob o ponto de vista do Direito, a norma jurídica não deve ser confundida com o texto que a veicula. Os documentos normativos (constituição, leis, decretos etc.) não são normas jurídicas, sendo apenas um veículo dos sentidos constituídos pela norma. Há normas veiculadas por meio de outros modos que não os textos escritos dos documentos oficiais, como as normas de trânsito postas em placas ou sinais visuais (MIRANDA, 2016). Portanto, conforme a teoria de Kelsen, o que define a norma é a sua capacidade de ser portadora de um significado revelado pela interpretação dos atos contidos no conjunto de textos, refletindo, assim, o caráter positivo do Direito.
Em vista disso, é possível afirmar que Kelsen buscou evidenciar o caráter linguístico-interpretativo do Direito, de modo a considerar a norma jurídica como entidade linguística, devendo o intérprete buscar o seu sentido e conteúdo. Dessa forma, todos os métodos interpretativos conduzem, no máximo, a uma interpretação possível, jamais à única interpretação correta, tendo em vista que a interpretação é condicionada aos valores de cada intérprete. Logo, não é razoável considerá-lo como um teórico defensor da aplicação literal das leis, visto que a atividade do intérprete exige um processo cognitivo de interpretação, pois é impossível que o ato de fazer a correspondência da norma com o fato do mundo externo derive de um processo meramente mecânico.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. por Maria Celeste C. J. Santos. 6. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
COSTA, Alexandre Araújo. Kelsen e a Teoria Pura do Direito. Arcos, 2020.
GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999.
__________________. Problemas de interpretación. In: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho. n. 7. Isonomía Publicaciones Periódicas. Out./1997.
HART, H.L.A. O conceito de direito. Trad. por Ribeiro Mendes. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
___________. Obbligazione morale e obbligazione giuridica. Contributi all'analisí del diritto. Trad. por Vittorio Frosini. Milão: Ed. Giuffré, 1964.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986.
LUÑO, Antonio-Enrique Pérez, et alii. Teoría del Derecho. Madrid: Editorial Tecnos, 1997.
MIRANDA, Marco Antônio Silva. Um estudo dos aspectos linguísticos da norma jurídica. JusBrasil, 2016. Disponível em: < https://balcoite.jusbrasil.com.br/artigos/365508420/um-estudo-dos-aspectos-linguisticos-da-norma-juridica> Acesso em: 10 nov. 2020.